Comida de verdade no campo e na cidade em tempos de pandemia
No quinto artigo da série “Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade”, que contou com a parceria da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), vamos conhecer como diferentes organizações do campo agroecológico têm se articulado para garantir comida de verdade em tempos de pandemia. Comida de verdade é aquela livre de transgênicos e agrotóxicos, diversa e saudável, produzida de forma justa e por meio de relações de convivência com os agroecossistemas. É comida que foi produzida sem exploração das pessoas ou da natureza e que envolve diversidade cultural e produtiva. A inspiração proposta é pensar “quem produz nossos alimentos em tempos de pandemia?”. Pergunta que nos leva aos territórios de camponeses, indígenas, assentados/as, povos e comunidades tradicionais e quilombolas, onde a agroecologia vai florescendo nos quintais produtivos, em roçados, hortas, sistemas agroflorestais e no extrativismo em bases sustentáveis.
De muitos territórios do Cerrado, recebemos relatos de comunidades em que a produção está se perdendo em razão da suspensão das feiras livres e agroecológicas e de outros canais de comercialização. Por outro lado, para muitas famílias das cidades e, também, do campo, a fome tem sido uma ameaça constante em tempos de pandemia. As experiências que vamos conhecer têm garantido renda para a agricultura familiar e alimentação saudável a diversas famílias por meio da construção social de mercados, ações de solidariedade para distribuição de alimentos e do acesso a políticas de compras públicas.
Para conhecer melhor essas experiências e debater os aprendizados que elas nos trazem neste momento, convidamos para uma boa conversa Maria Kazé, coordenadora nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); Cidinha Moura, coordenadora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) no Mato Grosso; Francisco Wagner, diretor da Cooperativa Grande Sertão em Minas Gerais; e o professor Sílvio Porto, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
O que vocês entendem por “comida de verdade”? Como as práticas de produção e comercialização da agricultura familiar e camponesa vão, também, construindo significados do que é comida de verdade?
Maria Kazé (MPA): Moro num pedaço de chão que a gente chama aqui de roça. Aqui nessa roça, então, nós temos galinha guiné (ou capote ou galinha d’Angola como também é conhecida), porco, cabra, ovelha. Plantamos caju, mandioca, milho, feijão, melancia, abóbora, vinagreira (ou hibisco). Eu faço parte da coordenação nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e também do Coletivo de Agroecologia e Soberania Alimentar que articula todas as dimensões da produção de alimentos e da comercialização. O MPA é uma organização que nasce em 1996, justamente na perspectiva de lutar por condições melhores de vida para o campesinato e de produção de alimentos, de fazer chegar o alimento até a mesa das pessoas, de todos os/as brasileiros e brasileiras. A vida digna para o campesinato é também a vida digna para todo o povo. Então, essa é a missão do Movimento dos Pequenos Agricultores e, nessa longa caminhada, a gente tem lutado bastante. Não lutamos sós, lutamos em articulação com várias organizações, tanto no Brasil, quanto internacionalmente. Porque fazemos parte tanto da Via Campesina no Brasil, quanto do Campo Unitário [1] que articula um número maior de organizações, e da Via Campesina Internacional, que articula mais de 60 organizações em vários países do mundo, em todos os continentes.
E para o MPA, este tema – comida de verdade no campo e na cidade – sempre foi tratado como o centro da nossa estratégia. Tanto que a gente diz que essa é a nossa palavra de ordem, é justamente a produção de alimentos para o abastecimento do povo brasileiro com respeito à natureza, ao meio ambiente, porque essa de fato é a perspectiva que está colocada para nós nesse momento histórico mundial. E também para o MPA, há três elementos que se articulam: são os sistemas camponeses de produção, a agroecologia e o abastecimento popular. Esses três elementos, eles compõem o tripé do que nós chamamos de soberania alimentar. E é justamente os sistemas camponeses de produção para dizer onde, o abastecimento popular para dizer para quem e a agroecologia para dizer como. A soberania alimentar traz uma perspectiva de sujeito histórico que produz o alimento, que é o campesinato na sua diversidade, com sistemas camponeses de produção e não dos latifúndios e das grandes fazendas. Comida de verdade é, assim, o direito de dizer “eu não quero consumir um alimento transgênico, eu não quero consumir um alimento envenenado”.
