A participação da mulher negra e o retrato da competição para o legislativo municipal
Se a presença negra já é um problema no sistema político brasileiro, a da mulher negra torna essa realidade ainda mais “distópica”. Confira o segundo artigo da série do Opará Eleições
Apesar do racismo à brasileira, como aponta Edward Teles (Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica), e da tradição acadêmica, especialmente da Ciência Política, em torno dos estudos sobre eleição, a agenda de pesquisa visando analisar as regras do processo eleitoral e seus resultados ainda não alcançou a população negra de forma sistemática. Esse não é um tema central na Ciência Política, o que contrasta com sua importância e necessidade. Apesar de ser uma temática que impacta fortemente a vida da população brasileira, e existir estudos importantes no Brasil sobre o tema, ainda não há uma agenda de forma a subsidiar permanentemente o debate sobre a participação efetiva do negro no processo eleitoral, de forma que este tenha sucesso no pleito e possa representar a maior parcela da população brasileira.
A ideia do Observatório Opará de reunir um conjunto de pesquisadoras e pesquisadores dispostos a investir tempo, energia e esforço intelectual na construção de conhecimento relativo exclusivamente à agenda raça/eleição, ocupando este importante e imprescindível espaço, objetiva colocar a análise racial do processo eleitoral legislativo no centro de nossa preocupação política. Partimos do espaço da academia, para construir conhecimento sistematizado a fim de alcançar a sociedade com informações que corroborem com a conscientização social sobre a temática e assim qualifique o debate e o nível de reflexão sobre a temática eleições e a importância da participação do povo negro.
Maior representatividade racial em todos os espaços sociais e políticos qualifica e garante uma democracia de melhor intensidade para toda sociedade. Ver a população negra em todos os espaços políticos sinaliza que barreiras institucionais, sobretudo, foram mitigadas ou transformadas de forma a não restringirem o acesso de pessoas negras a eles. No entanto, o número de pessoas negras neste espaço também nos fala o quanto temos que avançar para que a população negra de fato tenha equidade racial no espaço político. Alguns números de pessoas negras, em especial de mulheres, chegam a 0%. Não podemos desconsiderar que, por conta do processo de vulnerabilização da população negra, ela é alvo prioritário das políticas públicas de combate às desigualdades. Desta forma, ocupar os espaços políticos de poder, é ter a oportunidade de formular políticas públicas que de fato alcancem de forma qualitativa o povo negro.
Ter pessoas negras nos diferentes parlamentos da federação brasileira, com capacidade de tomar decisões sobre as políticas que afetarão sua comunidade, pode implicar positivamente na produção de políticas públicas mais responsivas. Ou, pelo menos, trazer para as casas legislativas um contraponto necessário para o enfrentamento do racismo estrutural e institucional que impacta as políticas públicas.
Esse enfrentamento só se dará se também compreendermos o perfil da burocracia da ponta, no que se refere aos mais vulnerabilizados, majoritariamente mulheres. Essas que são maioria na assistência social, na saúde e na educação, quando falamos de poder executivo. A maior representatividade da mulher negra no legislativo municipal pode conectar a política, a burocracia e normas que melhore os serviços dos que mais necessitam.
Se a presença negra já é um problema no sistema político brasileiro, a da mulher negra torna essa realidade ainda mais “distópica”. O relatório “Cidades, raça e eleições: uma análise da representação negra no contexto brasileiro”, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), já revelava a força estrutural do racismo brasileiro. Na eleição de 2020, por exemplo, 57,16% dos municípios brasileiros (3.184) não elegeram nenhuma mulher negra.
