Cinzas e cores erradas
A crise na Uerj é orgânica, longeva, cada vez com menos gente disposta e ímpeto. De 2016 até hoje conta-se quase nenhuma sequência de calmaria por lá
Sempre tive o costume de me despedir dos lugares onde lecionei com cartas. Não era ideia inédita, mas os escritos fizeram sentido quando pensava a imagem dialética da enciclopédia, algo continuamente aberto a novas inserções ou reduções.
Kafka disse, em um de seus aforismos, que ainda no caso de a esperança ser diminuta, não tinha o direito de não usar suas possibilidades. A esperança na Uerj se taxidermizou nos últimos tempos. Não por que não existam ali sujeitos incansáveis, notáveis intelectualmente e afetivamente, mas pelos efeitos do cansaço de longo prazo, capaz de amalgamar pelo sofrimento gerações velhas e novas, docentes e funcionários de apoio, técnicos-administrativos e alunos, seguranças e extensionistas, pesquisadores e membros da comunidade uerjiana.
A universidade mais popular do Rio de Janeiro erodiu. O que não significa antever seu sepulcro ou apontar a inevitabilidade de sua débâcle. Erosão significa corrosão lenta, nos lembram os livros guardadores de definições. Logo, é algo também reversível. Cada vez menos.
Trata-se, assim, de algo processual, que compreende o duplo estado de ter e não ser ou de ser e não ter. Gostaria de usar minhas possibilidades nesta carta para exercer um movimento também bidirecional: elencar brevemente, como professor adjunto da instituição por dois anos, alguns passos que entendo como quase de manual nos projetos de erosão da universidade pública brasileira; expressar o sintoma que me é mais caro neste processo de saída do espaço que abracei desde o mestrado e de onde saio com um orgulho da cor de seus concretos do Maracanã: um cinza desbotado, que lembra aquele utilizado por prefeituras como as do Rio de Janeiro nos anos 1990, no famoso episódio do poeta Gentileza, e de São Paulo, na atual gestão de João Doria. O cinza como a cor do apagamento.
No primeiro movimento destaco o sufocamento financeiro; a precarização (professores substitutos em progressão geométrica, espoliação salarial, destruição das carreiras etc.); a culpabilização, sobretudo dos docentes; o consenso da apatia tecido por parlamento, executivo, mídia e judiciário; os assédios internos e externos; a violência como gramática; a privatização direta ou via facilidades a nichos de mercado (financeirização, expansão do EaD, fundações etc.); e, finalmente, a desautonomização.
O objetivo aqui não é analisar cada um dos elementos acima descritos – afinal ainda temos aqui uma carta! – mas explicitar como o pressuposto-base do capitalismo tardio, a cisão entre política e economia, representa um semblante democrático que deve ser despido e encarado como norma social. Não estou falando de um receituário apenas. Trata-se de ações cada vez mais vistas pelo outro lado neste Brasil pós-2013. Sob outra forma de dizer, quando os processos de dominação de classe se tornam mais invisibilizados exatamente porque mais cotidianos, temos um tipo de fantasmagoria capaz de reproduzir, sobre alicerces bárbaros, o apagamento do outro via dissolução das conquistas coletivas arduamente alcançadas, porém não garantidas. E como obter garantias numa sociedade fundada sob o signo da violência, que ainda hoje estabelece regras para o trabalho escravo e se vale do termo insubordinação quando os da margem tomam a subversiva ação de falar?
A universidade pública que temos no Brasil do agora é bastante diferente do que tínhamos há duas décadas. Todavia, como é presumível, mudou-se mais naquilo que fora de seus muros também se tornou menos excêntrico, como um negro poder ser chamado de doutor ou uma mulher decidir sobre seu corpo e afetos. Obviamente, ainda são majoritários os exemplos de como nos “saímos bem” enquanto sociedade, no exercício de fazer o dia acordar com enfeite de cores erradas, trecho de “Tubarão de bacia”, música de Jorge Du Peixe e Buguinha DUB.
Onde a universidade daqui não mudou quase nada foi no que chamo de gangorra acadêmica: o par privilégio-vaidade, cujo ponto de junção e tangência no solo é exatamente a violência. “P—v—V” talvez seja a grafia possível no Word. Soa curioso que a gangorra seja um brinquedo, aquilo que supostamente serve para divertir. Mas a gangorra é um brinquedo relativamente violento, dependendo do peso e do caráter de quem senta. Na gangorra acadêmica é difícil precisar em qual nível gostamos mais de ficar, o “P” ou o “V”. Ou no equilíbrio de nível dos dois.
Assim, chamo a atenção – e adentro o segundo momento deste balanço – para uma forma de violência que na Uerj, em meio a mais rotunda crise de sua história, tem se tornado quase epidêmica, qual seja o assédio. Tenho 36 anos e sou professor há onze, cinco destes estando nesta universidade como mestrando ou professor. Durante tal permanência pude experienciar crises várias, ataques, dissoluções, precariedade, nas esferas pública e privada, como professor da educação básica e do ensino superior. Entretanto, nunca como nesta Uerj que sucumbe às políticas dos governos do PMDB, apoiadas por quase toda a política fluminense, presenciei ou sofri tanta violência entre colegas, sobretudo docentes. Dos assédios dirigidos a mim – todos oriundos de profissionais com bastante tempo de casa – pude perceber a gangorra como sintoma, ou seja, lacanianamente, ao mesmo tempo uma mensagem codificada e uma organização do gozo. Recortando a primeira característica do sintoma, a gangorra simboliza e demarca lugares.
