Cidades como dínamos da integração internacional
Muitos municípios e estados brasileiros se desenvolveram e atingiram excelência em diversas áreas em temas que poderiam ser incorporados à agenda da cooperação nacional, na medida em que já são demandadas pelos países parceiros, sobretudo África e América do Sul, tais como democracia participativa e mobilidade urbanaAlberto Kleiman|Eduardo Tadeu
As últimas décadas do século XX viram o surgimento do fenômeno da ascensão das cidades – e demais unidades subnacionais, como estados, províncias, regiões, entre outras – como atores internacionais. Embora haja registros de relações exteriores entre cidades desde o início do século passado, foi no seu final que os governos locais alcançaram maior projeção internacional em razão da consistência de suas ações de cooperação e de sua articulação política global.
Nos anos 1990 e início dos 2000, diversas cidades brasileiras e latino-americanas se lançaram em ações internacionais, prática comum entre suas homólogas europeias. As razões para essa atividade eram muitas: captação de recursos internacionais, atração de investimentos, intercâmbio de conhecimentos e experiências, visibilidade internacional (e nacional) e, não raro, articulação política internacional.
No Brasil, as cidades respiravam os ares da descentralização democrática, o momento pós-Constituinte, que garantiu maior protagonismo aos governos locais e elevou o município à condição de ente federado. No plano internacional, realizava-se a Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, a Habitat II, em Istambul, na Turquia, que colocou o tema urbano no centro da agenda global.
Os novos tempos exigiam do gestor local novas ideias e novas políticas. E, se possível, novas fontes de recursos. A ação internacional das cidades crescia nesse contexto. Cientes dos novos desafios e oportunidades, alguns municípios criaram estruturas especializadas para atuar internacionalmente. Muitas cidades brasileiras e sul-americanas ganharam visibilidade apresentando suas políticas inovadoras em fóruns e prêmios internacionais.
Para além das iniciativas individuais, os governos locais criaram movimentos coletivos, mais amplos, a fim de incidir nos processos políticos regionais e globais. A criação da Rede Mercocidades, em 1995, reuniu os principais municípios do Cone Sul e teve papel fundamental ao questionar os rumos do Mercosul e da integração regional, então conduzidos de forma excludente pelos governos nacionais e orientados predominantemente aos aspectos e interesses comerciais.
Obstáculos
No entanto, as eleições sucessivas de governos de centro-esquerda na América do Sul e a retomada dos processos de integração sul-americana não agregaram os atores locais como parceiros. Tampouco as novas orientações da política externa do governo Lula resultaram em fortalecimento e avanço da cooperação descentralizada no Brasil.
A falta de mecanismos e instrumentos de fomento e promoção da cooperação descentralizada no país e a ausência de um marco regulatório que a discipline, aliado à insuficiência de canais de diálogo estabelecidos com os operadores da política externa, criam obstáculos para a ação internacional federativa, desestimulando sua prática e, muitas vezes, impedindo seu desenvolvimento.
Apesar disso, uma nova geração de prefeitos e governadores tem criado ou mantido suas equipes e constituído novas plataformas de ação, o que demonstra que a agenda internacional segue despertando interesse junto aos mandatários locais e estaduais.
Algumas iniciativas apontam nessa direção, como o Fórum Nacional de Assessores Municipais de Relações Internacionais (Fonari), que busca constituir-se como um espaço de intercâmbio, sinergia e ação conjunta entre os municípios; ou a recém-criada Associação Latino-Americana de Cidades Aeroportuárias (Alma), iniciativa capitaneada por Guarulhos em parceria com outras cidades da região; e a Comissão Econômica para America Latina e Caribe (Cepal), uma rede de produção e intercâmbio de conhecimento e cooperação; ou ainda as iniciativas conjuntas entre governo federal, estados e municípios, como as plataformas da Cooperação Descentralizada Brasil-França e Brasil-Itália, que promovem a cooperação com esses países e que têm obtido avanços significativos.
Nesse sentido, as recentes mudanças nos cenários regional e global podem ser entendidas como uma oportunidade de renovação da agenda da cooperação internacional descentralizada brasileira, que passaria a ter como foco central a cooperação Sul-Sul, a integração sul-americana – Mercosul e Unasul –, os novos arranjos multilaterais – o Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), os Brics (Brasil-Rússia-Índia-China-África do Sul) –, a aproximação com a África e o Oriente Médio e, por outro lado, a atualização das tradicionais relações com os países desenvolvidos em parcerias de cooperação trilateral.
O recente estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com a Agência Brasileira de Cooperação (ABC),1 com objetivo de fazer um levantamento da cooperação prestada pelo Brasil entre 2005 e 2009, apresentou uma mudança consistente no seu perfil de cooperação. Segundo o estudo, o governo brasileiro destinou, no período, cerca de US$ 3 bilhões para cooperação prestada. Na categoria da cooperação técnica, os recursos privilegiaram as áreas nas quais o país acumulou conhecimento e expertise, tais como pesquisa e tecnologia agropecuária, produção de medicamentos, educação e capacitação profissional, entre outros.
Muitas cidades e estados brasileiros se desenvolveram e atingiram excelência em diversas áreas nas últimas décadas em temas que poderiam ser incorporados à agenda da cooperação nacional, na medida em que já são demandadas pelos países parceiros, sobretudo da África e América do Sul, tais como democracia participativa, desenvolvimento e mobilidade urbana, saneamento ambiental, resíduos sólidos, políticas de saúde e educação, gênero e juventude, segurança pública, entre tantas outras.
Nesse sentido, é auspiciosa a iniciativa do Edital Trilateral Brasil-França-África e Haiti para a Cooperação Descentralizada2 lançada pelos governos do Brasil e da França e a Frente Nacional de Prefeitos, que sinaliza positivamente uma mudança de orientação com essa agenda. O edital selecionará tecnicamente projetos de estados e municípios e os apoiará financeiramente para prestarem cooperação, em parceria com seus homólogos franceses, africanos e haitianos, uma prática inovadora e desafiadora para os governos subnacionais brasileiros.
Acreditamos que essa experiência deveria se ampliar e se transformar em uma verdadeira política da cooperação internacional descentralizada brasileira. Editais como esse poderiam se multiplicar, orientados pelos eixos da cooperação Sul-Sul já mencionados.
Os projetos apresentados pelos municípios e estados se espalhariam pelo país e seus resultados seriam mais visíveis. Alguns temas, como a integração regional, o Mercosul e a Unasul, por exemplo, distantes da realidade das pessoas e de grande desconhecimento dos brasileiros, poderiam ganhar projeção se transformados em projetos concretos.
A política externa e de cooperação, assim, ganharia novo oxigênio, novas ideias, novas práticas e novos parceiros. E a um custo relativamente baixo, característica desse tipo de cooperação. Com diálogo, orientação e capacitação, o Brasil transformaria seus estados e municípios em verdadeiros dínamos da cooperação internacional descentralizada e da integração regional.
Alberto Kleiman é Mestre em Relações Internacionais pela USP, é atualmente chefe da assessoria internacional da subchefia de assuntos federativos da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República.
Eduardo Tadeu é Historiador, doutor em Educação, prefeito reeleito de Várzea Paulista (SP/PT) e 2º vice-presidente de Relações Internacionais da Frente Nacional dos Prefeitos.