China: Qual o paradigma moderno? “Sinomics” ou o “Socialismo de Mercado”?
As quatro décadas de robusto e resiliente crescimento econômico chinês, não podem ser apenas caracterizados como resultado de um sistema “capitalista de Estado”, conforme acreditam desde muitos ortodoxos até a ampla maioria dos pesquisadores marxistas
Artigo recente publicado na agência Xinhua (1), assinado por Zheng Xin e Wang Xiuqiong chama a atenção a um tema/questão cada vez mais recorrente entre os economistas, sobretudo heterodoxos: dado o longevo, robusto e resiliente crescimento econômico por quase quatro décadas, o caso chinês já pode ser considerado como um paradigma, nomeado, conforme os autores do artigo, “Sinomics”?
O artigo, na verdade, é um tanto quanto sem profundidade, mas guarda o mérito de ao expor a visão de alguns dos mais renomados economistas chineses de lançar luz à forma como os próprios economistas chineses tem tratado o desenvolvimento recente de seu próprio país. A principal referência intelectual do artigo, o professor Li Daokui – ex consultor do Banco Mundial – faz uma observação interessante, onde coloca como “obrigação dos economistas contemporâneos chineses sintetizar as novas teorias surgidas nas últimas décadas em linguagem compreensível ao restante do mundo (…)”.
Sobre as novas teorias surgidas, o artigo indica as influências intelectuais sobre o professor Li, dentre as principais, “o marxismo, as teorias ocidentais sobre a economia de mercado e o legado do pensamento dos clássicos chineses”. O texto ainda chama a atenção a observações de outros economistas chinesas indicando direção semelhante ao do professor Li.
De nossa parte, gostaríamos de expor alguns apontamentos. É evidente que o processo de desenvolvimento econômico chinês após 1978 já guarda particularidades suficientes para alçar o referido processo ao grau de “novo paradigma”. O nome deste paradigma (Sinomics), sugerido no artigo, é interessante, mas não suficiente para encerrar a discussão. Ao contrário, trata-se de um bom ponto de partida.
A nosso ver, o que ocorre na China é a emergência de uma “nova formação econômico-social” (FES) onde modos de produção (MP) que surgiram em diferentes épocas históricas convivem entre si em uma verdadeira “unidade de contrários” sob a égide e predominância da grande propriedade estatal/socialista concentrada no núcleo da grande produção industrial (mais de uma centena de conglomerados empresariais estatais), na grande finança (bancos estatais, provinciais e municipais de desenvolvimento) (1).
O sistema político e socioeconômico chinês, observado holisticamente, é uma estrutura de tal diversidade (dado a combinação de diversas formas e sub-formas de propriedade) que não cabe sua caracterização/simplificação como “capitalista de Estado”, conforme acreditam desde muitos ortodoxos até a ampla maioria dos pesquisadores marxistas. Assim como formas binárias de percepção do fenômeno (por exemplo, a China como puramente “capitalista” ou “socialista”) – além de impor uma categoria apriorística sobre uma realidade em evolução –, pois simplesmente ignoram as imensas contradições e complexidades anexas a esta unidade de análise – daí a conceituação do fenômeno chinês como “socialismo de mercado” ser mais fiel a uma formação complexa e onde percebe-se a existência de uma clara totalidade sob forma, já exposta acima, de “unidade de contrários” . Indo ao específico, sobre este aspecto (controle, ou não sobre a propriedade), vale lembrar que neste conjunto o Estado exerce controle tanto sobre os principais preços macroeconômicos (taxas de juros e câmbio) quanto no comércio exterior, tratado como um bem público, planificado e de Estado (2).
Por outro lado é verdade que existe um importante setor privado na economia chinesa (3), porém – dado a forte presença do setor estatal nos setores estratégicos da economia (com capacidade de gerar efeitos de encadeamento sobre toda a economia, tornando o setor privado um simples ancilar, beneficiário dos citados efeitos de encadeamento) – um olhar mais atento aos dados seria suficiente para demonstrar ser verdade a opinião de Trump e de seus assessores de que o controle exercido pelo Estado e o Partido Comunista da China (PCCh) sobre a economia chinesa é muito maior do que se imagina. Principalmente através da influência – direta e indireta – que o Estado e o PCCh exercem sobre (além dos conglomerados estatais) as empresas mistas (sobretudo nas denominadas em inglês Limited Liability Companies) (4).
Outra questão reside no surgimento, ou não, de novas teorias em meio aos desafios impostos pelas contradições surgidas em meio a este longo processo de desenvolvimento. Na mesma linha de raciocínio do texto publicado pela Xinhua, os professores Cheng Enfu e Ding Xiaoqin publicaram em 2017 na Monthly Review (5), um bom artigo onde também apontam no sentido de a China não poder ser vista – conforme o senso comum acadêmico – como um “milagre”, “modelo chinês” ou em termos de “keynesianos” ou “neoliberais”.