Cidinha Moura (FASE MT): Falar de comida de verdade para quem está em Mato Grosso é de extrema importância, porque o resto do Brasil sempre fica imaginando como o estado de Mato Grosso é conhecido: o campeão de uso de agrotóxico, todos os conflitos que a gente vive aqui nos territórios devido ao avanço do agronegócio. Mas é assim, na luta pela comida de verdade, que nós da FASE estamos atuando aqui em Mato Grosso há mais de 30 anos. Junto com várias outras organizações e movimentos, nós estamos na construção da chamada Rota de Comercialização Caminhos da Agroecologia. Somos uma série de organizações, como CTA (Centro de tecnologia alternativa), FASE, ARPA (Associação Regional dos produtores agroecológicos) e outras organizações, trabalhando nas proximidades da BR-242 e construindo por aí uma rota agroecológica. Além disso, aqui no Mato Grosso somos parceiros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de movimentos de mulheres, como a Associação Regional das Mulheres Produtoras Extrativistas do Pantanal (ARPEP). A partir dessas articulações, nós iniciamos uma série de debates e começamos a construir mercados em bases sociais. Desde 2005, quando há o primeiro acesso de uma associação da região, da ARPA, ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), nós pensamos que a política pública vinha para resolver um grande gargalo na agricultura familiar que era comercializar. Quando chega o PAA, sentimos que seria a possibilidade, inclusive, de doar os produtos, ou seja, de vender para o Programa e beneficiar famílias bem próximas, as escolas dos assentamentos, as instituições de caridade e de filantropia dos municípios aqui na região.
Foi fundamental também a nossa participação em redes como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Em 2014, a Rede de Grupo de Intercâmbio em Agroecologia do Mato Grosso (Rede GIAS) participou do Programa Ecoforte, que também possibilitou que os grupos de mulheres e as associações pudessem acessar equipamentos para melhorar as condições, dando continuidade na comercialização, gerando renda, e que as famílias pudessem continuar no campo. Percebemos que, em 2014, quando começou o retrocesso no aporte de recursos para o PAA, estávamos com melhor capacidade de acessar o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), embora haja, ainda, muitas dificuldades por parte da agricultura familiar. Através da Rota de Comercialização, dessa discussão de aglutinar as organizações que estavam produzindo, que já tinham minimamente uma infraestrutura e outras condições, juntamos forças para comercializar na capital do Mato Grosso, Cuiabá. Em 2018 iniciamos esse processo de conversar para que a produção agroecológica pudesse chegar às escolas de Cuiabá, onde está o maior público escolar do estado. E passamos a contar com o apoio da sociedade em Cuiabá, sobretudo, pela identificação da van que entregava alimentos com a logo “Caminhos da Agroecologia: Produção de Roças e Quintais”. As pessoas passaram a se interessar e buscar informações e, então, começamos a construir uma plataforma de venda online.
Francisco Wagner (Cooperativa Grande Sertão): É no espírito da agroecologia, no seio da agroecologia, que nasce a Cooperativa Grande Sertão, com sede em Montes Claros/MG. Em 2003, a partir desses princípios, criamos a Cooperativa com mais de 30 cooperados e cooperadas, com atuação em 15 municípios naquela época. E, de lá para cá, a gente vem diversificando a nossa produção. Naquele momento, trabalhávamos com os frutos do Cerrado e também frutos da Caatinga, porque nós estamos aqui numa área de transição do Cerrado para Caatinga, uma região também considerada como Semiárido, e trabalhamos com essa experiência inovadora de aproveitar os frutos daqui do extrativismo. O nosso público, os/as nossos/as agricultores e agricultoras, a maior parte, são extrativistas que vivem trabalhando com os frutos e aproveitando os frutos que o Cerrado nos oferece. Em 2020, a Cooperativa está reunindo cerca de 260 cooperados e cooperadas e abrange mais de 25 municípios do Norte de Minas. Além das frutas nativas e da produção de polpas a partir dessas, trabalhamos com a cadeia produtiva dos produtos da cana-de-açúcar: açúcar mascavo, rapadura e rapadurinha e com a cadeia de óleos, como óleo de buriti e também o óleo do pequi.
