Como financiar o auxílio emergencial
Na contramão do que pensa e faz o governo, este artigo do Observatório da Economia Contemporânea propõe-se a demonstrar que é possível financiar a baixo custo e com efeitos positivos sobre a situação fiscal, um programa robusto de auxílio emergencial, tanto para um maior número de pessoas como com maior remuneração
Num país assolado por uma pandemia sem precedentes, cujo número de mortos já ultrapassa 400 mil, associada a uma situação social sem paralelo, no qual o desemprego, o subemprego e a informalidade atingem recordes históricos, o governo Bolsonaro retomou o programa emergencial em patamares insuficientes, a pretexto da inexistência de recursos fiscais para financiá-lo. Arguindo a observância das regras fiscais, que sempre desrespeita quando lhe é conveniente, como por exemplo no espetáculo de fisiologismo explícito que constitui o orçamento de 2021, propôs e aprovou um programa de auxílio emergencial para 2021 que constitui menos de um quinto do vigente em 2020, não só com valores mais baixos como também com menor cobertura, excluindo cerca de 20 milhões de pessoas em relação à primeira versão. Na contramão do que pensa e faz o governo, este artigo propõe-se a demonstrar que é possível financiar a baixo custo e com efeitos positivos sobre a situação fiscal, um programa robusto, tanto para um maior número de pessoas como com maior remuneração.
Discutir formas não convencionais de financiamento de gastos públicos emergenciais, por meio da emissão monetária, supõe o abandono provisório de regras monetário-fiscais vigentes, inscritas na Constituição, algumas das quais deveriam ser mantidas, enquanto outras deveriam ser revistas e substituídas definitivamente. Emergencialmente, seria necessário remover a trava constitucional que limita a R$ 44 bilhões o valor do auxílio emergencial que pode ser executado fora das regras fiscais restritivas. Também é importante observar eventuais implicações desse financiamento, para além do momento imediato, sobre déficits, dívidas e crescimento. Ademais há que se considerar a particular institucionalidade sob a qual opera o regime monetário e fiscal brasileiro. Por essas razões, cabe tecer algumas considerações, mesmo que genéricas, sobre a concepção de dinheiro que anima os autores deste artigo, afinal é também sobre esse assunto que ele trata.
O dinheiro possui uma dupla dimensão numa economia capitalista. De um lado, ele é renda para o trabalhador, de outro, riqueza para investidores e empresários. O trabalhador enxerga no dinheiro do qual possui apenas uma posse transitória, o conjunto de bens e serviços que constitui a sua cesta de consumo. É necessário que, periodicamente, ou empresários ou o Estado lhe pague salários ou benefícios para que acesse temporariamente o dinheiro que lhe servirá de meio de pagamento. Já para o empresário ou investidor, o dinheiro é a riqueza na sua forma abstrata, à qual tem acesso de forma permanente, não para satisfazer necessidades de consumo, mas para transformar em mais dinheiro no processo de acumulação de capital. Ele constitui ou um caminho para outras formas de riqueza – ações, títulos, imóveis, fábricas – ou a expressão geral e líquida dessa riqueza na forma monetária.
Isso posto, vejamos como pode ser financiado o auxílio emergencial, partindo do pressuposto de que não há recursos fiscais disponíveis no orçamento, considerando o regramento vigente. Uma primeira alternativa seria a emissão de dívida pública, ou seja, a colocação de títulos diretamente no mercado primário. No momento, não seria uma boa alternativa pois o mercado está muito estressado e as taxas de juros dos títulos nos mercados secundários estão subindo. Resta a emissão monetária. Excluindo prima facie a venda de reservas internacionais, há em tese duas alternativas. A primeira seria o financiamento direto do Bacen ao Tesouro via compra de títulos deste último. Essa forma é vedada pela Constituição brasileira e a proibição é comum a muitos países sob o argumento de que isso eliminaria, de forma permanente, a restrição orçamentária ao gasto público. Dada a sua centralidade para o ordenamento do sistema monetário-financeiro, não caberia discuti-la, no momento. Restaria, no caso brasileiro, o financiamento por meio da Conta Única do Tesouro (CUT), que este mantém no Banco Central e na qual estão registradas operações de diversas naturezas. Atualmente, o saldo da CUT corresponde a 21,7% do PIB.
De forma esquemática se pode dividir a CUT em duas partes distintas. A primeira registra operações correntes: nas receitas, recebimento de impostos e resultado de venda de títulos públicos e nos desembolsos os pagamentos de despesas primárias e de juros. A segunda parte refere-se às transações financeiras. As principais origens são o resultado ou lucro do Bacen transferido ao Tesouro e o superávit financeiro de algumas rubricas, como fontes vinculadas a fundos públicos. O lucro do Bacen tem como principal determinante os resultados do carregamento das reservas cambiais, positivo nas desvalorizações e negativo nas valorizações. Até 2019, esse resultado era integralmente transferido ao Tesouro, mas atualmente, a parte relativa a reservas cambiais e operações com derivativos cambiais fica automaticamente retida em uma conta do Banco Central para fazer face a eventuais prejuízos. Já o superávit financeiro decorre, sobretudo, de despesas vinculadas que não foram efetivadas no exercício, tendo em vista as regras fiscais restritivas.