Ambos afirmam, contrariando todo e qualquer senso comum sobre o tema, “que as principais conquistas econômicas recentes no país, são devidas aos avanços teóricos em matéria de Economia Política originados na própria China. O artigo avança ao elencar os chamados “Oito Princípios da Economia Política Contemporânea Chinesa”, que basicamente tem como sólida base a relação virtuosa entre um Estado forte de estrutura de propriedade pública dominando o mercado (6).
A nosso ver, os avanços teóricos em matéria de Economia Política por parte dos chineses não somente ocorreram, como devem estar ocorrendo. Porém, de antemão podemos apontar que o paradigma do “socialismo de mercado”, que conjuga tanto uma nova FES como uma nova teoria do processo de desenvolvimento de uma realidade específica, demanda – por exemplo – uma visão mais ampla, larga e moderna de categorias marxistas como formação econômico-social e modo de produção e abrirmos mão de visões utopizantes assentadas, também e, por exemplo, em noções que atribuem ao socialismo a uma mera etapa de transição entre o capitalismo e o comunismo.
Um olhar com mais profundidade, e menos idealismo, sobre o socialismo faz-se necessário, inclusive pelas imensas contradições inerentes à experiência chinesa, sobretudo no que tange a desigualdade de renda territorial e social. Por um lado, políticas excessivamente liberais adotadas nas décadas de 1980 e 1990 levaram à formação de um grande fosso separando as zonas rurais das urbanas e entre ricos e pobres (7). Por outro, é visível a tendência recente de melhora na distribuição de renda (pela via da aplicação de diversas políticas públicas, incluindo a formalização de leis que regulam a relação capital x trabalho, início da construção de um poderoso Estado de Bem-Estar Social e aumentos salariais verificados nos últimos dez anos acima da produtividade do trabalho). Ao lado da retomada de programas sociais típicas à época das comunas rurais (principalmente os relacionados à área da saúde pública), imensos investimentos em infraestruturas nas zonas e províncias mais pobres do país, indicando – em perspectiva histórica e estratégica – inaugurando novas e superiores formas de divisão social do trabalho (8).
Acreditamos guardar muito sentido a opinião de Piketty que indica que uma melhora nos indicadores sociais na China demanda o rápido desenvolvimento de impostos progressivos sobre a renda e a riqueza e a institucionalização de políticas de caráter social-democrata. Porém, a bem da verdade é importante salientar que se assumimos os limites em matéria de distribuição de renda, também deve se considerar que a China é um grande, populoso, diverso e complexo país com uma zona rural nada pequena (cerca de 400 milhões de pessoas ainda estão ocupadas em formas pré-capitalistas de produção de alimentos). Logo, não é prudente comparar o índice de Gini chinês com o verificado em países como a Itália, Suécia ou a Coreia do Sul, dadas tanto as próprias diferenças na natureza do emprego e da renda existentes entre as atividades rurais e industriais, quanto as diferenças de produtividade do trabalho verificados entre as diversas províncias chinesas.
Acrescido das contradições expostas da experiência socialista chinesa em curso, apontamos que a resiliência demonstrada pelo capitalismo, que resiste e se desenvolve mesmo em meio a violentas crises, e os novos desenvolvimentos do socialismo na China e no Vietnã nos coloca o desafio de observar o socialismo apropriado para a presente época histórica como uma combinação complexa de modos de produção, constituído no moderno socialismo de mercado (9), a ser melhor observado, estudado e compreendido. O desafio da construção de uma “Economia Política do Socialismo de Mercado” talvez seja o maior desafio teórico imposto aos marxistas na contemporaneidade. Eis o paradigma a ser desvendado.
Por fim, sendo o socialismo de mercado o verdadeiro nome do paradigma econômico de nossa época tendo como núcleo a atual experiência chinesa, o desafio teórico desloca-se ao modus operandi desta nova FES. Ao menos dois pontos de análise são pertinentes e guarda relevância à explicação do processo em curso na China: 1) O desenvolvimento/crescimento do macro-setor não produtivo da economia (infraestruturas sociais, por exemplo) em detrimento relativo do macro-setor produtivo e 2) a ocorrência e a regularidade de ciclos decenais de inovações institucionais que tem permitido um fenômeno de alta relevância à explicação do crescimento econômico chinês: de um lado o crescimento qualitativo do papel do Estado (tornando-se, nas palavras de Henderson, o “empreendedor-em-chefe”; o agente direto da coordenação/socialização do investimento), de outro o crescimento quantitativo do setor privado, ancilar à grande propriedade socialista.
Eis alguns pontos essenciais que acreditamos guardar grande sentido não somente para explicar o desenvolvimento chinês. Mas, principalmente ao apontamento do socialismo do século XXI como uma alternativa plausível, concreta e longe de utopismos de qualquer natureza.
*Alberto Gabriele é pesquisador independente e colaborador da Universidade de Nápoles e Elias Jabbour é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCE-FCE-UERJ).
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