Os mercados institucionais são parte da criação e do desenvolvimento da Cooperativa Grande Sertão. Trabalhamos muito tempo com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Em Minas Gerais, a Cooperativa executou esse Programa, envolvendo alimentos como a polpa de fruta e o mel, mas, também, sementes crioulas. Até 2012, a gente trabalhava muito com o PAA, porém, aqui em Minas Gerais, ele foi enfraquecendo e tendo os recursos diminuídos. Daí, acabamos entrando mais no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). A partir dessa política pública, estamos trabalhando com as escolas estaduais aqui da nossa cidade, e com algumas prefeituras, por exemplo, da região metropolitana de Belo Horizonte. Em outros momentos, através do PAA, chegamos até mesmo a abastecer os restaurantes populares de Belo Horizonte. Então, essas sempre foram nossas experiências de produzir e escoar nossa produção. O Centro de Agricultura Alternativa (CAA) é um grande parceiro nosso aqui na região. Temos outros parceiros pelo Brasil afora, como a Central do Cerrado. Nós somos filiados à Central do Cerrado e, também, à União das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (UNICAFES).
Como vocês se reorganizaram diante da pandemia da Covid-19 para garantir comida de verdade no campo e na cidade? Quais são as estratégias? E os principais desafios?
Maria Kazé (MPA): O alimento ganhou uma dimensão muito importante nesse período de pandemia. As pessoas estão perguntando, se perguntando, muito mais, nesse momento de pandemia, o que elas estão comendo, o que compõe esse alimento que elas estão comendo, se é alimento ou se é ração. Porque a questão do adoecimento, isso está sendo muito questionado pelas pessoas. E a gente sabe muito bem que um corpo bem alimentado ele traz uma condição de superação, de enfrentamento a esse adoecimento. Ou ele coloca pelo menos uma possibilidade de enfrentar melhor uma condição de adoecimento como está posta aí pela Covid-19.
Nossas feiras pararam de funcionar, e veja que a feira do Nordeste brasileiro ela é considerada um acontecimento, o maior acontecimento semanal de cada município. Nós tivemos que reinventar, nós tivemos que criar os nossos mercados, os espaços físicos onde a gente disponibiliza os alimentos. A gente teve que inventar e reinventar as cestas camponesas, que são preparadas com toda a diversidade que as pessoas pedem, com entrega delivery, ou as pessoas vão pegar num determinado ponto, num determinado lugar do bairro, do povoado, do município.
Tivemos que criar os nossos mercados populares de abastecimento e nós tivemos que continuar com as nossas brigas e lutas. Nas lutas pela volta de recursos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e para continuar garantindo a compra de pelo menos 30% direto da agricultura familiar e camponesa para merenda escolar, através do Programa de Alimentação Escolar (PNAE), o que a gente tem sentido muita dificuldade na pandemia. Ao invés de isso funcionar melhor, o Governo colocou muitas travas, estão distribuindo merenda escolar através de um cartão e as pessoas vão, assim, direto no supermercado. Enquanto isso, nossa produção da roça fica encalhada.
Cidinha Moura (FASE MT): Em 2020, quando estávamos com maior acúmulo na comercialização e na entrega ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), vem a pandemia e as aulas nas escolas foram suspensas. E aí a questão – o que fazer? Nesse momento foi fundamental estarmos já nesse processo de rede, porque as organizações já se conheciam, já tínhamos uma infraestrutura e percebemos, assim, que, na plataforma, além dos/as consumidores e consumidoras comprarem, eles poderiam doar para as organizações. Por exemplo, em Cuiabá, há associações dos haitianos que estão aqui desde 2014, quando vieram trabalhar nas obras da Copa e que estavam em situação de vulnerabilidade frente à pandemia. Percebemos que havia também a possibilidade de doar para associações de bairros.
Nós tivemos a oportunidade de contar com as ações emergenciais da Fundação Banco do Brasil (FBB). Pelo fato da FASE-MT, sobretudo, e a Rede GIAS ter sido apoiada com o Programa Ecoforte também da FBB, recebemos o convite para essa ação emergencial, que atenderia a agricultura familiar que não estava conseguindo comercializar, devido à suspensão das aulas nas escolas, que era o principal mercado. Pudemos comprar das organizações da agricultura familiar, beneficiando quase 150 agricultores e agricultoras. E as mulheres tiveram um papel fundamental, pois já trabalhavam com pães enriquecidos com frutos do Cerrado. Então, o apoio da Fundação veio para que a gente entregasse 2.000 cestas para as famílias em situação de vulnerabilidade.
