Como é uma história branca?
Se desconhecemos ou escolhemos ignorar aspectos de nosso passado, não podemos nos reconhecer no presente e não podemos planejar um futuro que não seja excludente. E não é preciso ser branco para crer nas lógicas de uma história branca
Nos últimos cinco séculos, o mundo se configurou para contar a história da humanidade por um viés partidário da supremacia e da exclusão. Supremacia de quem? Da Europa e de seus povos brancos sobre o restante, os excluídos. No momento atual de nossa existência, ainda vivemos sob as lógicas de uma história branca, e que valoriza os dados da branquitude, em detrimento dos povos não brancos do planeta.
Uma história branca possui três eixos principais em sua formulação: a Europa, sua história e visão de mundo formam a primeira parte; os habitantes da Europa, ou seja, os povos brancos do continente, a segunda; e por último, a branquitude, uma ideologia e uma estrutura de poder desenvolvida para sustentar a supremacia branca.
A onda de globalização, iniciada pelos navegadores europeus, tratou de impor modos de vida, formas de pensar e estruturas socioeconômicas que, indubitavelmente, favoreciam os povos europeus. Um dos efeitos dessa expansão foi o rebaixamento dos povos não brancos, suas culturas e línguas a elementos insignificantes perante a historiografia branca.
Uma história branca é, naturalmente, uma história eurocêntrica. Ela nasce na Europa, entre povos brancos que inventam as raças ao redor do mundo, enquanto inventam a si mesmos. Nessa construção, inventaram o Ocidente, o homem branco, a Europa e sua autodeclarada superioridade.
A expansão da Europa para outros territórios criou o eurocentrismo. E, mesmo que o mundo não seja sinônimo deste pequeno continente, essa ideologia é exportada para as regiões colonizadas por ele. Até fora da Europa, ela ainda representa o centro de uma história branca. Mesmo longe, geograficamente, a Europa e a branquitude se fazem sempre presentes.
Em locais que populações brancas adentraram, como Brasil, Estados Unidos, Canadá, África do Sul, Quênia, entre outros, a visão de mundo que se impôs por meio de colonialismo, escravidão e genocídio, são ocidentais e brancas. Isso centra o mundo europeu e seus habitantes como o centro do saber, do progresso e da civilidade. Frente a construção dessa história, os herdeiros desse processo colonial tratam de manter seus laços e referências no mundo europeu, que lhe concedeu grande parte de seus privilégios.
Mesmo o branco não europeu (seja um uruguaio, um canadense ou um brasileiro), se encontra atrelado ao pensamento que povos brancos criaram sobre si mesmos, através da história. Essa forma de pensar, na qual a Europa e povos brancos são protagonistas, acaba por privilegiar o povo que a construiu. Os colonizadores vindos da Europa rebaixaram as populações a meros estrangeiros em seus próprios territórios e os povos brancos trataram de criar, manter e reproduzir essas formas de pensar e estruturas de poder supremacistas.. Escrito de outra forma, uma sociedade inteira foi criada em torno dos valores da branquitude.
Nas páginas de uma história branca se lê a supremacia dos povos brancos e a exclusão do resto (não brancos, não cristãos, não ocidentais, não europeus). Na falácia histórica de que o continente americano ou o Brasil só começam com a chegada de europeus, mora uma versão branca desse passado. Essa é, ainda, uma difundida visão histórica que privilegia o homem europeu. Os personagens do progresso civilizacional são brancos, as formas de pensar promovidas por essa versão são as de origem europeia, e elas favorecem uma visão de mundo cujo centro é, exclusivamente, a branquitude.
Seguir nesse rumo é preservar a exclusão de passados que fazem – ou deveriam fazer – parte de nosso presente e da nossa formulação de possibilidades de futuro. Se desconhecemos ou escolhemos ignorar aspectos de nosso passado, não podemos nos reconhecer no presente e não podemos planejar um futuro que não seja excludente. E não é preciso ser branco para crer nas lógicas de uma história branca.
As versões da história que privilegiam o ocidente em detrimento do restante colonizam mentes por todo o globo terrestre, independentemente da cor de pele, da língua falada ou da cultura em que se vive. Incrivelmente, onde os brancos puseram os pés, inferiorização frente ao mundo ocidental se seguiu. Esse processo foi também uma construção intelectual ao longo do tempo, e tornou possível que suas próprias vítimas se tornassem capazes de defender ideias e estruturas responsáveis pela sua miséria.
O conhecimento histórico está, muitas vezes, atrelado a estruturas de poder. No caso de uma história branca, feita por povos brancos da Europa (e mais tarde pelos seus herdeiros em diversas de suas colônias), sua lógica histórica está profundamente entrelaçada com a branquitude.
