Como estão as candidaturas pretas ao legislativo municipal?
Há equilíbrio racial quando se trata da candidatura de pessoas pretas ao cargo de vereador nas eleições municipais dos 5.570 municípios brasileiros? Confira o quarto artigo da série do Opará Eleições

Sim, as pessoas pardas ou pretas são pessoas negras. Essa importante categoria política e analítica, negros e negras, permitiu acumular força e penetrar no debate político e jurídico sobre a questão racial no Brasil. O enfrentamento à desigualdade racial ganhou musculatura com a categoria “negro”. Ganhou, principalmente, porque as pessoas negras reúnem um conjunto de evidências, em todas as estatísticas nacionais, de que a igualdade material é de fato o objetivo que está longe de ser alcançado por esse grupo no Estado brasileiro.
Vários indicadores sociais e econômicos evidenciam a falta de oportunidade das pessoas negras. E, para fazer justiça, é necessário promover acesso a direitos. Esse argumento está muito bem descrito na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186 (ADPF 186) e na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 41 (ADC 41). Mais recentemente, a elevação das políticas de ações afirmativas ao status constitucional, por meio do Decreto nº 10.932/2022, consolidou o imperativo de que o Estado brasileiro deve buscar alternativas para romper o círculo vicioso das estruturas que perpetuam e alimentam o racismo no país.
O argumento da desvantagem e da igualdade de oportunidade estão consolidados. Porém, a desvantagem não é uma retórica política, ela está ancorada em elementos probatórios que demonstram que um determinado grupo está em desvantagem. E se for possível perceber desvantagem adicional dentro de um grupo já em desvantagem? Uma desvantagem dentro da própria desvantagem. Esse grupo não merece a mesma consideração em relação à igualdade? Estamos falando das pessoas pretas, aquelas que carregam no corpo a imagem de nossos ancestrais escravizados.
Não faltam evidências de diversas naturezas de que, dentro da população negra, existe um grupo que sente o impacto do racismo de forma mais aguda: as pessoas pretas. No racismo recreativo brasileiro, os corpos pretos são, com maior intensidade, alvos da fúria lombrosiana. Diante disso, nos perguntamos: há equilíbrio racial quando se trata da candidatura de pessoas pretas ao cargo de vereador nas eleições municipais dos 5.570 municípios brasileiros?
Para responder a essa questão, o Observatório da Eleição adaptou o Índice de Equilíbrio Racial (IER), de Firpo et al. (2022), de forma a isolar as candidaturas que se declaram pretas e compará-las com o peso representacional dessa população nos 5.570 municípios brasileiros.
A metodologia do IER permite avaliar a distribuição das candidaturas comparando dois grupos (pessoas pretas e brancas) em relação à sua representação demográfica. Para tanto, compara-se a participação relativa dos dois grupos mencionados com sua participação relativa demográfica (número da população local pertencente aos dois grupos raciais).
Conforme apresentado na tabela 1, o IER varia de -1 a 1. O primeiro representa a existência de candidaturas 100% de pessoas brancas, ao passo que o segundo, somente pessoas pretas. A condição de equilíbrio suporta uma diferença de 0,2, para mais e para menos. Para esta análise, o marcador de desigualdade será a sub-representação (-0,5 > -1) e sobrerrepresentação (0,5 > 1). Consideraremos a condição “moderada” como marcador de uma tendência apenas.
Tabela 1. Condição de acordo com o Índice de Equilíbrio Racial (IER).

Em diferentes áreas de políticas públicas, há elementos para afirmarmos que a maior vulnerabilização da população preta impacta também na sua participação política no âmbito dos movimentos sociais e da política institucional. Busca-se observar com esta análise se em processos eleitorais proporcionais (legislativo municipal) a distribuição da população preta na sociedade repercute nas candidaturas. A tabela 2 traz a distribuição do IER das candidaturas pretas por estado à Eleição de 2024.
Tabela 2: Índice de Equilíbrio Racial para candidaturas pretas na Eleição de 2024 para o legislativo municipal