Pensando em 2024, não sabemos como será o resultado do pleito eleitoral, mas urge que desde já observemos a presença e a ausência de mulheres negras entre as candidaturas, o estímulo e o desincentivo, dos partidos e das lideranças partidárias ao recrutamento dessas candidaturas. Nesse sentido, buscamos analisar essa realidade por meio do Índice de Equilíbrio Racial (IER), que tem como objetivo avaliar o nível de representatividade entre dois grupos: uma população de referência (população de mulheres negras e brancas) e uma subpopulação de interesse (candidaturas de mulheres negras e brancas). Portanto, mede se a proporção da subpopulação de interesse reflete o mesmo tamanho desses grupos na população de referência. No nosso caso, desejamos analisar se a proporção de candidaturas negras em relação a soma das candidaturas de mulheres negras e brancas reflete idealmente a mesma proporção da população de mulheres negras em relação ao total de mulheres negras e brancas.
Para a busca por respostas, utilizamos o Índice de Equilíbrio Racial (IER) de Firpo et al. (2022). A metodologia do IER permite avaliar a distribuição das candidaturas comparando dois grupos (mulheres negras e brancas) em relação à sua representação demográfica. Para tanto, compara-se a participação relativa dos dois grupos mencionados com sua participação relativa demográfica (número da população local pertencente aos dois grupos raciais).
Conforme apresentado na tabela 1, o IER varia de -1 a 1. O primeiro representa a existência de candidaturas 100% de pessoas brancas, ao passo que o segundo, somente pessoas negras. A condição de equilíbrio suporta uma diferença de 0,2, para mais e para menos. Para esta análise, o marcador de desigualdade será a sub-representação (-0,5 > -1) e sobrerrepresentação (0,5 > 1). Consideraremos a condição “moderada” como marcador de uma tendência apenas.
Tabela 1. Condição de acordo com o Índice de Equilíbrio Racial (IER).
Para essa análise, utilizamos como referência os dados raciais do Censo do IBGE de 2022, considerando apenas a população feminina para ambos os grupos. Note que não se trata de uma análise dimensional entre população masculina e feminina. Estamos aqui identificando se a representação de candidaturas femininas entre mulheres negras e brancas é proporcional à representação da demografia dos dois grupos localmente quando comparado entre si.
A Tabela 2 apresenta o total e o percentual dos municípios em condição de “sub-representação” e “sobrerrepresentação” em relação às candidaturas de mulheres para o pleito de vereadores por unidade da federação. Para nós, a desigualdade é da quando o IER fica acima de 0,5 e abaixo de -0,5.
Conforme a tabela, o estado do Paraná apresentou o maior percentual dos municípios onde as candidatas mulheres negras estão “sub-representadas”, com aproximadamente 15% das unidades municipais. Em termos absolutos, são 60 municípios dos 399 existentes. Em segunda posição, está o estado do Ceará, onde 23 dos 184 municípios apresentaram “sub-representação da” de candidatas negras, respondendo por 12,5% dos municípios do estado.
Apesar de estar na quarta posição, em São Paulo, onde concentra-se o maior contingente populacional do país, em 62 municípios houve “sub-representação” de candidatas negras, respondendo por 10,3% do total de municípios.
Evidencia-se que a “sub-representação da” não está diretamente relacionada às regiões com maior presença de mulheres brancas. Isso se observa pelo fato de que, nas quatro primeiras posições (Paraná, Ceará, Rio Grande do Norte e São Paulo), apenas um estado de uma região com predominância de população branca (Paraná) aparece entre os mais mal colocados no que diz respeito ao desequilíbrio em desfavor da população feminina negra. Em dois estados do Norte, Amapá e Amazonas, não foram registradas unidades com desequilíbrios máximos, acima do nível considerado do.
Na outra direção, temos que a “sobrerrepresentação” esteve mais no Norte, Nordeste e Centro-oeste. O estado com maior desequilíbrio em favor da população negra feminina foi Roraima, com 13,3% dos municípios. Apesar de ser um estado pequeno, com apenas 15 cidades, em duas delas as candidaturas de mulheres negras foram superiores ao tamanho populacional real. Em segunda e terceira posições estão Rondônia, com cinco dos 52 municípios, e Rio Grande do Norte, com 16 municípios dos 167, correspondendo ambos a 9,6%.
