Como pagar pela guerra contra o vírus
A volumosa necessidade de recursos financeiros só pode ser satisfeita, nas circunstâncias atuais, pela emissão de moeda e o endividamento líquido do governo central
Não é fácil para uma economia não planejada se organizar para combater uma pandemia. É mais difícil ainda quando ela já se encontrava letárgica, conjugando dois elementos que aprofundam, exponencialmente, os efeitos negativos da pandemia: por um lado, com uma grande parcela da população no desemprego e na informalidade, a maior parte dos trabalhadores está excluída dos mecanismos de proteção social, tão necessários em uma crise como essa. De outro, há um ordenamento jurídico que reúne regras fiscais autoimpostas, como a Emenda Constitucional 95 e a Lei de Responsabilidade Fiscal, que engessam a capacidade do Estado de mobilizar os recursos materiais necessários para evitar uma catástrofe humana de grandes proporções.
Adiciona-se aos problemas anteriores o fato de os condutores da política econômica, e políticos de forma geral, partilharem da concepção equivocada de que o governo não tem dinheiro para enfrentar os nossos problemas econômicos e sanitários. Além de equivocada, a velocidade da disseminação do coronavírus está mostrando que esta concepção é, também, perigosa.
Nos meios sanitários é sabido que o método mais seguro de vencer a batalha contra a pandemia é o planejamento de ações com efeitos imediatos – como a testagem em massa, o isolamento social… –, constituição ou reforço de centros de pesquisas epidemiológicas, construção de aparelhos de saúde – como leitos hospitalares – que continuarão sendo usados pela população, constituição ou ampliação de cadeias produtivas do setor de saúde etc. Na economia teremos de agir da mesma forma e construir um plano que tenha o espírito da justiça social, que aproveite este tempo de imensos sacrifícios para avançar na direção da redução das desigualdades, elevando o padrão de vida da população por meio de transferência de renda e constituição de um amplo programa de bem-estar social. Para além das dificuldades naturais da pandemia, estamos diante de uma crise do sistema sanitário e do sistema econômico. A crise viral agora se soma à crise econômica que por anos já vinha maltratando os trabalhadores brasileiros.
Desafio econômico
O desafio econômico com que nos deparamos envolve: 1) manter plenamente mobilizada a nossa capacidade produtiva de modo a elevar o produto real ao máximo que for possível, dados os recursos humanos, materiais e organizacionais disponíveis; 2) garantir a mobilização e manutenção dos recursos produtivos para o combate direto ao vírus e suas consequências na saúde e, ao mesmo tempo, assegurar a produção de bens e serviços essenciais à vida humana enquanto parcela considerável da população deverá ficar em isolamento.
Ambos os desafios econômicos são imbricados, uma vez que parte da população ficará em quarentena sem consumir e indisponível ao trabalho. Sem o aumento dos gastos e das transferências do governo para compensar a queda da renda e dos gastos privados e uma coordenação efetiva da mão-de-obra disponível ao trabalho essencial, bens e serviços necessários ao combate ao vírus e ao atendimento das necessidades básicas da população poderão se tornar escassos e/ou inacessíveis à grande parte da população sem renda.
Não devemos nos iludir. Ambos os problemas, de saúde pública e o uso inadequado dos recursos produtivos disponíveis, não serão apenas passageiros. Antes da pandemia já desperdiçávamos milhões de trabalhadores em uma epidemia de desemprego e trabalhos precários por falta de demanda suficiente para mobilizar plenamente nossos recursos produtivos. Milhões de trabalhadores já estavam em “quarentena” forçada por causa do desemprego. Após superarmos o vírus corremos o risco de enfrentar a depressão econômica que trará o trabalho precário, ou o desemprego, de outros milhões de pessoas hoje em quarentena sanitária. Os desafios de agora não são os mesmos de antes, mas são similares. As soluções abaixo para o pagamento das ações necessárias no combate à epidemia e à depressão incluem reformas institucionais duradouras. Essas reformas serão úteis para enfrentar o problema imediato, mas também para tirar a economia da estagnação que estava em curso antes mesmo da epidemia, nos colocando no caminho da prosperidade após a crise e nos preparando muito melhor para eventuais novas ameaças.