Em 15 estados, que representam 57,69% do total, pelo menos metade dos municípios apresenta equilíbrio de representação entre pessoas brancas e pretas para as candidaturas ao legislativo municipal. Isto significa que, nesses municípios, as candidaturas refletem a composição racial da população local. Destacam-se os estados da Região Sul e os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde esse percentual é superior a 70%.
Olhando para a sub-representação de pessoas pretas, o estado de Alagoas é aquele que apresenta a maior porcentagem de municípios em uma realidade crítica: são 12,05% dos municípios na situação. Podemos interpretar que, em relação às candidaturas por si só, no geral, os partidos não são pressionados a validar postulações que apresentem uma desproporção entre brancos e pretos. Inclusive, esse efeito é marginal ou nulo (≤ 1%) para 42,3% (11) dos estados. Se ampliarmos nossa análise e focarmos naqueles estados que têm apenas 5% de municípios com sub-representação de pessoas pretas, essa realidade atinge 22 deles.
Quando se trata da sub-representação moderada de pessoas pretas nas candidaturas, apenas dois estados superam os 20% de municípios nesse cenário, Ceará e Alagoas, os dois da Região Nordeste. O destaque fica para o Amapá e os estados da Região Sul, com menos de 5% de seus municípios apontando sub-representação moderada.
O destaque desta análise fica para aqueles estados com maior representação de pessoas negras, em comparação com a composição racial dos municípios que os compõem. Quando comparamos apenas os cenários de sub-representação, equilíbrio e maior representação, ou os estados têm diferença pró sub-representação (Rio de Janeiro, Ceará e Alagoas) ou apresentam a proporção local de candidaturas pretas sobrerrepresentadas, superando o percentual de municípios onde há sub-representação dessa população, que é o caso dos demais estados.
Em seis cenários, a elevada representação (“sobrerrepresentação”) moderada de pessoas pretas compõe mais de 30% dos municípios dos estados. Esses cenários incluem dois estados da Região Nordeste – Sergipe e Paraíba – e quatro estados da Região Norte – Acre, Tocantins, Pará e Roraima. Apenas o estado do Rio de Janeiro apresenta uma “sobrerrepresentação” moderada de candidaturas pretas abaixo de 10% dos municípios.
No caso da maior representação de pessoas pretas, em relação à sua proporção na população local, apenas 6 estados se enquadram nessa situação e têm 1% de seus municípios com maior representação preta. Esses são os estados da Região Sul e os estados da Região Sudeste, com exceção de Minas Gerais.
Nos estados em que mais de 10% dos municípios possuem maior representação de pessoas pretas, encontramos um estado da Região Nordeste – Bahia – e o restante da Região Norte – Amapá, Roraima, Acre, Amazonas, Tocantins e Pará, com 37,5% dos municípios incluídos nesse cenário.
Considerando os cenários de equilíbrio e maior representação de pessoas pretas comparativamente com sua representação local, os estados com mais de 80% dos municípios nesse cenário são 21 do total. Apenas os estados do Rio Grande do Norte, do Piauí, do Ceará e de Alagoas, pela Região Nordeste, além de Roraima, apresentam a menor quantidade de municípios com esse cenário.
Como pode ser observado na figura 1, há um cenário de equilíbrio na distribuição das candidaturas pretas, onde as manhas que demarcam a sub-representação e sobrerrepresentação aparecem de forma esparsas, com prevalência para este último cenário.
Figura 1. Distribuição nacional da sub e sobrerrepresentação das candidaturas pretas ao legislativo municipal

O que nossa análise revela é que há o interesse da população preta de participar de forma orgânica da vida política brasileira. Elas colocaram seus nomes à disposição dos partidos, suas candidaturas foram homologadas e agora irão disputar a atenção do/as eleitores/as. Ou seja, não há déficit de demanda de candidaturas pretas para o legislativo municipal na Eleição de 2024. Nosso trabalho também indica que as elites partidárias nos municípios não produzem pontos de vetos às candidaturas pretas de forma a minimizar sua participação no processo eleitoral.
Considerando que a eleição de um vereador ou vereadora não é um ato de vontade, resta saber se variáveis que podem afetar o resultado, como a quantidade de recursos financeiros das candidaturas, impõem uma desigualdade material com impactos na competição eleitoral.
Se não há déficit de demanda de candidaturas pretas dispostas para construir um Brasil mais diverso, inclusive no âmbito do legislativo municipal, quais realidades as pessoas pretas encontrarão ao longo da campanha para alcançar o objetivo da corrida eleitoral? A ver.
O quinto e último texto da série do Opará Eleições abordará as características das candidaturas negras ao legislativo municipal.
Confira o terceiro texto da série Opará Eleições – Elites partidárias locais e recrutamento de candidaturas negras ao legislativo municipal.
FIRPO, S. et al. Desigualdade racial nas eleições brasileiras (Racial Inequality in Brazilian Elections). Available at SSRN 4111691, 2022.
Helga Almeida é professora doutora na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e Coordenadora do Opará Eleições. E-mail: [email protected]
Edmilson Santos dos Santos é professor doutor da Univasf ((Universidade Federal do Vale do São Francisco) e pesquisador do Opará. E-mail: [email protected]
Alisson Gomes dos Santos é doutorando no Programa de Pós- graduação em Economia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e pesquisador do Opará. E-mail: [email protected]
Ana Luísa Araujo de Oliveira é professora doutora na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e Coordenadora do Opará. E-mail: [email protected]