Centrão: esboços de uma biografia
O objetivo fundamental do Centrão é, e sempre foi, o poder. Entenda-se por poder como cargos no Poder Executivo federal, recursos do orçamento, benefícios governamentais e tudo isso em troca de votos. O Centrão tem sede de poder financeiro, não importa o regime, não importa qual seja o partido que esteja na cadeira presidencial
“(…) ambiciosa como sempre, Mary retomava as grandes questões de filosofia política que levantará em suas Reivindicações: qual era a origem da sociedade? Quais são os direitos naturais de homens e mulheres? Que papel o governo deve desempenhar na vida dos indivíduos? (…) Seu objetivo era provar que a Revolução fazia parte do desenrolar geral da história humana. A humanidade, dizia ela, progredira de tribos a nações, de monarquias a repúblicas. O objetivo do governo deveria ser proteger os fracos”.[1]
A expressão Centro ou Centrão surgiu durante o processo constituinte, ocorrido entre 1987 e 1988. Na época, foi usada para nomear um grupo de partidos com perfil de centro-direita que se uniu para apoiar o então presidente Sarney[2]. O objetivo do chamado Centrão era combater as propostas dos partidários de Ulysses Guimarães (1916-1992)[3], ou, as propostas levantadas pelos partidos de esquerda, como PT, PCB, PCdoB, ou, ainda, com as propostas trabalhistas vinda de Leonel Brizola, do PDT.A nova carta constitucional fazia parte do processo de redemocratização do país após 21 anos de ditadura. Os parlamentares que tinham apoiado o regime militar não queriam ser chamados de direita e foi quando se autodenominaram de “Centro”. Só depois virou “Centrão”. E a grande imprensa comprou esta nomenclatura, o que ajudou a embaralhar os limites entre as diversas correntes políticas do espectro da direita nacional, ajudando a enevoar as concepções ideológicas do neoliberalismo internacional. Deve-se ressaltar que, desde a década de 1980, esse avanço das ideias neoliberais deslocou para a direita diversos grupos políticos internacionais – no Brasil inclusive – que antes estavam situados na social democracia[4].

Crédito: Tomaz Silva/Agência Brasil
Na Assembleia Constituinte, diversos pontos discutidos, que propunham grande avanço social no país, algo discutido entre os movimentos sociais e mesmo nos trabalhos das comissões, foram aprovados de uma forma mais conversadora. Entre estes pontos temos: a reforma agrária, os direitos trabalhistas, a implantação do SUS, o papel das Forças Armadas na política interna e a reforma das polícias estaduais, que continuaram a ser militarizadas. Isso porque o Centrão conseguiu minimizar os avanços propostos e discutidos nas diversas comissões que elaboravam a Constituição, muitas vezes apoiado por setores do próprio PMDB de Ulysses Guimarães.[5]
O espectro político de 1987 identificava os seguintes partidos no cenário brasileiro: o Partido Social Democrático (PSD); o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB)[6]; o Partido Democrático Social (PDS); Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB); o Partido da Frente Liberal (PFL), o Partido Trabalhista Brasileiro[7], o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Deve-se ressaltar que o PDS surgiu do antigo partido situacionista da ditadura, a ARENA e tanto o PSD, o PFL, o PTB, como o próprio PMDB tinham em suas fileiras apoiadores do regime militar (ver quadro abaixo). Aliás, o PSD foi fundado por César Cals, ex-ministro do governo do general-presidente João Figueiredo, e foi seu presidente até sua morte, em 1991. Foram 30 partidos que concorreram às eleições, que neste ano, era para o Legislativo e para a Assembleia Nacional Constituinte. Eram eles: PDS – Partido Democrático Social, PDT – Partido Democrático Trabalhista, PT – Partido dos Trabalhadores, PTB – Partido Trabalhista Brasileiro, PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro, PPB – Partido do Povo Brasileiro, PDC – Partido Democrata Cristão, PMC – Partido Municipalista Comunitário, PTN – Partido Trabalhista Nacional, PH – Partido Humanista, PSC – Partido Social Cristão, PL – Partido Liberal, PCB – Partido Comunista Brasileiro, PC do B – Partido Comunista do Brasil, PFL – Partido da Frente Liberal, PMB – Partido Municipalista Brasileiro, PN – Partido Nacionalista, PTR – Partido Trabalhista Renovador, PLB – Partido Liberal Brasileiro, PASART – Partido Socialista Agrário e Renovador Trabalhista, PCN – Partido Comunitário Nacional, PNR – Partido da Nova República, PMN – Partido da Mobilização Nacional, PS – Partido Socialista, PRT – Partido Reformador Trabalhista, PJ – Partido da Juventude, PND – Partido Nacionalista Democrático, PRP – Partido Renovador Progressista, PDI – Partido Democrático Independente, PSB – Partido Socialista Brasileiro.