O fato de sermos uma Rede foi um dos grandes facilitadores da nossa ação frente à pandemia, porque o contato entre as organizações já existia. Os alimentos estão nesse fluxo, sai de um município, vão percorrendo outro, onde outros alimentos são adquiridos para chegar, finalmente, até a capital. Na volta da capital a van já vem trazendo produtos que são produzidos nas comunidades mais próximas, e, na volta, os produtos de lá vem para serem entregues aqui. A dificuldade foi em pensar como juntar tudo isso no meio de uma pandemia, que temos que nos proteger, e proteger também os/as agricultores e agricultoras.
Francisco Wagner (Cooperativa Grande Sertão): Diante da pandemia estamos readequando nossas estratégias, tanto de acompanhamento dos grupos produtivos, quanto da nossa forma de nos organizarmos. Estamos entregando em casa, através de delivery, e ligando para todos/as nossos/as clientes. Também executamos o edital da Fundação Banco do Brasil (FBB), montando e distribuindo 4.000 cestas básicas. Esse foi o maior projeto que a gente teve nesse momento, e com ele conseguimos resolver duas situações bastante interessantes. Devido ao decreto municipal, nossas feirinhas locais não estão mais funcionando. Isso acarretou a impossibilidade de escoamento e comercialização dos produtos da agricultura familiar. Na oportunidade da confecção de cestas via FBB, nós conseguimos trazer essa produção que não estava sendo comercializada. Foram mais de 100 toneladas de produtos de uma lista de 11 itens de produtos regionais, com exceção do arroz, pois nossa região não é produtora. Com isso, conseguimos atender nossa rede de agricultores e agricultoras. E, por outro lado, pudemos distribuir esses alimentos às famílias que estão em risco social. Naquela ocasião de distribuição de cestas, várias famílias que dependeriam do Auxílio Emergencial do governo, ainda não tinham o recebido. Foi um momento estratégico de segurança alimentar e que a gente conseguiu alavancar, e rodar, girar a economia local aqui da nossa região.
Estamos em diálogo, também, com a Cáritas Regional de Minas Gerais para a confecção de 3.000 cestas com produtos provenientes da agricultura familiar. É assim que tem rodado nossa estratégia de comercialização, a partir de fornecimento de cestas básicas para alimentação das famílias que estão em risco social. Nossa equipe é bem reduzida, então, temos feito um esforço na construção de alguns projetos de sobrevivência institucional.
Nesse momento, nossos maiores desafios são os associados à comercialização, além das feiras, sofremos com o fechamento das escolas, que é o nosso maior mercado e com o qual tínhamos uma série de contratos firmados que não estamos podendo executar. Foi feito um esforço com a Secretaria Estadual de Educação, mas, até então, a gente não conseguiu avançar essa pauta aqui em Minas Gerais. Com algumas prefeituras com as quais temos contratos, estamos fazendo um esforço de negociação para receber o valor da produção e distribuir os alimentos nos municípios, mas não está sendo possível ainda. Por mais que exista um decreto para trabalhar com o PNAE, e reorganizado a partir da Medida Provisória nº 01/2020, nós não estamos conseguindo êxito aqui na nossa região. Isso coloca uma série de preocupações. Na cadeia de frutas, a gente está com os nossos estoques superlotados.
Vocês poderiam fazer algumas considerações sobre a perda da produção na agricultura familiar? Quais são elementos importantes a serem considerados?
Francisco Wagner (Cooperativa Grande Sertão): Estamos com os estoques superlotados. Para nós, da Cooperativa Grande Sertão, o desafio está na articulação de políticas públicas que garantam o escoamento da produção. A gente está muito seguro de que esse é o caminho e que precisamos fortalecê-lo, organizando cada vez mais as parcerias, os movimentos, as cooperativas e as redes de cooperativas, a UNICAFES. No caso de Minas Gerais, não tem sido um debate fácil com o governo do estado, mas precisamos colocar isso na pauta porque o escoamento da produção é urgente. Nós somos apenas um caso, a Grande Sertão é um caso, em Minas Gerais temos várias cooperativas da agricultura familiar enfrentando a mesma situação, com seus estoques cheios, sem conseguir distribuir a produção.