No caso do lucro do Bacen, os recursos são esterilizados e ficam na reserva de resultado do banco. Sob severas restrições de liquidez, podem ser canalizados para resgate de títulos, conforme autorizado pelo Conselho Monetário Nacional. A EC 109/2021 permitiu a utilização do superávit dos fundos públicos, salvo algumas exceções, para amortização de dívida até 2023.
Dada a institucionalidade do regime monetário-fiscal brasileiro, as limitações permanentes e injustificáveis impostas à transferência dos resultados do Bacen ao Tesouro e o direcionamento do uso de parcela da CUT para pagamento da dívida pública têm implicações não necessariamente benéficas. Assim, por exemplo, dado o regime de metas de inflação e a taxa de juros meta, a Selic, positiva, o uso dos recursos da CUT para pagamento da dívida criará liquidez que deverá ser necessariamente esterilizada por operações de curto prazo, as compromissadas, sob pena de inviabilizar a própria meta de juros. Na prática, a depender da conjuntura, o resultado pode ser a troca de dívida longa por dívida curta, de maior liquidez. Em princípio deverá existir um diferencial de custo beneficiando a dívida mais curta, mas seu tamanho é incerto. Cabe anotar que não há efeito direto dessa operação sobre o gasto dos diversos agentes, constituindo-se apenas numa mudança patrimonial.
Esses recursos, em particular os oriundos do lucro do Banco Central com o carregamento das reservas, poderiam ter um destino mais eficaz do ponto de vista do crescimento sem comprometer a sustentabilidade da dívida, caso fossem utilizados para financiar o auxílio emergencial. Para se ter uma ideia do montante em questão, há cerca de R$ 215 bilhões no estoque da reserva de resultado do Bacen e R$ 76,8 bilhões na Conta Única a título de valores já repassados em função de resultados do Bacen. Desse total, R$ 226,8 bilhões podem ser destinados ao pagamento do auxílio emergencial, de R$ 600, valor suficiente para financiar o benefício a cerca de 57 milhões de pessoas por seis meses, das quais 6 milhões de beneficiárias constituídas por famílias monoparentais chefiadas por mulheres, receberiam dobrado.
Vejamos o roteiro desse financiamento. O Banco Central descongelaria as duas contas – o resultado já depositado na CUT, R$ 76,8 bilhões e parte das reservas na conta do BC, no valor de 150 bilhões – cujos recursos seriam creditados nas contas dos bancos para serem pagos via depósitos à vista ou saque em dinheiro, aos beneficiários do auxílio emergencial. Esse dinheiro ficaria em mãos dos beneficiários temporariamente, sendo gastos progressivamente. Isso dá origem ao multiplicador da renda e ao longo do processo a um valor equivalente ao gasto inicial sob a forma de impostos e lucros dos empresários.

Cabe assinalar que, nessa fase do processo, a utilização desses recursos para pagamento do auxílio e não para amortizar dívida é uma alternativa superior do ponto de vista da dinamização da renda com impacto positivo no custo e financiamento da dívida. Nesse caso não existe apenas uma troca da dívida longa por dívida curta. Parte dos recursos sai do sistema bancário, por conta da insuficiente bancarização da população. Ao se converter em papel moeda, é suprimido tanto dos depósitos à vista quanto das reservas bancárias, diminuindo o montante a ser esterilizado. Ademais, o crescimento da renda e dos impostos gera os recursos que vão pagar parte da emissão inicial. Assim, o financiamento monetário se revela uma opção superior à emissão de nova dívida pois para o mesmo montante de gasto a financiar implica uma dívida menor e, ao mesmo tempo, gera a poupança macroeconômica suficiente para financiá-la.
Deve-se alertar que há uma segunda fase no processo, nem sempre enfatizada pelos que advogam o financiamento monetário, e que diz respeito ao dinheiro que não se extingue ou aquele que vira a riqueza de empresários e investidores. Numa primeira etapa pagar dívida é uma alternativa inferior a fazer o programa de gastos. Mas tanto nesse caso, quanto naquele em que a emissão monetária não tem como alternativa o pagamento de dívida, remanescerá no sistema uma parte da emissão inicial sob a forma de riqueza dos capitalistas que precisa ser esterilizada sob pena de deixar ao mercado a determinação dos preços macroeconômicos cruciais – taxas de juros e de câmbio. Em princípio o processo de esterilização, temporário, sob a forma de compromissadas ou permanente, sob a forma de títulos, pode trazer algumas dificuldades.