Os partidos que alcançaram cadeiras no Congresso Constituinte, que era composta por 559 cadeiras, foram: PMDB tinha 303; PFL, 135; PDS, 38; PDT, 26; PTB, 18; PT, 16; PL, 7; PDC, 6; PCB, 3; PCdoB, 3; PSB, 2; PSC, 1; PMB, 1. Esse cenário se alterou durante os trabalhos constituintes, muitos parlamentares assumiram cargos nos poderes executivos estaduais e federal e, um grande número mudou de legenda, especialmente após a criação do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), em julho de 1988, que foi originado por uma cisão dentro do PMDB. [8]

Durante o mandato de José Sarney (1985 a 1990), os três principais operadores para conseguir apoio para as demandas do governo no Congresso Nacional foram o então ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães, o ministro da Habitação, Prisco Viana e o ministro da Indústria e Comércio, Roberto Cardoso Alves, que ficou conhecido por colocar em prática e assumir pública e cinicamente a frase da oração de São Francisco de Assis “é dando que se recebe”.[9]
No governo Collor foi tudo muito embaralhado e depois do confisco da poupança e a prática da corrupção aos olhos de todos, veio o processo de impeachment. Mas o Centrão cobrava pelos seus votos. Todos os governos – Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso (1 e 2), Lula (1 e 2) – sempre se negociou e se pagou muito. No governo Dilma, o Centrão começou a receber menos. Eduardo Cunha, principal líder do Centrão, foi eleito presidente da Câmara, pelo Centrão, para pressionar o governo Dilma a receber o que exigia. O PT se recusou a votar a favor de Cunha no Conselho de Ética, o governo Dilma ia economicamente de mal a pior e Eduardo Cunha abriu um processo contra Dilma usando o pretexto das pedaladas fiscais. O impeachment, ou golpe como muitos dizem, foi sacramentado, em uma cerimônia vergonhosa, em que os deputados da direita e da extrema-direita davam seu aceite, justificando o voto através dos motivos mais vergonhosos[10] No governo Temer, de Dilma, o Centrão recebeu anistias fiscais, perdões de dívidas e muito dinheiro.
O objetivo fundamental do Centrão é, e sempre foi, o poder. Entenda-se por poder como cargos no Poder Executivo federal, recursos do orçamento, benefícios governamentais e tudo isso em troca de votos. Esse “toma lá dá cá” é feito à luz do dia, sem vergonha nenhuma com uma prática corriqueira aos olhos de todo o país. O Centrão tem sede de poder financeiro, não importa o regime, não importa qual seja o partido que esteja na cadeira presidencial. Todo dia tem notícia nos jornais dizendo quanto cobraram para votar isso e aquilo.
De fato, os parlamentares do Centrão são os beneficiados e os organizadores de uma prática antiga da política nacional: o curral eleitoral. Estes parlamentares são, portanto, clientelistas, pois o valor cobrado para se chegar ao eleitorado de determinado deputado ou senador, passa por uma rede de funcionários e parentes, sendo todos engraxados com parte destes valores acordados. O nome desta prática é clientelismo, profundamente enraizada enraizado na política nacional. Um tipo de relação de poder político e decisões que são tomadas em troca de favores, favorecimento e outros benefícios a interesses privados em detrimento do bem comum. ou seja, trocam bens e serviços por apoio político sendo a troca implícita ou não. Para conseguirem os benefícios que acreditam ter direito, desestabilizam projetos e emendas, para obterem mais dinheiro do Executivo, para cobrarem pela estabilização política. Levam à Comissão de Ética quem se interpõe no caminho do dinheiro público fácil e sem transparência. [11]
Os políticos dessa base estão enraizados ao latifúndio, basta olharmos a bancada ruralista, que podemos incluí-la no Centrão[12]. Famílias proeminentes como: Lira e Pereira, na região do Agreste, entre Alagoas e Pernambuco; Toledo, na região do Vale do Rio Doce; Caiado, em Goiás; Ferreira Gomes, no Ceará; o clã Sarney, no Maranhão; os Barbalho, no Pará; entre outros. Em todos os estados da Federação, existe uma rede de famílias ligadas ao agronegócio que tem, nas bancadas legislativas, no Judiciário e nas várias esferas do Poder Executivo, um pessoas a defenderem seus interesses.