Sílvio (UFRB): As comunidades e famílias seguem produzindo, garantindo alimentos e, ao mesmo tempo, esbarrando na falta de apoio do Estado. Francisco Wagner a partir da experiência da Cooperativa Grande Sertão nos alerta, ainda, de como essa é a realidade de muitas famílias agricultoras. As famílias seguem na produção e só não estão produzindo mais porque não têm capacidade de estoque ou de escoamento, o que causa um impacto enorme na renda dessas pessoas e suas comunidades.
A partir disso, vejo dois problemas, um pela inação do Estado que não resolve, que não compra, que não dá fluxo para que essa produção chegue efetivamente às milhões de famílias e pessoas que estão necessitando desse alimento nas cidades, sejam elas pequenas, médias e, sobretudo, as grandes. É fundamental que se consiga travar essa luta para que realmente volte a ter política pública nesse sentido. A outra, é que, embora, tenhamos visto o engajamento social e político desde os territórios na garantia do escoamento e da produção de renda, apoiadas por projetos e Organizações Não Governamentais (ONGs), articulando-se em redes e que têm uma longa trajetória, há famílias que estão desarticuladas, que não têm esse tipo de relação ou que estão em pequenos municípios. E, portanto, sem sombra de dúvida a fome hoje, assim como a pandemia, é uma situação da cidade e, também, do campo.
Quais são os alertas que a crise da Covid-19 tem nos colocado? A crise sanitária estaria demonstrando uma fragilidade maior, expondo, por exemplo, a insustentabilidade do sistema alimentar hegemônico?
Sílvio Porto (UFRB): A crise é mais ampla e não é decorrente somente da pandemia. A pandemia agrava a crise, mas efetivamente nós já tínhamos uma crise instalada, uma crise séria, fruto de uma inação do Estado e fruto de uma concepção do próprio papel do Estado que abdica de regular, de promover políticas que assegurem os direitos e a cidadania. Acho que essa é uma questão fundamental. E se nós olharmos, por exemplo, os dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD) do primeiro trimestre deste ano, veremos que 67 milhões de pessoas estão fora do mercado de trabalho. Esse é o pico desde que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) começou a utilizar essa medida. Além disso, a porcentagem de desempregados é de 12%, o que corresponde a 13 milhões de pessoas. Só no mês de abril, quase cinco milhões de pessoas desistiram de procurar emprego. As pessoas caem nessa situação de dificuldade aguda, é quase como se o emprego não fosse mais possível. Aliás, se nós formos olhar hoje no Brasil, nós temos 33 milhões de pessoas que possuem carteira assinada, o que é muito pouco. Isso mostra exatamente o tamanho da crise em que nós vivemos.
Por isso que, no rural, é muito importante que, efetivamente, as experiências de produção e distribuição de comida de verdade sejam valorizadas, e, mais, sejam multiplicadas. Porque não só representam a possibilidade de produção, mas de reprodução de diferentes modos de vida e, principalmente, a valorização da nossa biodiversidade, da nossa agrobiodiversidade, porque são essas comunidades que asseguram efetivamente que a nossa biodiversidade seja conservada e seja, inclusive, enriquecida.
Comer é um ato político e isso é muito importante. Essa reciprocidade na relação entre produção e consumo é crucial para que efetivamente a gente consiga dar respostas mais efetivas. E nesse sentido, penso que a pandemia está nos trazendo a vitalidade das redes de agroecologia, reforçando como essas são capazes de organizar estratégias de abastecimento alimentar e mantendo diálogos diretamente com o público consumidor. Foram essas organizações, redes e movimentos sociais que rapidamente conseguiram criar mecanismos, inclusive inovadores, em relação a uma rearticulação dos processos de comercialização. Vejamos o caso do MPA no Rio de Janeiro que saiu da entrega de 350 para 1.200 cestas mensais, redesenhando toda uma logística de entrega, possibilitada por uma parceria fundamental com uma cooperativa de taxistas.
