Elites partidárias locais e recrutamento de candidaturas negras ao legislativo municipal
As elites políticas partidárias locais promoveram maior participação de candidaturas negras para o legislativo municipal? Confira o terceiro artigo da série do Opará Eleições
O entendimento de que os grupos sociais historicamente marginalizados têm que ser incluídos nos processos políticos e decisórios já é uma discussão consolidada na Ciência Política (Young, 2000; Miguel, 2014; Miguel; Biroli 2014; Biroli, 2018). Obviamente, precisamos considerar que pautas raciais importantes no nível federal foram aprovadas com uma sub-representação de pessoas negras no Congresso Nacional. Muitas das políticas de ações afirmativas aprovadas nas últimas décadas obtiveram apoio de legisladores(as) não negros e negras, vindos de todo o espectro político. Dentro deste cenário, talvez a mais importante conquista tenha sido colocar as ações afirmativas no ordenamento jurídico brasileiro com status de emenda constitucional (art. 5º, § 3º da Constituição Federal de 1988), como o que aconteceu com o Decreto nº 10.932/2022, que promulga a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância.
Porém, esses avanços não são suficientes para promover, de fato, uma maior diversidade racial nos ambientes sociais e políticos, como nas casas legislativas municipais, que serão nosso foco neste texto. É preciso que observemos como as visões de mundo de pessoas negras estão sendo representadas por seus pares de raça no legislativo subnacional. Isso porque o desafio de promover maior diversidade e igualdade de oportunidade nos partidos políticos e no resultado do processo político ainda é evidente tanto nas eleições majoritárias, proporcionais ou nas indicações das elites partidárias para compor os cargos de confiança das burocracias.
O que se deve buscar é a garantia de representações negras em todos os espaços políticos, ou seja, é preciso que as vozes, as perspectivas e as experiências de pessoas negras figurem nos espaços de poder e influenciem e pautem os debates e as políticas públicas.
A partir dessa compreensão, a pergunta que surge para nós é se ser negro ou negra importa aos partidos políticos.
Em primeiro lugar, sabemos que o recrutamento para o legislativo envolve um cálculo racional dos partidos, que engloba diferentes variáveis.
Isso significa que a seleção intrapartidária de candidatos e candidatas não é um procedimento aleatório, regido por uma espécie de sorteio. As lideranças partidárias não abdicam de ter intencionalidade quando selecionam a nominata de vereadores e vereadoras. O recrutamento de candidaturas ao legislativo reflete, de fato, as disputas pelo poder da organização da instituição partidária.
Portanto, acreditamos que a existência de normas para promover diversidade é um indicativo seguro de que regras, informais ou não, produzem barreiras ou vetos partidários a determinadas candidaturas, como de mulheres e de outras minorias sociais (indígenas ou a população LGBTQIAPN+), e ainda das maiorias vulnerabilizadas, como a população negra.
Isso indica que a nominata de vereadores está associada a um conjunto de decisões que denotam, ao final e ao cabo, um tipo de política sobre representatividade negra. Expressa em um tipo de preocupação sobre a diversidade, principalmente para o caso analisado, racial.
A regra que instituiu que os votos dados a pessoas negras sejam contados em dobro para efeito da distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), mesmo sendo frequentemente burlada, infelizmente, ajuda a pressionar por mais participação dessa população no processo eleitoral.
Nossa intenção aqui é identificar o resultado do processo de recrutamento de candidaturas negras e se ela importa no nível local. E não estamos falando de uma forma abstrata de representação, mas de mensurar a representação que a população negra tem a partir de sua presença numérica nas cidades. Neste sentido, nos perguntamos: as elites políticas partidárias locais (municípios) promoveram maior participação de candidaturas negras para o legislativo municipal?
Para a busca por resposta, utilizamos o Índice de Equilíbrio Racial (IER) de Firpo et al. (2022). A metodologia do IER permite avaliar a distribuição das candidaturas comparando dois grupos (negros e brancos) em relação à sua representação demográfica. Para tanto, compara-se a participação relativa dos dois grupos mencionados com sua participação relativa demográfica (número da população local pertencente aos dois grupos raciais).
Conforme apresentado na tabela 1, o IER varia de -1 a 1. O primeiro representa a existência de candidaturas 100% de pessoas brancas, ao passo que o segundo, somente pessoas negras. A condição de equilíbrio suporta uma diferença de 0,2, para mais e para menos. Para esta análise, o marcador de desigualdade será a sub-representação (-0,5 > -1) e sobrerrepresentação (0,5 > 1). Consideraremos a condição “moderada” como marcador de uma tendência apenas.