É o resultado de uma economia baseada no latifúndio, que continua a ocupar terras indígenas, terras quilombolas e de populações tradicionais, a expulsar posseiros, a explorar minérios em áreas protegidas, a atacar os pequenos proprietários, a criminalizar os movimentos por reforma agrária.[13]
A eleição do presidente da Câmara e do Senado em 2025 requereu um grande trabalho de comunicação, convencimento, alianças e mostrou como o Brasil continua sendo governado por divisões administrativas e territoriais, como se fossem as capitanias hereditárias. É como se vivêssemos no século XVI. Esta afirmação é reforçada pelo professor Ricardo Costa de Oliveira,[14] em artigo publicado no jornal o Estado de São Paulo no dia 1º de fevereiro de 2025, Hugo Motta e Davi Alcolumbre são “oriundos de grupos familiares que controlam redutos eleitorais e se perpetuam no poder por meio de heranças políticas e redes genealógicas”.
Hugo Motta é médico e político brasileiro filiado aos Republicanos. Deputado Federal desde 2011 pela Paraíba, tornou-se presidente da Câmara dos Deputados em 1º de fevereiro de 2025. Vem de longa linhagem de políticos influentes na região de Patos (PB). O avô paterno, a avó materna e seu pai ocuparam a cadeira de prefeito da cidade, além de serem eleitos para o Poder Legislativo, alguns para a Assembleia Legislativa estadual e outros para a Câmara dos Deputados, em Brasília.
Davi Alcolumbre é um comerciante e político brasileiro filiado ao União Brasil, ocupando uma cadeira do Senado desde 2015, pelo Amapá. Já presidiu o Senado Federal e o Congresso Nacional entre 2019 e 2021. Sua família tem, também, forte tradição política e o poder se inicia no início do século XX. Ambos são representantes do Centrão e a origem deles, ligada à política, só os fortaleceu. Os dois destinaram milhões de reais para seus redutos eleitorais, nos últimos anos.
Depois da turbulência no cenário político brasileiro desde 2016, com o golpe que tirou Dilma Rousseff da cadeira presidencial, agravada com os quatro anos do mandato de Jair Bolsonaro, os três poderes instituídos, agora, falam em paz e respeito mútuo. Mas, no âmbito do Legislativo, partes da Câmara dos Deputados e do Senado só aceitam paz se houver a continuidade do orçamento secreto. Para isso, Motta sinalizou pautar a PEC do semi-presidencialismo, para ficar com o controle do orçamento inteiro. Alcolumbre, por sua vez, querendo beneficiar seu Estado, já fala em abrir a exploração do petróleo na Margem Equatorial do Atlântico, assunto que não só divide opiniões: na Petrobrás, no governo, no movimento indígena e entre os ambientalistas, como é um tema que entra em choque com a pauta ambiental e de direitos humanos em um ano de COP-30, sediada no Brasil, em Belém do Pará.
Quando olhamos para o Congresso Nacional e vemos o coronelismo escancarado, que tem como objetivo manter os mesmos indivíduos e suas famílias no poder a partir da troca de favores; quando vemos a briga pelas emendas parlamentares obscuras, sem destino certo e efetivo e sem transparência; quando vemos o gasto explosivo de salários parlamentares e seus inúmeros aditivos; quando vemos o uso indiscriminado do dinheiro público para metas privadas, chega-se à conclusão que o cargo político é uma profissão, não uma representação provisória. Seria ingenuidade crer que o político deveria fazer a diferença aos seus representados? Certos políticos perderam o compromisso e o respeito pelo interesse coletivo? Ou nunca tiveram?
Beatriz Zaterka Giroldo é historiadora, com licenciatura e bacharelado pela PUC – SP, empresária.
Tânia Gerbi Veiga é historiadora, com licenciatura, bacharelado e mestrado pela PUC-SP, doutoranda pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, professora e produtora cultural.