O que o momento de pandemia clama é pelo levantamento de uma série de questões que nos permitam refletir sobre a hegemonia de um desenvolvimento que se pauta simplesmente pelo crescimento. Esse crescimento, ele traz conflitos, ele traz problemas de ordem social, ambiental e de saúde pública. A comida que vem do agronegócio é uma comida envenenada, é uma comida extremamente restrita. Enquanto isso, toda a riqueza da alimentação, da diversidade, dessa relação do manejo que acontece pela agricultura familiar e camponesa e por tanto outros povos das florestas, do campo e das águas. São por essas relações entre os povos e as paisagens que o Cerrado está sobrevivendo. O Cerrado é rico exatamente onde há a presença dessas comunidades. Só que essas comunidades, elas estão soltas à própria sorte, porque não tem política pública, enquanto as que existiam praticamente estão sendo desmobilizadas ou já foram em boa medida. Nesse momento, o que nós estamos acompanhando são organizações no Campo Unitário, são articulações dos movimentos sociais que estão vigilantes e em processo de atenção permanente no Congresso Nacional, na Câmara, exatamente para tentar aprovar medidas, especialmente o Projeto de Lei 735.
Como vocês entendem o papel do Estado no fortalecimento da agricultura familiar e camponesa, e, assim, da garantia de produção de comida de verdade, tanto agora no cenário de pandemia, mas também de forma mais ampla?
Maria Kazé (MPA): É preciso que o Estado coloque um papel central nisso, ou então nós vamos continuar com parte da nossa produção encalhada, e tantas pessoas, milhões de pessoas nas cidades precisando desses alimentos. Essa é uma situação que a pandemia trouxe. Ela trouxe essa busca das pessoas por comida de verdade e não por comida de mentira. Mas, ao mesmo tempo, ela tirou da gente vários mecanismos e possibilidades de comercialização, principalmente, no que diz respeito às feiras municipais, às feiras agroecológicas organizadas por grupos de agricultores, agricultoras, quilombolas que produzem de forma ecológica e criam esses espaços de comercialização. A pandemia trouxe essas duas questões e aí o que faz falta nisso tudo é de fato uma política de abastecimento popular vigorosa, que nos permita não passar por situações como essa. Porque esses momentos, eles vão existir em qualquer lugar do mundo, em qualquer país, por isso que o Estado tem um papel fundamental.
Além disso, é crucial a aprovação do Projeto de Lei 735 para garantir que na pandemia os agricultores e agricultoras do campesinato tenham acesso a recursos para produzir alimentos, para diminuir a penosidade, porque a gente continua produzindo, mas em meio a muitas dificuldades. Através das campanhas Periferia Viva, Mutirão Contra a Fome, e tantas outras, a classe trabalhadora, as organizações já distribuíram centenas de milhares de alimento, de quilos de alimento para milhares de pessoas, milhões de pessoas nesse país que estão de fato passando fome, passando necessidade. E tudo que a gente não quer é que volte o período dos saques que temos nas memórias históricas do Nordeste, onde as pessoas com fome iam onde tinha alimento, e têm direito de ir mesmo. Ninguém pode morrer de fome tendo alimento em qualquer lugar na prateleira e a gente tem sim que lutar o máximo que a gente puder para que isso não aconteça.
Sílvio Porto (UFRB): Esperamos que, na próxima semana [2], sejam adotadas medidas que vão permitir, se aprovadas e implementadas pelo governo, que é o grande desafio, de fato que essas comunidades tenham minimamente melhores condições para tratamento da pandemia e garantia na produção. Entre as propostas colocadas estão previstas crédito emergencial, renegociação das dívidas agrícolas, o fomento produtivo, as cisternas e o PAA emergencial. Se conseguirmos aprovação, principalmente em relação às cisternas, o fomento produtivo e o PAA emergencial, isso permitirá que as mulheres camponesas, as comunidades da agricultura familiar e camponesa possam acessar recursos e terem, assim, melhores condições de enfrentamento dessa pandemia. E, portanto, não se trata apenas das comunidades, mas, também, daquelas pessoas que vão poder alimentar-se daquilo que está sendo produzido. Isso é fundamental.