Serviços de saúde
Como explicado em outras oportunidades, a volumosa necessidade de recursos financeiros para ampliar os serviços de saúde, garantir o poder de compra dos que devem ficar em quarentena (de trabalhadores a pequenos empresários, de funcionários públicos a aposentados, e acometidos pelo vírus) e dar apoio às atividades específicas de estados e dos municípios, só pode ser satisfeita, nas circunstâncias atuais, pela emissão de moeda e o endividamento líquido do governo central. No atual sistema de operação de gastos e transferências do governo federal existe uma série de complicações, distorções e ineficiências decorrentes da exigência legal do uso de intermediários bancários.
Simplificadamente, quando o governo gasta ou transfere renda para a sociedade e entes subnacionais o Tesouro faz uma ordem de pagamento nas contas bancárias dos receptores do pagamento. O Banco Central (BC) é mero executor da ordem de pagamentos. No passivo do BC, há uma redução na Conta Única do Tesouro (passivo não monetário do BC) e um aumento correspondente de reservas (passivo monetário do BC), que são ativos dos bancos. Já quando o governo tributa, acontece o movimento inverso.
Assim, quando os gastos do governo são maiores que as receitas, o saldo da conta única é alterado e a base monetária ampliada. Esse excesso de reservas no sistema bancário pressiona as taxas de juros para baixo. O BC, para manter a taxa de juros básica próxima à meta estabelecida, vende títulos públicos em operações de mercado aberto, retirando o excesso de reservas.
Numa economia como a nossa em que os mecanismos de pagamentos são quase todos eletrônicos, os receptores dos pagamentos e transferências do Tesouro usualmente não sacam dinheiro de papel de suas contas bancárias para realizar seus pagamentos. Eles usam, na maior parte das vezes, transferências de depósitos bancários e pagam taxas para manutenção dessas contas aos bancos. O mais importante, porém, é que os bancos não precisam manter todas as reservas que acumulam por causa dos gastos do Tesouro. O que consideram excesso – após definirem um percentual que devem reter por segurança para eventuais saques ou transferências que seus clientes fazem de suas contas a outros bancos – é aplicado em títulos públicos para ganhar os juros que as reservas não rendem. É dessa forma que parte do gasto público, equivalente ao déficit do governo, se torna dívida pública e rende juros aos bancos.
Juros da dívida pública
Vários analistas, não sem razão, têm apontado o problema distributivo envolvido com o pagamento de juros da dívida pública. Uma vez que temos de elevar os gastos públicos neste momento de crise e seguramente mais após a superação da fase crítica para recuperar a economia, como fazê-lo sem elevar a dívida pública remunerada de modo a evitar as distorções que ela provoca? A principal distorção nesse caso é o pagamento de juros sobre títulos retidos por meros intermediários das transações do Tesouro – nominalmente, os bancos. Junto com as medidas que estão sendo propostas no momento (como a encampação estatal da folha de salários das pequenas e médias empresas; renda mínima para trabalhadores de baixa renda, informais e desempregados etc.), há propostas de mudanças institucionais na operacionalização desses programas para o setor não bancário.
A alternativa clássica para mitigar a questão distributiva que a elevação da dívida pública implica seria aumentar a tributação progressiva, como nos países centrais na Era de Ouro do capitalismo. O Brasil possui uma carga tributária centrada em impostos indiretos e regressivos, que incidem sobre o consumo de bens e serviços, de modo que há amplo espaço para transitar para uma carga tributária com maior peso dos impostos diretos e progressivos, sobre renda e propriedade. Além disso, a carga tributária brasileira, ao beneficiar os mais ricos que consomem relativamente pouco em proporção à sua renda em detrimento dos pobres que consomem proporcionalmente bem mais, gera como resultado uma menor demanda total por bens de consumo, que acaba por desestimular a produção desses bens e, indiretamente, a de bens de investimento, o que é contraproducente tanto para a busca por um maior nível de emprego, como para a busca de justiça social. Embora a reforma do sistema tributário em nome de maior justiça distributiva e eficácia macroeconômica seja algo desejável, é possível também reformar o próprio sistema de finanças públicas em nome desses mesmos objetivos.
