Cidadania provisória
Inicio minha exposição pelo fato que nunca teve fim: a escravização de milhares de africanos e seus descendentes no Brasil. O que chamamos de grandes navegações do século XV em nossos livros didáticos poderiam ser renomeadas facilmente para grandes espoliações.
O longa “Medida Provisória”, lançado este ano, com direção do ator Lázaro Ramos, se passa em um futuro distópico em que o Congresso Nacional brasileiro decreta uma medida provisória na qual os cidadãos negros são forçados a migrarem para a África, como forma de reparação ao passado escravocrata do país. O filme é uma adaptação da peça teatral “Namíbia, Não!” de Aldri Anunciação, de 2011, também dirigida por Lázaro Ramos.
Não pretendo fazer uma crítica especializada do filme, mas sim, indicar para o leitor que o enredo não tem nada de distópico. Inicio minha exposição pelo fato que nunca teve fim: a escravização de milhares de africanos e seus descendentes no Brasil.
O que chamamos de grandes navegações do século XV em nossos livros didáticos poderiam ser renomeadas facilmente para grandes espoliações. Europeus que buscavam novas terras e produtos davam em troca escravidão, estupro e assassinato para povos alheios. Em seus navios, junto de temperos e outros produtos dos trópicos, estavam abarrotados os africanos de diversas partes do continente para serem também comercializados. Desde os primórdios da infame “descoberta do Brasil”, a mão de obra escravizada da África foi utilizada para a exploração das terras e para o assentamento da colônia portuguesa.
O mesmo destino também foi reservado aos indígenas que aqui estavam… pelo menos aqueles que não foram dizimados no processo. Tamanha brutalidade era tema de muitas discussões de filósofos cristãos, que questionavam a humanidade dessas populações (não europeias), para indicar alguma razão de inferioridade e justificar a escravização… e, claro, a catequização. Independente das conclusões a que chegaram, a mão de obra escravizada de africanos e seus descendentes virou a base econômica da colônia portuguesa e se manteve no Império do Brasil até o fim do século XIX[1]. E é nesse Império tropical que encontramos material suficiente para tornar a medida provisória do filme algo bem próximo da nossa realidade.
Em 7 de novembro de 1831 foi promulgada a lei que proibiu o tráfico de africanos escravizados para o Brasil, declarando livres todos que aqui chegassem. Além da liberdade, era prevista a volta desses africanos para a África. Sim, seriam “devolvidos” para o grande continente África, sem mais esclarecimentos. O texto da lei era sucinto, e as medidas que seriam tomadas tanto para a repressão do tráfico quanto para a “reexportação” dessas pessoas era um grandíssimo silêncio. O mesmo silêncio que amparou os mais de 500.000 mil africanos escravizados introduzidos no país depois dessa data. O destino da maioria dessas pessoas foi a escravidão interminável sem previsão alguma de volta para a África.
Algumas embarcações foram apresadas pela Marinha Britânica e as autoridades brasileiras, nas quais os tripulantes foram registrados como “africanos livres”. Mesmo diante de um crime em flagrante, esses africanos foram encaminhados para o trabalho em obras públicas ou arrematados para particulares. Ou seja, escravizados. Após alguns anos da promulgação da lei, o governo brasileiro chegou a aventar a possibilidade de enviar essas pessoas para Serra Leoa, porém não houve nenhum acordo já que não aceitou ficar com os custos dessa reexportação[2]. Desse modo, foram poucos os africanos que retornaram para localidades na costa da África em comparação com os números dos empreendimentos estadunidenses e ingleses em prol do envio de libertos para a Libéria e Serra Leoa[3]. A ideia de que as populações africanas e seus descentes deveriam retornar para sua terra de origem era generalizada na época, e o tom humanitário de muitas organizações “antitráfico” e defensoras da liberdade que promoviam essas viagens de volta, encobria o incômodo e a não aceitação dessas pessoas no seio de suas nações.
Tanto na referida lei quanto nos avisos e decretos subsequentes, esses africanos eram tidos por estrangeiros sem previsão de naturalização. Vejamos o sétimo artigo da mesma lei: “Não será permittido a qualquer homem liberto, que não fôr brazileiro, desembarcar nos portos do Brazil debaixo de qualquer motivo que seja. O que desembarcar será immediatamente reexportado”[4]. Em linhas gerais, o liberto nesse contexto era qualquer estrangeiro negro que não fosse escravizado. Para não haver dúvidas dessa singela interpretação, anos depois é possível encontrar em discussões parlamentares o tema da imigração de estrangeiros para substituir o trabalho escravizado no país, e os africanos em geral eram presença non grata para tal empreitada.
Caso ainda haja dúvida, é elucidativo reparar no ofício de 1835, no qual Eusébio de Queiroz, o então chefe de polícia da Corte (Rio de Janeiro), responde ao requerimento de Limpo de Abreu, Ministro da Justiça, sobre os procedimentos de apreensão de negros suspeitos de serem fugidos do cativeiro, que “parecendo-me mais razoável a respeito dos pretos presumirem a escravidão” [5]. Logo de saída, anos depois da Independência do país e a criação de sua Constituição, estava claro quais seriam os cidadãos brasileiros, e obviamente “os pretos” não estavam inclusos. A recomendação de Queiroz colocava sob suspeita todas as pessoas negras que andavam pelas ruas do Império, ou seja, mesmo aqueles que não eram escravizados eram passíveis de captura e poderiam ser reduzidos à escravidão. A cena, infelizmente, é familiar para a atualidade. A polícia nunca deixou de perseguir pessoas negras nas ruas, presumindo não mais a escravidão, mas apenas o crime em flagrante da cor.
A cidadania brasileira nasceu e ainda é branca. A igualdade de direitos, depois de quase dois séculos de inovações políticas e estatais ainda é impraticável, em vista do racismo institucional que se estabeleceu no país. O lugar reservado às populações negras ainda se mantém na lógica escravista de inferioridade e na exploração de trabalho. E bem como no sistema escravista, pessoas negras que ousam ocupar outros espaços que não aqueles de subalternidade causam desconforto e até mesmo o ódio a cada dia da nossa pátria que nunca foi gentil. E assim, a ideia de “devolver” as populações negras do país ao continente africano encontraria apoio de muita gente que sempre defendeu seu lugar na casa grande.
Por fim, concluo que a fictícia Medida Provisória se trata do real desterro sofrido pelas populações negras. De provisório, apenas são os direitos conquistados com muita luta e sangue, e que podem ser revogados a qualquer momento.
Ana Elisa Salmaso é historiadora pela Unicamp, Mestre em História pela USP. E doutoranda na Ciência Política da Unicamp.
[1] A escravidão indígena foi abolida oficialmente em toda colônia portuguesa em 1758, porém essas populações ficaram sob a “tutela” do governo.
[2] MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2017.
[3] CUNHA, Manuela Carneiro. Negros, estrangeiros: os libertos brasileiros e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1985.
[4] Lei de 7 de Novembro de 1831. Colleção das Leis do Império do Brazil. Página 182, Vol. 1, 1º parte.
[5] CHALHOUB, Sidney. “Escravização ilegal e precarização da liberdade no Brasil império”. In: AZEVEDO, Elciene et al. (orgs). Trabalhadores na cidade. Cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, p. 28.