[1] Charlotte Gordon, Mulheres Extraordinárias: As Criadoras e as Criaturas. Itapevi (São Paulo): Darkside, 2020.
[2] Pela convocação feita pelo então Presidente José Sarney, em 1985, a Assembleia Nacional Constituinte era composta pelos parlamentares, isto é, os senadores e os deputados federais eleitos nos diversos estados para comporem o Congresso Nacional, não tendo, portanto, representantes eleitos especialmente para a sua elaboração. Devido aos velhos esquemas eleitorais, herdados do período anterior – tanto da República Velha, como do período após o final do Estado Novo e o período da ditadura militar – a bancada conservadora, identificada principalmente com o latifúndio, era bastante significativa no Congresso Constituinte. Entretanto, devido à organização política do campo mais à esquerda durante os anos da ditadura, mesmo clandestinamente e depois de 1979 dentro da legalidade institucional, o setor progressista conseguiu muitas cadeiras, o que foi fundamental para a elaboração da nova carta.
[3] Poder 360, online 13 de julho de 2021.
[4] Basta verificarmos o caminho percorrido, desde a década de 1980, pelos partidos social democratas europeus e, também, por diversos partidos socialistas, como o PS de Portugal e o Partido Socialista Italiano.
[5] O que é o Centrão e qual a origem desse termo? In Estado de Minas, seção Beabá da Política, 29/09/2022
[6] O PSD foi criado em 1987 e em 2003 foi incorporado pelo PTB.
[7] O PTB foi uma legenda disputada entre Leonel Brizola, que procurava reconstruir o trabalhismo varguista e janguista, e Ivete Vargas, sobrinha-neta de Getúlio Vargas, a quem o TSE entregou a tradicional legenda. Leonel Brizola fundou o PDT.
[8] Atlas Histórico do Brasil, FGV-CPDOC, verbete Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, https://atlas.fgv.br/verbete/5742.
[9] Queiroz, Antônio Augusto, “Centrão: passado, presente e futuro”, in DIAP – Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, 01 de Agosto de 2018.
[10] Jair Messias Bolsonaro justificou o voto em nome do único militar brasileiro que a Justiça condenou por tortura durante o regime militar, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, do DOI-CODI de São Paulo entre 1970 e 1974, governo do general Médici.
[11] O clientelismo é exercido na prática na distribuição de empregos, favores, benefícios públicos e fiscais, vantagens econômicas, obras, donativos, isto é, um indivíduo “vende” seu apoio político em troca de um favorecimento pessoal que possa te dar algum benefício. Carvalho, José Murilo de. “Mandonismo, Coronelismo: uma discussão conceitual”, in Scielo, 40(2), 1997, https://doi.org/10.1590/S0011-52581997000200003. No momento, o deputado federal Glauber Braga, do PSOL-RJ, está ameaçado de cassação por se interpor aos interesses do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Este é apenas mais um caso da prática deste grupo.
[12] Deve-se ressaltar que a Bancada Ruralista ensar Agro (IPA), que é constituído por “um conjunto de lobistas e executivos de entidades de classe e empresas (…) que formula as pautas legislativas e define o posicionamento político” da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Alceu Luís Castilho e Bruno Stankevicius Bassi, “Dossiê sobre financiamento da bancada ruralista”, in De Olho nos Ruralistas – Observatório do agronegócio no Brasil, 18/07/2022.
[13] Verificar o site De Olho nos ruralistas – Observatório do agronegócio no Brasil, https://deolhonosruralistas.com.br/
[14] Ricardo Costa de Oliveira é professor titular da Universidade Federal do Paraná. Sua tese de doutorado, defendida na Unicamp, tem como título “O Silêncio das Genealogias. Classe Dominante e Estado no Paraná (1853-1930). Também já realizou uma pesquisa, juntamente com José Marciano Monteiro, Mônica Helena Harrich Silva Goulart e Ana Crhistina Vanali, sobre o Judiciário paranaense, intitulada “Prosopografia Familiar da Operação Lava Jato r do Ministério Temer”, in Revista NEP, Núcleo de Estudos Paranaenses da UFPR, 3(3), pp. 1-28. Outras pesquisas têm se debruçado neste tema, como o Projeto Escravizadores, da Agência Pública, sob a orientação de Bianca Muniz, Bruno Fonseca e Mariama Correia. https://apublica.org/especial/projeto-escravizadores-investigacoes-sobre-escravidao-no-brasil/.