Eleições 2024: Competição ao legislativo municipal e a participação de pessoas negras
A baixa representatividade das pessoas negras nos espaços políticos se deve pela carência de postulantes aos cargos políticos? Confira o primeiro artigo da série do Opará Eleições
No Brasil do século XXI, ainda são marcas profundas da organização política do território as capitanias hereditárias implantadas na colonização, com famílias que se perpetuam no poder, assim como o que se fez por 380 anos de escravização da população negra – a subalternização e a desvalorização do povo negro, a negação dos seus interesses. A primeira constrói estruturas para a perpetuação do poder, inclusive das regras de funcionamento do sistema de competição política, e a segunda vulnerabiliza uma população enquanto cidadãos, por meio da inclusão tardia na educação e em outros espaços de poder. A combinação dessas marcas gera barreiras poderosas para garantir o que se espera de uma verdadeira democracia: que os interesses de todos os cidadãos possam estar representados na arena política decisional.
Em muitos lugares das modernas democracias ocidentais, das mais antigas às mais recentes, há uma preocupação com o vigor da vida política como expressão genuína de uma sociedade. Por diversos mecanismos, que não cabem neste texto explorar, a vida política institucional foi consolidando um movimento de reprodução dos interesses de quem está no poder. Políticos profissionais, apesar de eleitos, defendem seus próprios interesses de poder, com pouca ou nenhuma conexão com a complexidade e a diversidade de interesses da sociedade que os elegeu. Sob o manto desta realidade está a crise de representação política das democracias.
O desinteresse pela política, a desconfiança e a não participação da maioria dos cidadãos no processo político nas eleições, mas também no período entre as eleições, empobrece a vida política e contribui para manter a perpetuação de interesses hereditários, colaborando com a cisão das democracias.
Se a democracia não tem cumprido todas as suas promessas de ser um regime político justo e vigoroso, capaz de representar uma dada sociedade, sem ela, tão pouco. A situação fica ainda mais lastimável, principalmente para aqueles grupos mais vulneráveis ao silenciamento, os grupos vulnerabilizados, sendo minorias, como os indígenas, ou maiorias numéricas, como as mulheres e as pessoas negras.
No que diz respeito à agenda racial, apesar de ainda pouco explorada pelo ambiente acadêmico, jurídico e político, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (Decreto nº 10.932/2022), que eleva ao status de emenda constitucional as políticas de ações afirmativas, aponta deveres e desafios ao ambiente político local, os municípios. Diante disso, o Observatório Opará reuniu um grupo de pesquisadoras e pesquisadores para fazer uma análise de longo prazo da questão racial na eleição, iniciando com a eleição municipal de 2024.
Apesar dos problemas já apontados aqui, de dificuldade de participação da população negra do processo político, este primeiro trabalho busca compreender o interesse cívico de negras e negros pela competição política municipal. A baixa representatividade das pessoas negras nos espaços políticos se deve pela carência de postulantes aos cargos políticos?
Para a busca por resposta, utilizamos o Índice de Equilíbrio Racial (IER) de Firpo et al. (2022). A metodologia do IER permite avaliar a distribuição das candidaturas comparando dois grupos (negros e brancos) em relação à sua representação demográfica. Para tanto, compara-se a participação relativa dos dois grupos mencionados com sua participação relativa demográfica (número da população local pertencente aos dois grupos raciais). O índice tem como grupo de referência a população negra local/municipal e busca capturar em que medida ela está representada nas candidaturas ao legislativo municipal (grupo de interesse).
Conforme apresentado na tabela 1, o IER varia de -1 a 1. O primeiro representa a existência de candidaturas 100% de pessoas brancas, ao passo que o segundo, somente pessoas negras. A condição de equilíbrio suporta uma diferença de 0,2, para mais e para menos.
Tabela 1. Condição de acordo com o Índice de Equilíbrio Racial (IER).
Outras condições possíveis são a sub-representação e a sobrerrepresentação. De um lado, a sub-representação indica que o número de postulantes ao cargo de vereador não consegue absorver a diversidade racial da forma como ela se apresenta num determinado município. De outro, a “sobrerrepresentação” indica que o número de candidaturas negras é superior à sua representação da população autodeclarada naquele município. Desta forma, a sub e sobrerrepresentação moderada é maior que 0,2 e menor que 0,5, enquanto a sub e sobrerrepresentação é maior que 0,5 e menor que 1.
Em nossa análise buscamos identificar o IER nas candidaturas ao cargo de vereador(a) dos 5.570 municípios brasileiros, promovendo uma análise ajustada pelo perfil demográfico local. Utilizamos os dados do Censo Demográfico do IBGE, realizado em 2022, como base oficial para a representação racial da população de cada município e os dados do Tribunal Superior Eleitoral para identificar as candidaturas negras nas eleições municipais de 2024. Nossa hipótese era de que os grupos (brancos e negros) representem, em termos de candidaturas ao legislativo municipal equilíbrio em relação ao tamanho da população, convergindo o índice para zero.
Então, nos perguntamos: negras e negros têm se candidatado, proporcionalmente, ao legislativo municipal? Em última medida, essa análise visa mapear o quanto os partidos políticos têm prezado pela promoção de candidaturas negras, proporcionando aos eleitores(as) brasileiros(a) tomar decisões quanto a representação racial no poder legislativo municipal.
A tabela 2 mostra o número total de município (mun.), por unidade da federação (UF), assim como o número e percentual de municípios com “sub-representação” e a “sobrerrepresentação”, por UF. A partir do percentual, foi elaborado um ranking da “sub-representação” e da “sobrerrepresentação” dos estados.