Nessa segunda fase, partamos da riqueza capitalista, ainda sob a forma de depósitos à vista e que tem como contrapartida as reservas bancárias. A escolha desses capitalistas se dará entre alternativas de remuneração (juros) e prazo para alocação da sua riqueza. Como opções polares terá aplicações de overnight às quais corresponderão operações compromissadas dos bancos, ou compra de títulos longos no mercado primário, por meio das quais o Tesouro recebe o dinheiro de volta, pelo prazo de emissão do título. Ressalte-se que o uso dos recursos por parte dos capitalistas para comprarem títulos privados, ou mesmo uma máquina nova, não resolve a questão. O dinheiro muda de mãos, mas a riqueza ampliada continua na sua forma líquida.
As opções de recaptura são variadas, mas examinemos duas opções prováveis. Uma delas é que os detentores da riqueza decidam converter os seus recursos em divisas, seus depósitos à vista se cancelam, e igual montante das reservas bancárias, tornando-se ele detentor de uma conta no exterior. Isso pode ocorrer porque julga a taxa de juros muito baixa. O resultado é uma desvalorização da moeda local, com significativas implicações tanto na taxa de inflação (pass-through) quanto no custo da dívida das empresas endividadas em moeda estrangeira (currency mismatch). Aparece aqui uma primeira e potencial limitação do financiamento monetário: a arbitragem com a moeda estrangeira, forçando a que a taxa de juros doméstica seja fixada num patamar adequado para evitar a conversão. Ou que se mova prontamente diante de uma elevação da taxa de juros externa. Quanto maior a abertura financeira e a ausência de obstáculos para a entrada e saída de capitais, maior a limitação potencial ou efetiva que advirá desse canal, restringindo o grau de liberdade da política macroeconômica.
A outra opção dos detentores de riqueza é adquirir títulos do Tesouro no mercado primário, cujo preço ou taxa de juros será determinado no mercado secundário pela marcação a mercado. O mecanismo de ajuste segue o seguinte padrão: se os detentores de riqueza preferem aplicações mais curtas, vendem títulos, o que faz subir os juros. Aqui cabe destacar que nos países avançados, embora os banco centrais continuem excluídos do financiamento monetário do tesouro, as suas operações nos mercados secundários ampliaram-se exponencialmente, como forma de controlar e estabilizar as taxas longas. Esse mecanismo de intervenção não é permitido no regime monetário-fiscal brasileiro, tendo sido autorizado, mas não utilizado, apenas temporariamente pela PEC da guerra. Desvalorizações do real associadas à queda das taxas de juros básica da economia e, sobretudo, crescimento das taxas longas de juros de títulos públicos marcam a conjuntura recente do Brasil mostrando percalços e insuficiência de instrumentos no controle de taxas de juros e de câmbio.
Como foi dito, o resultado da segunda rodada de financiamento do gasto, agora sob a forma de dívida, pode trazer problemas. Mesmo que se evite desvalorizações cambiais significativas, o preço a pagar pode ser taxas de juros mais altas. A síntese desse processo será dada pela taxa de juros ou custo médio da dívida pública resultante. Uma taxa superior ao crescimento do PIB exigirá um esforço fiscal adicional na forma de superávit primário, para estabilizar o crescimento da dívida e evitar novos aumentos, ambos com implicações macroeconômicas e distributivas relevantes. De qualquer modo esta é uma hipótese menos provável quando o financiamento monetário é circunstancial e se dirige às transferências de renda à população de baixa renda, pela implicação benéfica que tem inicialmente, sobre o estoque da dívida. Quanto ao custo, a conjuntura é ainda favorável, pelo patamar no qual se encontra a taxa básica de juros (Selic), cuja elevação deve ser gradativa, a despeito do lobby do mercado financeiro. Isso tanto pela ausência de pressão continuada sobre a inflação como pelo contexto internacional de taxas de juros negativas nos principais países desenvolvidos.
Na verdade, a conclusão aponta para a viabilidade, em caráter excepcional, do financiamento monetário do auxílio emergencial, sobretudo ante a alternativa de pagamento de dívida, com recursos oriundos dos lucros do Banco Central, que apenas muda a alocação da riqueza financeira em direção a títulos mais curtos, sem redução do patamar da dívida e sem aumento de renda das famílias. O financiamento monetário do auxílio emergencial, valendo-se da valorização patrimonial das reservas internacionais, é um caminho possível para garantir renda às famílias, no contexto de recrudescimento da pandemia, o que poderia ser feito mediante alteração extraordinária da lei que rege a relação entre Tesouro e Banco Central. No entanto, é preciso destacar as dificuldades que isso pode impor, no caso brasileiro, para o uso reiterado desse mecanismo em razão da ausência de instrumentos eficazes de controle das taxas de juros; como a prerrogativa do Bacen intervir nos mercados secundários; e de câmbio, como os controles de fluxos de capitais.
Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
Bruno Moretti é doutorando em Desenvolvimento Econômico no Instituto de Economia da Unicamp.
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