Como uma história feita por brancos possuía, e ainda possui, a tendência de colocá-los como o fator mais importante das narrativas sobre o passado, não é raro que o supremacista historiador veja sua história em sintonia com os seus privilégios atuais. Na lógica da branquitude sobre o passado, existem justificativas, seleção de fatos convenientes e silenciamento de fatos obscuros de sua história. Isso promove versões do passado que coadunam com a atual supremacia branca.
A história branca, ou o embranquecimento que se faz sobre o passado, normaliza e justifica as estruturas de poder que garantem melhores posições e recursos aos brancos, mesmo em países em que são numericamente minoritários, como o Brasil. Essa narrativa não entende que o processo de heroicização de si mesmo e inferiorização dos outros foi viabilizado por um processo histórico carregado de violência e com altas doses de romantização. Nesse sentido, depende de um apagamento, um esquecimento ou uma negação de fatos passados, que impeçam ou prejudiquem sua supremacia.
Uma história branca é uma história de progresso que omite o sangue atrelado a ele. As riquezas adquiridas através de invasões de terras estrangeiras e guerras de conquistas são omitidas. Os lucros gerados através da escravidão e colonialismo são apagados. A imposição de um sistema de desigualdade, no qual a servidão para uma privilegiada elite é eufemisticamente apresentada como liberdade, aparece escrita como sucesso civilizacional.
Esse tipo de narrativa sobre o passado ainda se perpetua. A centralidade do continente europeu ainda vive em nossa consciência histórica. O eurocentrismo e a naturalização do ser humano branco como superior, em diversas instâncias da vida, afetam a produção do conhecimento histórico. De que modo podemos compreender o diferente se só sabemos olhar através de uma epistemologia branca, que afirma ser a única fonte de produção de saber?
A questão não é a exclusão da Europa, dos brancos e da branquitude dos estudos históricos. A exclusão é uma técnica da escola historiográfica criada por brancos ao inventarem o mundo e a si mesmos, e não devemos seguir esse exemplo. Ocorre que não é possível lidar com a história se um pesquisador se der ao luxo de descartar que raça, gênero e opressões estão ligados com conceitos históricos e epistemológicos desenvolvidos por povos brancos com interesses próprios, e que, nos últimos quinhentos anos, têm afetado as nossas vidas.
A identidade de um historiador é um dos fatores que direcionam e guiam os seus interesses e estudos. Pesquisadores alinhados com a branquitude, com o eurocentrismo e com visões de mundo europeias, quando incapazes de enxergarem para além disso, tendem a reproduzir narrativas que privilegiam povos brancos.
Saber que há pesquisadores não brancos nas academias – e mesmo em outros espaços, uma vez que as universidades não são o apogeu do pensamento, e inclusive corroboram para a perpetuação de um sistema de exclusão e exploração – promove uma descolonização, um repensar de nossas origens e uma reescrita de nossa história. Ainda que os números não sejam satisfatórios, é necessário que pessoas com outras visões de mundo possam partilhar e produzir saberes que alterem os paradigmas atuais. Sem esquecer que pessoas não brancas podem ser colonizadas pelas suas formas de pensar, ainda é nelas que moram as esperanças das possibilidades de se criar algo novo.
Foi um grupo de latino-americanos, que existiram em ex-colônias subdesenvolvidas, que pensou uma filosofia da libertação e a teoria da dependência (Enrique Dussel, Vânia Bambirra, Ruy Mauro Marini); foram mulheres negras (Lélia González, Angela Davis, Kimberlé Williams Crenshaw), que viveram as opressões de gênero, raça e classe, que desenvolveram conceitos, práticas e teorias que desafiam o status quo e que as inseriram na arena das narrativas históricas; foram africanos, vítimas da civilização europeia, que desenvolveram diversos trabalhos sobre os efeitos mentais do colonialismo (Amílcar Cabral, Ngũgĩ wa Thiong’o, Obi Wali).
Esse pequeno parágrafo de exemplos demonstra como as pessoas que se deslocam dos lugares em que foram enquadrados – por uma história de dominação branca – são capazes de questionar as realidades impostas. Um questionamento que leva a novas possibilidades de mundo e que parte de situações concretas: a existência de pessoas que são odiadas e negligenciadas por formas de pensar que só valorizam temas subordinados à branquitude, e que tendem a enaltecer os dados dos povos brancos.
O saber que vem de fora da esfera da branca eurocêntrica possui capacidades verdadeiramente revolucionárias. Porque não se trata de ocupar os locais privilegiados e emular os atuais donos do poder, mas de transformar os saberes e mesmo os locais de produção do saber, entre eles a história, para que possamos nos reconciliar com a história e nós mesmos. A afirmação pichada em uma parede nas ruas de uma cidade brasileira, possuía uma precisão transformadora para os seres humanos: “Mate o branco que existe em você”. Desta maneira, outros mundos são possíveis.
Bruno Ribeiro Oliveira é mestre em História de África pela Universidade de Lisboa e doutorando do Programa de História e Artes da Universidade de Granada.