Tabela 2. Percentual de municípios com “sub-representação” e “sobrerrepresentação” de candidaturas ao legislativo, por estados, na Eleição de 2024.
A Figura 1 apresenta o resultado geral do IER e da condição de equilíbrio das candidaturas de vereadores(as) entre pessoas negras e brancas, nas eleições municipais de 2024. De um lado, na figura a esquerda (geral) é possível visualizar o impacto regional na distribuição das candidaturas. De outro, na figura a direita (equilíbrio), identifica-se a prevalência de equilíbrio racial entre o quantitativo de candidaturas em relação a população municipal.
Figura 1: Distribuição do Índice de Equilíbrio Racial (IER), por município, e a zona de equilíbrio.
De forma panorâmica, é possível perceber certo equilíbrio da candidatura nas eleições municipais proporcionais entre a população negra e branca. No entanto, há padrões regionais diferentes: nas regiões Sudeste e Sul, é percebe-se maior “sub-representação” da população negra, enquanto no Norte e Nordeste há representação maior de negros nas candidaturas.
Do ponto de vista proporcional, a “sub-representação”, como desigualdade máxima, atinge aproximadamente 5% dos municípios brasileiros e a sobrerrepresentação, cerca de 3%. Efetivamente o maior percentual de “sub-representação” se encontra nas regiões Sudeste e Sul, com maior prevalência desse cenário no estado do Paraná. Naquele estado, pelo menos, 18% dos municípios estão em situação de desequilíbrio em desfavor da população negra de forma crítica. Considerando toda a região Sul, ao menos 10% dos municípios têm “sub-representação”. Quando analisamos a “sobrerrepresentação” nessa região, apenas 5 municípios apresentaram um percentual maior de candidaturas negras do que a representação populacional local de forma crítica, sendo estes localizados no Paraná (4) e Santa Catarina (1). Ou seja, nesta região há uma dificuldade dos partidos, no âmbito do município, em garantir participação da população negra no pleito ao legislativo nas eleições municipais de 2024.
De forma contrária, a maior representação negra está nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, correspondendo a 86% do total de municípios com sobrerrepresentação. O estado do Ceará teve 3 municípios com ”sobrerrepresentação”, dos 184 existentes. O Amapá apresentou a maior taxa de municípios com sobrerrepresentação, com 18%, seguido pelo Sergipe, com 13,3%. Nessas regiões, os estados de Amapá, Sergipe, Tocantins, Roraima, Pará, Amazonas e Bahia, não contabilizaram nenhum município com sub-representação.
A Figura 2 apresenta a distribuição geográfica dos municípios brasileiros com sub-representação e sobrerrepresentação nas candidaturas de vereadores entre negros e brancos para a eleição de 2024. Como já apontado anteriormente, a “sub-representação” está predominantemente concentrada nas regiões Sul e parte do Sudeste e a “sobrerrepresentação” nas regiões Norte, Nordeste e parte do Centro-Oeste. Apenas dois estados, Rio de Janeiro e Espírito Santo, não registraram nenhum município com “sub-representação” ou “sobrerrepresentação”, de acordo com os critérios estabelecidos para este cenário.
Figura 2: Distribuição nacional da sub e sobrerrepresentação de candidaturas negras
Considerando o impacto da desigualdade racial na eleição do legislativo municipal, os resultados indicam um efetivo interesse da população negra em se colocar à disposição para contribuir com o processo político através de candidaturas e de um recrutamento pelos partidos locais que, no geral, estimulam a participação.
Independentemente das colorações partidárias, o espaço político necessita ser enegrecido e o primeiro passo é que os partidos e as lideranças políticas locais se esforcem para atrair e recrutar pessoas negras – o que, pelos IER, de fato parece estar acontecendo em nível nacional. De modo mais amplo, há mais candidaturas a vereador de negros e negras do que de brancos e brancas.
Diante do que foi apresentado através da aplicação do Índice de Equilíbrio Racial, embora tenhamos sido conservadores(as) na qualificação dos desequilíbrios críticos, os resultados indicam que os desequilíbrios são pontuais, sendo a “sub-representação” concentrada na região Sul e Sudeste, enquanto há “sobrerrepresentação” nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste.
Resta saber se essas candidaturas são competitivas diante dos desafios colocados na disputa de voto onde os atuais vereadores, os recursos de campanha e os ativos colocados à disposição pela atual administração – como ter ocupado cargo na estrutura de governo – podem produzir desequilíbrios que dificultem o sucesso eleitoral das candidaturas negras. Além disso, a “PEC da Anistia” (9/23) pode estimular a quebra da regra do repasse de verba às candidaturas negras na expectativa de que, novamente, o Congresso Nacional possa perdoar os partidos.
Na série do Opará Eleições, no segundo texto será abordada a participação de mulheres negras nas eleições de 2024.
Bibliografia
FIRPO, S. et al. Desigualdade racial nas eleições brasileiras (Racial Inequality in Brazilian Elections). Available at SSRN 4111691, 2022.
Helga Almeida é professora doutora na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e Coordenadora do Opará Eleições. E-mail: [email protected]
Ana Luísa Araujo de Oliveira é professora doutora na Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) e Coordenadora do Observatório Opará. E-mail: [email protected]
Alisson Gomes dos Santos é doutorando no Programa de Pós- graduação em Economia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e pesquisador do Opará. E-mail: [email protected]