Liquidez
As ações propostas pelo BC até aqui buscaram disponibilizar liquidez às firmas e ao sistema bancário sem, contudo, atentar para questões distributivas. Infelizmente, tais medidas dificilmente terão os efeitos desejados, uma vez que não representam injeção líquida de renda suficiente para evitar a falência de empresas, e o desemprego de trabalhadores. Felizmente, é possível usar a Lei 11.882 (existente desde a crise de 2008), que permite ao Banco Central comprar ativos do setor não bancário como base para intervenções bem mais ambiciosas. É o caso da proposta a seguir que amplia o escopo, a rapidez e o controle do governo sobre seus gastos – eliminando a necessidade da intermediação opaca de bancos – e reduzindo o custo das operações (menos intermediários) e as distorções distributivas da emissão de dívidas públicas remuneradas adquiridas, em sua grande parte, por agentes especializados do sistema financeiro.
O mecanismo seria simples:
a) todos os recebedores de dinheiro do Tesouro ou do BC, pessoas físicas ou jurídicas, teriam uma conta no BC;
b) essas contas seriam creditadas conforme o programa a que esses recebedores estivessem vinculados: desde bolsa família até créditos especiais às empresas para manutenção do emprego;
c) no caso desses créditos às empresas, eles seriam concedidos mediante a entrega de debêntures conversíveis em ações ou dívidas garantidas por ativos tangíveis das empresas e de seus proprietários;
d) as empresas tomadoras desses recursos se comprometeriam a não demitir seus funcionários até que conseguissem restituir os empréstimos tomados;
e) como garantia, as empresas transfeririam todas as suas contas de movimentação de caixa e patrimonial para a conta no BC;
f) o BC pagaria juros Selic sobre os saldos positivos mantidos nessas contas, assim como poderia, até terminar a pandemia, deixar de cobrar juros sobre os saldos negativos até algum limite determinado.
Há propostas alternativas para recuperar a economia com atuação direta do BC e do Tesouro. Por exemplo, a oferta de liquidez pelo BC aos bancos para eles supostamente repassarem às empresas mostrou-se frustrantemente, ainda que não surpreendentemente, ineficaz. Por outro lado, a compra de créditos concedidos por bancos a empresas pelo BC certamente não resolveria as distorções distributivas aqui denunciadas.
A alternativa apresentada não implicará nenhuma emissão de títulos do Tesouro; os custos de transação serão menores do que hoje; a distribuição de recursos será mais ampla, pois os canais estarão abertos para todo o setor não bancário; os riscos de desvirtuamento e uso abusivo dos recursos públicos pelas empresas apoiadas serão diminuídos; o governo ficará com garantias reais do negócio e controle direto do uso dado aos recursos pelos tomadores; a injeção de dinheiro pelo Estado não mais passará por intermediários financeiros que poderiam “empoçar” a liquidez e/ou reduzir a disponibilidade de recursos que deveriam chegar aos destinatários finais.
No futuro, superados os constrangimentos institucionais desnecessários e contraproducentes ao gasto público, todas as operações do Tesouro poderão ser realizadas usando o mesmo mecanismo, o que eliminaria as ilusões contábeis que alimentam a falsa percepção de que há restrição financeira à capacidade de fazer pagamentos do governo central, tornaria os gastos públicos mais controlados e evitaria as distorções geradas pelo uso de intermediários bancários. Tesouro e BC poderiam juntos moldar a curva de juros de acordo com os objetivos de longo prazo da política monetária. A experiência conseguida no período próximo indicaria novas formas de controle e de operacionalização do sistema.
Uma última nota a este respeito. Os bancos não precisam deixar de existir. Eles poderão funcionar como agentes operacionais dos saques das contas no BC, além de manterem seu papel de conceder crédito à economia. Em relação a contas no BC, os bancos funcionariam como hoje funcionam o convênio CEF-lotéricas ou o Banco Postal onde se poderiam fazer saques e depósitos nas contas no BC. Os bancos que aderissem ao novo sistema receberiam uma taxa de administração compatível com os custos operacionais e administrativos da atividade. De toda forma, CEF, Banco do Brasil e Correios seriam agentes preferenciais de operação para os titulares das contas no BC. Ainda que pareça revolucionário, o novo sistema aqui apresentado apenas replicaria a relação que já existe hoje entre bancos e o BC, com a única diferença que estenderíamos as mesmas regras e oportunidades para todas as empresas e pessoas físicas do país.
Fabiano Abranches Silva Dalto é professor de Economia na UFPR; Daniel Negreiros Conceição e Kaio Pimentel são professores do Ippur na UFRJ; e David Deccache é economista e assessor técnico na Câmara dos Deputados.