Como a China manteve a soberania sobre sua economia?
A constituição dos mercados chineses na visão da economista Isabella Weber, em Como a China escapou da terapia de choque
Indignada com o desconhecimento de seus professores de economia, na graduação em Berlim, das causas da crise financeira global de 2008, Isabella Weber decidiu aventurar-se a estudar em Pequim. Para sua surpresa, constatou que a economia lá ensinada era a mesma, dos manuais estadunidenses, de seu curso na Alemanha. A história, no entanto, de como a China convergiu para a corrente econômica dominante global após o período maoista, tornou-se seu objeto de pesquisa.
A China é neoliberal? Isabella Weber prefere tentar desvendar o modo e a razão pela qual o neoliberalismo tornou-se relevante na China. Sobretudo, compreender Como a China escapou da terapia de choque, título de seu livro recém-lançado pela Boitempo.
A trama dos acontecimentos da reforma chinesa, narrada por ela, estampa com clareza as forças que, ainda hoje, se digladiam para prevalecer nas decisões econômicas definidoras dos rumos das nações e, principalmente, da forma como o produto social é distribuído, entre nações e internamente às nações. As diferentes visões de mundo, fundantes das linhas de pensamento econômico, mostram-se tacitamente postas no debate chinês da década de 1980.
A China, diferentemente de outras nações periféricas, não foi obrigada ou seduzida, por forças internas ou externas – provenientes de instituições como o FMI, OCDE e Banco Mundial – a abraçar o receituário do Consenso de Washington, identificado como terapia de choque por Naomi Klein.
Impossível abordar esse tema sem comparar os resultados dos caminhos percorridos pela Rússia e pela China diante das receitas “sugeridas”: liberação de preços de uma só tacada, privatização, liberação do comércio exterior e fluxos de capitais, estabilização via austeridade fiscal e monetária etc. A produção nacional russa, em 1990, representava perto de 4% do produto mundial e caiu para 2% em 2017. A China recusou-se a adotar a terapia de choque ou, como sugere a autora, não destruiu sua economia de comando na esperança de que dali surgisse, automaticamente, uma economia de mercado. Sua participação relativa sextuplicou no mesmo período: saiu de 2,2% para 12,5% do produto mundial.
Seus estudos, leituras e as cinquenta e uma entrevistas que fez com economistas chineses, entre o final de 2015 e início de 2017, a levaram a ter contato com alguns antigos textos clássicos chineses, como Ghanzi e O Debate sobre o Sal e o Ferro, sobre regulação de preços e gestão de mercado. A partir desse momento, o debate sobre as reformas dos anos 1980 tomou outro colorido em sua visão, “ao reconhecer uma consciência de mercado distinta e de longa data entre as autoridades imperiais chinesas, bem como as teorias autóctones de comercialização por intermédio do Estado”.
Os neoliberais creem que a expansão chinesa é resultado da abertura do país e das políticas pró-mercado enquanto que os progressistas julgam a guinada ao neoliberalismo como uma traição imperdoável. Isabella Weber cita o economista Zhao Renwei para mostrar que o país não tinha opções: nos “anos 1978 e 1979, a China não poderia continuar sem mudanças. Não mudar não era uma possibilidade. Tivemos que reformar. Mas como reformar? Isso não estava claro”.
“Quando Mao morreu, a China ainda era um país muito pobre”, pontua Weber. Os reformadores colocavam suas fichas em despertar os interesses econômicos das empresas e dos indivíduos para liberar os poderes produtivos do país. Para isso, era preciso restruturar o sistema de preços. O que os dividia era a melhor forma de levar a cabo essa gigantesca missão: transitar do coletivismo e do igualitarismo para o incentivo econômico individual.
A autora não o afirma, mas não parece ser despropositado imaginar que havia forças intencionalmente dirigidas a conduzir o regime comunista ao colapso, especialmente entre aqueles que defendiam a liberalização brusca dos preços. Weber mostra detalhadamente os entendimentos de neoclássicos, ortodoxos mais radicias, keynesianos, bem como influências de economistas do Leste Europeu e de políticas adotadas para liberalização dos preços nas economias no final da Segunda Guerra. Nossa ênfase aqui, entretanto, é para a linha de atuação gradualista adotada pela China após os longos debates.
Weber nos conta que os economistas Liu Guoguang e Zhao Renwie foram pioneiros na iniciativa de repensar a relação entre planejamento e mercado na economia socialista. Na Conferência de Wuxi em 1979, a maior desde o início da Revolução Cultural, afirmavam que o planejamento econômico e o mercado não eram mutuamente excludentes e propunham que o Estado promovesse a livre concorrência e a regulação de preços por oferta e demanda, sem, entretanto, “deixar a mão invisível de Adam Smith influenciar o sistema socialista”.