Tabela 1. Condição de acordo com o Índice de Equilíbrio Racial (IER).
Com os dados de distribuição racial da população brasileira do Censo de 2022, por cada uma das 5.570 cidades, cruzamos com os dados da distribuição das candidaturas ao legislativo municipal por raça/cor nos partidos. Considerando o número de partidos políticos no Brasil, estabelecemos como critério para definir a amostra os partidos que receberam mais de R$ 100 milhões do Fundo Especial Campanha, cujo critério de distribuição está previsto na Lei nº 9.504/1997, artigo 16-D – o que resultou na seleção de 12 partidos políticos para a investigação.
A amostra foi composta por 12 partidos políticos, de um total de 29 que receberam recursos do fundo: PDT (3,51%); PL (17,87%); PODE (4,77%); PP (8,41%); PSB (2,98%); PSD (8,48%); PSDB (2,98%); PSOL (5,56%); PT (12,49%); REPUBLICANOS (6,93%); UNIÃO (10,81%); e MDB (8,15%). Juntos, esses partidos são responsáveis por 92,94% do total do fundo.
Como pode ser observado na tabela 2, os partidos apresentam diferentes capilaridades no que diz respeito à apresentação de candidaturas ao legislativo municipal. Há três grupos distintos, os que disputam em, no mínimo, 50% dos municípios brasileiros (MDB, PT, PSD, PP e União); entre 30% e 50% (REPUBLICANOS, PL, PSB, PSDB, PODE e PDT); e abaixo de 10%, PSOL. As diferentes capilaridades impactam na possibilidade de eleger candidaturas ao legislativo municipal, pois nas cidades que não apresentam candidaturas o destino já está selado.
Tabela 2. Distribuição do número de cidades em que os partidos apresentam candidaturas ao legislativo municipal.
Na tabela 3, apresentamos a distribuição do IER contemplando 3 realidades (níveis) possíveis. São elas: a condição de equilíbrio, a sub-representação e a sobrerrepresentação. No entanto, é importante ter em mente que, no total, serão cinco categorias trabalhadas pelo Opará Eleição, as 3 supracitadas e a sub e sobrerrepresentação moderada.
Tabela 3. Distribuição do IER por três níveis: equilíbrio, sub-representação e sobrerrepresentação.
A primeira coluna demonstra a porcentagem de municípios em que esses partidos têm candidaturas que demonstram equilíbrio quando se trata de IER, ou seja, onde há, em certa medida, uma representação demográfica que reflete a distribuição de pessoas negras e brancas no município, de acordo com a divisão racial da população. Na segunda coluna, estão indicadas as porcentagens de municípios em que há sub-representação da população negra no recrutamento à disputa legislativa. Já na terceira coluna, está descrita a categoria que definimos como “maior representação” negra, sempre em relação à composição da população local. A sobrerrepresentação indica vantagem representacional.
O que se percebe, independentemente da quantidade de recursos recebido pelo fundo, é que há um certo equilíbrio na distribuição das candidaturas negras ao legislativo municipal. Na média, os partidos conseguiram garantir a representação da população local na nominata ao legislativo municipal. Ou seja, na média, sem o PSOL, não há variáveis que afetem essa distribuição em 35,56% dos partidos. A diferença entre o menor e maior valor percentual é de 6,63 pontos percentuais (pp). A exceção da análise é o PSOL. Quando incluímos o PSOL, essa diferença aumenta para 14,53% – mais que o dobro. Esse resultado poderia até insinuar que o PSOL tem dificuldades de representar a sociedade onde lança suas candidaturas ao legislativo municipal, como veremos adiante.
A categoria “sub-representação”, como já foi dito, demonstra que as candidaturas negras estão abaixo de sua representação local. O que indicaria uma desvantagem de largada à maior equidade na possibilidade de compor uma casa legislativa que represente minimamente a sociedade local. Quando retiramos o PSOL, essa realidade afeta 21,07% dos municípios em que os partidos disponibilizaram candidatos ao legislativo. Ou seja, em média, em 21,07% dos municípios houve uma disponibilização, pelos partidos, de uma cota de candidatos brancos maior do que a população branca local. A diferença entre a menor e a maior é de 7,13 pp. Quando incluímos o PSOL, essa diferença sobe para 10,79 pp.
O PSOL é o partido em que a “sub-representação” alcança o menor valor. Ou seja, o partido, acreditamos, fez um esforço para garantir que suas candidaturas ao legislativo municipal não representassem proporcionalmente uma diferença pró-pessoas brancas.