Infelizmente hoje nós temos milhões de pessoas nas grandes cidades, sobretudo nas periferias das cidades, ou não comendo, ou comendo muito mal, comendo comida que não é de verdade, comendo ultraprocessados. Principalmente porque não tem renda, não tem acesso a alimentos frescos, e certamente isso as coloca numa situação de maior vulnerabilidade frente à pandemia. Não é de graça que a pandemia, neste momento, ela tem cor, ela tem raça, e ela está exatamente nas periferias, está se interiorizando, se instalando onde há pobreza, problemas de saneamento, dificuldades de acesso a renda e a empregabilidade. Essa é uma questão chave, e eu diria que é fundamental que se assegure a estruturação dos circuitos locais de abastecimento, a conservação da agrobiodiversidade, a promoção e retomada da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) e a valorização dos hábitos alimentares regionais. Eu entendo que a partir desses elementos nós definitivamente conseguiremos olhar para outro Brasil, para um desenvolvimento que seja inclusivo e não pela lógica econômica e do crescimento.
Comida de verdade é aquela livre de agrotóxicos, transgênicos e de conflitos. Como vocês compreendem isso desde o território? Como construir lutas e resistências agroecológicas?
Cidinha (FASE MT): São os desafios. Nós estamos nesse contexto, de Mato Grosso, o estado que mais usa agrotóxico no Brasil. E temos que lutar. Por exemplo, temos uma parceria firme e continuada com a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida. Nós da FASE participamos dessa Campanha porque nós precisamos fortalecer experiências de agroecologia, denunciar os impactos do agronegócio nos nossos territórios e pensar em políticas que garantam territórios livres de agrotóxicos e transgênicos para que a gente possa continuar oferecendo os alimentos de verdade, sem essa contaminação. Esse é um grande desafio, e a gente vive isso em todos os estados, em todos os territórios do Cerrado, infelizmente.
Fortalecer as experiências de agroecologia, acredito, é uma das saídas. O PAA, por exemplo, ele foi fundamental para fortalecer as experiências desde 2003, porém, infelizmente, houve um desmonte, uma falta de recursos proposital. Sabemos da importância das políticas públicas, precisamos lutar por elas e seguir na busca de garantir territórios livres de agrotóxicos e transgênicos, que sejam garantidos pelo Estado e pela prática cotidiana de organização política e produtiva dos agricultores e agricultoras, para que possamos seguir em rede e juntos/as encontrando caminhos. Aqui em Mato Grosso, a gente está vivendo isso, sentindo como a organização em rede foi fundamental para garantir que os alimentos continuem chegando a quem precisa mesmo diante da pandemia, essa é nossa luta!
Francisco (Cooperativa Grande Sertão): A questão dos agrotóxicos não é diferente aqui na nossa região. Vejamos o exemplo do grande projeto Jaíba, que produz muitos alimentos, mas é “muito” devido à produção baseada no uso de agrotóxicos. Além disso, cada vez mais a propaganda, a recomendação, as orientações técnicas do agronegócio têm se expandido na nossa região. Infelizmente, as nossas pequenas propriedades, nossos/as pequenos/as agricultores e agricultoras estão enfrentando essa dura realidade.
De algumas formas, isso se reflete no próprio mercado. Cada vez mais, estão chegando alimentos com essa falsa propaganda de que é alimento seguro, mas de fato não é. Isso compromete muito a saúde de quem consumir. E aí o risco cada vez maior de hospitais cheios e das famílias enfrentando situações difíceis devido à insegurança daquilo que elas se alimentam. A saúde parte daquilo que a gente come. O que destaca, mais uma vez, que temos que fortalecer nossas redes de agroecologia, manter esse diálogo mesmo, da forma que nós estamos fazendo. Para mim é o caminho que a gente deve seguir, não tem outra saída.
Maria Kazé (MPA): O Plano Camponês é justamente um projeto de classe, esse projeto de mundo que o Movimento dos Pequenos Agricultores organiza, articula, constrói, elabora e pratica, e o oferece para o povo brasileiro como um projeto a partir do campo. Um projeto para a sociedade brasileira, que articula todos esses elementos que nós estamos trazendo aqui. José Martí, político e pensador cubano, trazia para nós que um povo que não consegue produzir seu próprio alimento, é um povo escravo. Assim como o geógrafo e intelectual brasileiro, Josué de Castro, que, também, abordava esse tema, discutindo sobre a fome mundial e a produção de alimentos.