O livro Economia socialista da China, de Xue Muqiao, foi, na visão de nossa autora, um esforço competente e sistemático de articular a teoria do valor de Marx com as reformas que a China perseguia. Para ele, a lei do valor – “a magnitude do valor é determinada pela quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário gasto em um produto” – devia ser entendida como algo em constante movimento, em flutuações de preços em torno do valor. O Estado deveria lançar mão dessa lei para regular a produção e a comercialização das mercadorias: “empregar e, ao mesmo tempo, restringir a operação espontânea da lei do valor para proteger as pessoas de violentas flutuações de preços”.
Sua ideia terminou por inspirar o que se chamou de sistema de preços de via de mão dupla, um sistema oposto à terapia de choque. O Estado permaneceu no controle de uma gama de bens essenciais, mas foi liberada a produção excedente desses bens e dos bens não essenciais, passando a ser regulada pelo mercado. Mais do que uma política de preços, o sistema constituía mercado. Conforme a autora, esse sistema “transformou as unidades produtivas em empresas orientadas para o lucro e abriu espaço para as relações de mercado florescerem”.
Com a adoção deste sistema de preços, em 1984, o governo chinês decidiu “deixar o cavalo correr”, metáfora usada pelo Diretor de Preços do Estado, Cheng Zhiping. Nova medida em 1985 abolia o limite de oscilação de mais ou menos 20% dos preços negociados quando as cotas de produtos como cimento, madeira e aço eram superadas. “Isso significava que o coração da economia industrial estava oficialmente sob o sistema de preços de via de mão dupla e a caminho do mercado”, diz Weber. Adicionalmente, os agricultores puderam passar a vender grãos diretamente no mercado ou ao Estado, que atuava como regulador das safras. Era o fim do sistema unificado de compra de grãos.
O sucesso da primeira metade dos anos 1980, contudo, não se manteve. Camponeses decidiram abandonar o cultivo por questões de preço e a oferta caiu. A generalização do novo sistema de preços provocou pressões inflacionárias. De volta à cena, ressurgia o debate entre liberar ao estilo big bang ou caminhar “tateando as pedras do rio”.
As posições dos dois economistas, expostas a seguir, tentam representar os dois lados do debate. Um economista que “foi alvo da campanha antidireitista de 1957”, estudou nos Estados Unidos e foi fortemente influenciado pelo neoliberalismo. De outro, um ex-aluno e professor da Universidade de Pequim, diversas vezes punido por suas pesquisas e que teve importante papel na disseminação de conceitos da economia ocidental e defendia um “mercado de ações socialista”.
Wu Jinglian (1930- ), “nascido em uma família de gerações de industriais e intelectuais”, teve presença marcante na disputa que se seguiu. Defendia a liberação completa e instantânea de todos os preços e austeridade nas políticas fiscal e monetária para conter pressões inflacionárias. Jinglian tinha sido fortemente influenciado pelo pensamento econômico estadunidense. Estudou na Universidade de Yale, citava Milton Friedman com frequência, conviveu com detentores de prêmio Nobel e com Herbert Giersch, que viria a ser presidente da conservadora Sociedade de Mont Pèlerin. Ao voltar à China, Jinglian dedicou-se a promover uma agenda radical de reformas. Seguiu uma carreira bem sucedida, teve vários livros publicados pela Universidade de Oxford, pelo MIT e por editoras chinesas. Era assíduo em programas de televisão.
Do outro lado da contenda, estava Li Yining (1930-2023). Estudou e foi professor na Universidade de Pequim e defendia que a reforma poderia fracassar por problemas advindos do novo sistema de preços, mas ressaltava o crucial estava nas reformas da propriedade, sem as quais não lograriam êxito. Yining opunha-se declaradamente à liberalização brusca de preços. Do abandono do planejamento e da liberalização abrupta de preços, não nasceria espontaneamente um mercado, defendia ele.
Ainda que as últimas forças em defesa do tratamento de choque tenham sido vencidas em 1986, a China novamente esteve a um passo de adotá-lo em 1988. A população receosa por mudanças que levassem a aumentos de preços ou a desabastecimento, correu às compras e aos bancos e protestou localmente contra as reformas de mercado. A inflação saiu do controle: em abril de 1989 os preços ao consumidor subiram 28%. Sem opção, os líderes chineses reverteram o processo de reformas. Novamente a China escaparia do big bang, mas seria marcada pelos terríveis acontecimentos da praça da Paz Celestial.
“A economista alemã manda um recado ao mundo e ao Brasil ao pedir coordenação mercantil e não mercantil no combate à inflação, o que significa uma mistura de controle de preços estratégicos e elevação da taxa de investimentos”, ressalta Elias Jabbour, revisor técnico do livro e autor do premiado China: o socialismo do século XXI.
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