Quando observamos os partidos que dispuseram uma “sobrerrepresentação” de pessoas negras entre as candidaturas nos municípios em relação à distribuição racial local, há pontos que chamam atenção. Antes de tudo, é preciso considerar a maior dependência da população negra das políticas públicas sociais no município, por conta da desigualdade. Por isso, a priori, uma sobrerrepresentação negra não deve ser qualificada como um problema. Podemos conjecturar que a maior representação de pessoas negras no legislativo guardaria maior conexão das políticas promovidas pelo legislativo municipal com a população mais vulnerável. Neste caso, o PT e o PSOL produzem uma distorção que os aproxima dos grupos mais vulnerabilizados.
Na média, extraindo-se os dois partidos, a sobrerrepresentação atinge 16,57% dos municípios/partidos. O esforço de garantir um maior percentual de candidaturas negras é inferior ao esforço de sua sub-representação. No caso do PT/PSOL, essa sobrerrepresentação quase que duplica, chegando a 32,27%. A diferença entre o maior e o menor valor é de 6,77%, indicando uma baixa diferença de comportamento quanto ao recrutamento de candidaturas negras. Quando incluímos o PSOL, essa diferença, em pontos percentuais, sobe para 26,79. Esse resultado indica que o PSOL imprimiu maior esforço em garantir candidaturas negras acima da representação da sociedade local.
As diferenças não se dão apenas quando consideramos a distribuição do IER nos 5.570 municípios brasileiros. A distribuição nacional da participação das candidaturas negras ao legislativo municipal (sobrerrepresentação) na eleição de 2024 apresenta uma variação local importante, como pode ser observado no mapa dos partidos: PDT; PL; PODE; PP; PSB; PSD; PSDB; PSOL; PT; REPUBLICANOS; UNIÃO; MDB.
Por tudo isso, a PEC da Anistia, que legitimou a retirada de direitos à população negra na eleição de 2022, é uma sinalização ruim aos partidos diante do esforço necessário de garantir recursos às candidaturas negras, considerando o histórico de anistias. Em 2015, a primeira anistia que afetou o direito das mulheres (Lei nº 13.165/2015). Em 2019, foi aprovada uma nova anistia por desrespeito ao investimento mínimo nas candidaturas femininas (Lei nº 13.831/2019). Em 2021, a Proposta de Emenda Constitucional 18 (PEC 18/2021) retirou qualquer sanção aos partidos que não cumpriram a cota de gênero. Agora, a PEC 9/2023 anistiou os partidos que não cumpriram as cotas mínimas de financiamento das candidaturas de sexo, sexualidade e raça. PSOL, NOVO e REDE foram os únicos partidos que não garantiram votos à anistia. As anistias demonstram, com nitidez, o poder das elites brancas masculinas no processo eleitoral. Resta saber se elas transbordam ao judiciário.
Portanto, as anistias são um desserviço do Congresso Nacional ao enfrentamento das desigualdades na representação política nacional. O que fica nítido é que os partidos têm apostado no maior esgarçamento da crise de representação como uma estratégia de manutenção do poder masculino e branco na política nacional.
Considerando o papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal (STF), de defesa das maiorias vulnerabilizadas e das minorias, restou apenas aos prejudicados ingressarem com um remédio constitucional (Ação Direta de Inconstitucionalidade) a fim de estancar o prejuízo cumulativo que o legislativo federal vem causando às candidaturas das mulheres e candidaturas negras: ADI 7707 e 7706.
O quarto texto da série do Opará Eleições abordará o impacto no recrutamento em candidaturas pretas ao legislativo municipal.
Confira o segundo texto da série Opará Eleições – A participação da mulher negra e o retrato da competição para o legislativo municipal.
Referências
BIROLI, Flávia. Gênero e Desigualdades: Limites da Democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018.
MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Editora Boitempo, 2014.
MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014.
YOUNG, Iris Marion. Inclusion and Democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000.
Helga Almeida é professora doutora na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e Coordenadora do Opará Eleições. E-mail: [email protected]
Edmilson Santos dos Santos é professor doutor na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e pesquisador do Observatório Opará. E-mail: [email protected]
Alisson Gomes dos Santos é doutorando no Programa de Pós- graduação em Economia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e pesquisador do Opará. E-mail: [email protected]
Roberto Silva dos Santos é mestrando do Programa de Pós-graduação em Extensão Rural da Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e pesquisador do Observatório Opará. E-mail: [email protected]