Conscientes ou inconscientes, tais ações representam sempre atos de violência, que numa conjuntura de barbárie na Uerj (anos de crises econômicas e institucionais, demissões, enorme evasão discente, perdas salariais, ausência de direção, cortes no orçamento, passividade, não existência de fluxo salarial, suspensão de benefícios, adoecimento físico e psíquico, pauperização) necessitam ser debatidos para além das salas de aula e dos espaços sindicais. Privilégio e vaidade tendo como dobradiça a violência não são perceptíveis apenas na universidade, mas também no Judiciário, no Legislativo, nas religiões, nas forças de repressão, no humor, nas relações institucionais, no uso dos corpos etc., com destaque para este Brasil que retoma a insígnia Ordem e Progresso e se orgulha da idiotice como se fosse um raro souvenir.
Valendo-me de uma alegoria cinematográfica, o assédio entre colegas em tempos catastróficos lembra as cenas dos filmes de guerra quando um companheiro abatido com quem se falava minutos antes de sua morte passa a ser um escudo-humano contra as balas inimigas e uma fonte de recursos como água, armas, dentre outros. Difícil precisar quais fontes o assédio amealha no front da batalha mais dramática das universidades brasileiras, mas tenho o palpite de que a gangorra continua sendo gangorra ainda sob bombardeios.
Professores-pesquisadores-doutores que abdicam do enfrentamento e do resgate da alteridade possível porque ainda recebem suas bolsas de produtividade, pagas também com atraso, num cálculo que se resume à velha fórmula do “poderia ser pior”; que se preocupam mais com uma pseudo rotina – quando não há material e segurança para se trabalhar e quando os técnicos-administrativos estão há mais de um ano em greve – do que com a elaboração coletiva de saídas para o caos; que mantêm seus congressos, produções, publicações e que criticam os colegas que dizem precocemente eu não suporto mais; que chamam de precarização o que já se tornou modus e insistem em tocar o barco; que absortos pela burocracia simplesmente não param de ir ao trabalho, entoando o canto da missão da instituição, como se medalhas os esperassem quando a poeira baixar. Brinquei algumas vezes com colegas que via a Uerj como uma cena de The Walking Dead. Acho que a imagem de zumbis se coaduna com a de animais empalhados que citei no início. Há morte e vida concomitantemente.
A crise na Uerj é orgânica, longeva, cada vez com menos gente disposta e ímpeto. De 2016 até hoje conta-se quase nenhuma sequência de calmaria por lá. Saiu recentemente um dado não mais chocante que os outros: a Faperj recebeu desde 2015 apenas 15% de seu orçamento de pesquisa.
São 10 mil cotistas, com 7 mil recebendo bolsas que não são pagas em dia, assim como os salários dos docentes efetivos e substitutos, estes sem dúvida os mais precarizados. No final de 2017 ficou evidente, a partir das declarações do Ministério da Fazenda, que o acordo de recuperação fiscal assinado pelo estado do Rio com a União terá a oferta de ensino superior como contrapartida, nome pomposo para destruição do sistema público superior de ensino. As notícias boas parecem as ruins de ontem com novos olhares. As chacotas com a primeira universidade do país a adotar cotas soam quase como um cínico trocadilho.
Sair desta gigantesca universidade não me orgulha. A sensação é a de abandonar um time de futebol que luta contra o rebaixamento (sendo um dos dez melhores do país) à uma divisão inferior para ingressar numa outra equipe. Admito fraquezas e medos, bem como a certeza de que fiz muito menos do que poderia ter feito. Ainda com Kafka e encerrando com ele é urgente pensarmos que na luta contra o resto do mundo é preciso que nos coloquemos do lado do resto do mundo. Hoje a Uerj é o resto do mundo da universidade pública brasileira. Com gangorras, erosões, sintomas, mas ainda resistindo à epidemia de pares às cegas, não aqueles das avaliações de periódicos, mas os do cotidiano concreto, porém ainda cinza.
Aos amigos e amigas da Uerj, de todos os espaços e grupos, a todos que resistem e a defendem diuturnamente, deixo meu firme abraço e a certeza de que nada está terminado. Aos alunos e alunas com quem aprendi tanto fica a torcida para que tempos melhores se avizinhem. Fui aluno, professor substituto e efetivo nesta casa. Vê-la sendo tomada me dá a certeza que do privilégio e da vaidade articulados pela violência devem surgir formas inventivas de resistência e, por que não (?), de esperança.
*Carlos Eduardo Rebuá é professor adjunto de Educação na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor adjunto credenciado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (PPGE-UFF). Doutor em Educação pela UFF. Mestre em Educação pela Uerj. Bacharel e licenciado em História pela UFF. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (Nufipe-UFF). Coordenador do Observatório de História, Educação e Cultura da UFPB [HECO], vinculado ao Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Organizador das obras “Gramsci nos Trópicos: estudos gramscianos a partir de olhares latino-americanos” (2014); “Educação e Filosofia da Práxis: reflexões de início de século” (2016), em parceria com Pedro Silva, e “Pensamento Social Brasileiro: matrizes nacionais-populares”, em parceria com Rodrigo Gomes, Giovanni Semeraro e Martha D’Angelo (2017). Dele, leia também, Hereges marxistas: similaridades e permanências, sobre Walter Benjamin e Antonio Gramsci, Sobre Sheherazades, Batmans e demônios e “Muros e silêncios: o ataque ao Charlie Hebdo em perspectiva ampliada“, no Espaço do Leitor do Blog da Boitempo.