Note que, em contraposição ao observado nas áreas com maior “sub-representação”, as áreas com “sobrerrepresentação da” são as regiões onde a população de mulheres negras é relativamente maior do que a população de mulheres brancas. No Paraná, em apenas três municípios dos 399 houve “sobrerrepresentação” em favor da população feminina negra. No Rio Grande do Sul, em apenas um município. Em Santa Catarina, não houve municípios em situação de sobrerrepresentação extrema.
Tabela 2. Sub e sobrerrepresentação de candidatas negras ao legislativo municipal por estado
A Figura 1 apresenta o mapa do Brasil com o IER por município em relação às candidaturas para vereadores entre as mulheres negras e brancas e as cidades em condição de equilíbrio. A concentração de pontos em direção à “sub-representação” está localizada na região Sul, especialmente Paraná e Santa Catarina, e na região Sudeste, com maior concentração em São Paulo, enquanto aqueles municípios com “sobrerrepresentação” concentram-se no Norte, Nordeste e Centro-oeste.
Figura 1: IER para candidaturas negras ao cargo legislativo na Eleição de 2024.
A Figura 2 apresenta o mapa do Brasil em relação ao IER das candidaturas de mulheres negras e brancas para vereadores, separadas por condição de “sub-representação” (menor que -0,5) e “sobrerrepresentação” (maior que 0,5). Através desses mapas, ficam mais visíveis os locais onde há um desafio maior de convergir para um cenário de equilíbrio das candidaturas ao legislativo municipal em relação às mulheres negras.
Figura 2: Sub e sobrerrepresentação da de candidaturas negras ao cargo legislativo na Eleição de 2024.
Há um elemento importante que precisa ser sopesado nesta análise. A distribuição racial por municípios não é exatamente a distribuição racial das demandas por políticas públicas municipais. Portanto, a “sobrerrepresentação” nas regiões de maiores desigualdades pode representar maior correspondência entre legislativo e público-alvo das políticas.
O que precisaremos analisar ao final da eleição é se as condições objetivas de competitividade são as mesmas e se o diferencial de competitividade afeta a captura de votos. O que se espera do vigor de nossa democracia é ver, a cada eleição, o aumento da participação da mulher negra e de seu sucesso eleitoral. Neste sentido, é importante que o Ministério da Igualdade Racial tenha publicado o “Guia eleitoral com perspectiva feminina e negra”, em parceria com o Senado Federal e o Ministério das Mulheres, para melhor capacitar as mulheres negras. Outra iniciativa importe organizada pela sociedade civil é da “Tenda das Candidatas” na capacitação à campanha eleitoral das lideranças feministas, antirracistas e defensoras dos direitos humanos. O que esperamos é que os partidos garantam condições equânimes de competitividade com as mulheres brancas e com os homens de maneira geral.
O terceiro texto da série do Opará Eleições abordará a participação dos partidos no recrutamento de candidaturas negras nas eleições de 2024.
Confira o primeiro texto da série Opará Eleições – Eleições 2024: Competição ao legislativo municipal e a participação de pessoas negras.
Helga Almeida é professora doutora na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e Coordenadora do Opará Eleições. E-mail: [email protected]
Ana Luísa Araujo de Oliveira é professora doutora na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e Coordenadora do Observatório Opará. E-mail: [email protected]
Alisson Gomes dos Santos é doutorando no Programa de Pós- graduação em Economia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e pesquisador do Opará. E-mail: [email protected]
Jacyara Silva de Paiva é doutora na UFES (Universidade Federal do Espírito Santos) e pesquisadora do Observatório Opará. E-mail: [email protected]
Bibliografia
FIRPO, S. et al. Desigualdade racial nas eleições brasileiras (Racial Inequality in Brazilian Elections). Available at SSRN 4111691, 2022.
TELLES, E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.