Assim, toda essa batalha, seja da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, seja ações das várias campanhas nesse país, é justamente para que a gente não entregue toda a nossa riqueza, que constitui o nosso patrimônio histórico, genético, hídrico e territorial, aos estrangeiros ou para o capital internacional. Na região do Cerrado, sobretudo, no Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), temos vistos agressões violentas, vemos violações nas comunidades tradicionais que nos fazem chorar, tudo isso em nome de um capital que destrói para extrair nossa riqueza. Por isso é que a soberania alimentar ela se articula com a soberania dos povos, envolvendo, também, a soberania territorial, hídrica e genética. E se comer é antes de tudo um ato político, esse momento de conversa é também uma convocação. Uma convocação para o povo brasileiro, para os trabalhadores e trabalhadoras se somarem nesta luta pela soberania alimentar a pelo abastecimento popular, pela agroecologia, pelo Cerrado, pela Caatinga, pela Floresta Amazônica, por todos esses patrimônios que o povo brasileiro tem.
Para entender e enfrentar os desafios, a perspectiva de gênero é fundamental, justamente porque se as mulheres elas participam com 50% da produção de alimentos no mundo, não há como pensar agroecologia, abastecimento popular, soberania alimentar sem a participação efetiva das mulheres. As mulheres estão presentes hoje na cesta alimentar do povo brasileiro, com toda a sua diversidade, a partir dos quintais, da criação de pequenos animais, das frutas e das hortaliças. Ao estender a mão, as mulheres trazem essas mãos cheias de alimento. E não é qualquer alimento. É um alimento cheio de muita mística, de muito compromisso, de muita história, de muita responsabilidade. Esse alimento é também uma conexão de gerações, porque a juventude para nós é argila fundamental que cimenta esse elo entre quem foi, quem é, e quem será, mas já sendo.
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Nossa conversa vai chegando ao fim, mas os aprendizados seguem conosco, durante esse momento de trocas coletivas e “tão afetivas” também, nas palavras de Cidinha Moura (FASE MT). Ouvir e aprender com as experiências que têm dado vida aos territórios e garantido alimentação segura e de qualidade é inspirador, sobretudo nesse momento de pandemia, pois aquece as esperanças de que outros mundos são possíveis. Mundos nos quais comida de verdade é direito, é livre de conflitos, transgênicos e agrotóxicos e se pauta pela justiça racial e de gênero e pela diversidade cultural e biológica. É um alimento que “tem o rosto, a história e o sentimento da diversidade brasileira” nas palavras de Maria Kazé (MPA).
Durante toda a conversa, havia um sentimento compartilhado de saudade. De saudade dos encontros, da troca de saberes e conhecimentos entre agricultores e agricultoras que se fazem nos agroecossistemas, nos cultivos, junto às casas, nos espaços das feiras e nos tantos outros momentos coletivos onde a agroecologia é semeada. É uma “vontade de sentar e comer comida de verdade com vocês”, nas palavras de Cidinha Moura (FASE MT).
As experiências compartilhadas vêm de longe, se readequaram à pandemia, mas são frutos de processos históricos, políticos, sociais e produtivos, nos quais mulheres e homens, têm se engajado na defesa da terra e do território, dos direitos sociais, da produção justa e agroecológica e do fortalecimento dos caminhos de comercialização. São passos acumulados de uma longa trajetória por vida digna e alimentação saudável no campo e na cidade, que cobram uma atuação ativa do Estado junto aos povos do campo, das águas, das florestas e das cidades, na garantia de comida de verdade, em tempos de pandemia e sempre!
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[1] O Campo Unitário é uma articulação que integra diversos movimentos sociais e organizações do campo, das águas e das florestas, tais como movimentos da Via Campesina, Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag) e Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadores na Agricultura Familiar do Brasil (Contraf).
[2] Foi aprovado no Senado dia 06/08.
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Helena Rodrigues Lopes é Assessora de Agroecologia e Justiça Climática da ActionAid Brasil e doutoranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ).
Fabio Pacheco é Coordenador do Programa de Agroecologia da Associação Agroecológica Tijupá e professor do Departamento de Economia Rural da Universidade Estadual do Maranhão.