Comunicação e racismo estrutural
A pandemia do coronavírus e as recentes manifestações antirracistas trouxeram de volta a pauta do movimento negro para a crista do debate na opinião pública. No Brasil, quando falamos de direito à comunicação e racismo, procuramos em geral travar um debate sobre representatividade na mídia, mas nos esquecemos, muitas vezes, de abordar questões relativas ao acesso
Sabemos que, no Brasil, a população negra “teve o pior ponto de partida para a integração ao regime social que se formou ao longo da desagregação da ordem social escravocrata”1 e que essa integração, absolutamente marginalizante, estruturou a própria organização capitalista, produzindo desigualdades socioeconômicas que se sobrepuseram às diferenças de raça (conceito aqui operacionalizado do ponto de vista sociológico).
O racismo estrutural resultou em desigualdades que também afetam o acesso à informação e à livre expressão no Brasil. Se por um lado o controle dos meios é absolutamente marcado pela ausência de negros em seus quadros dirigentes ou societários, como revela a pesquisa Media Ownership Monitor Brazil – MOM 2017, por outro o acesso às novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) e à internet está longe de promover o direito à comunicação a essa camada da população.
Recentemente, vimos eclodir nos Estados Unidos os maiores protestos antirracistas desde o assassinato de Martin Luther King, em 1968. No Brasil, as maiores mobilizações se deram no ambiente digital, pela internet. Em meio à crise sanitária, poucos se sentiram seguros para ocupar as ruas em protestos. A hashtag #BlackLivesMatter ganhou o mundo, inclusive no Brasil, com a tradução #VidasNegrasImportam.
O potencial de gerar engajamento em questões que antes eram silenciadas ou apresentadas apenas sob a óptica daqueles que detêm o monopólio da informação é uma das principais qualidades da rede. Apesar disso, é preciso observar que nem sempre a eclosão de pautas no ambiente digital representa a participação efetiva da sociedade nos debates da opinião pública. O Brasil é um país continental, ainda muito marcado pelas desigualdades de direitos, entre elas a de acesso à informação.
A pesquisa TIC Domicílios de 2020 – realizada anualmente pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR – traz, pela primeira vez, dados sobre raça dos usuários e revela disparidades no acesso às TICs e à internet no Brasil. Entre os indicadores individuais, um dado que chama atenção é o que mostra que o uso de computadores é maior entre brancos (49%) e amarelos (48%) e significativamente menor entre pardos (38%), pretos (34%) e indígenas (24%). Por oposição, são os pardos, pretos e indígenas que acessam a rede exclusivamente por aparelhos celulares, com índices de 61%, 65% e 75%, respectivamente.
Os dados revelam a ineficiência e a descontinuidade das políticas de universalização do acesso à banda larga no Brasil – inexistentes no governo atual. Essa ausência de política pública impõe desigualdades na qualidade do acesso, que acaba se limitando à telefonia móvel, com pacotes de dados precários que, em geral, não permitem desfrutar de toda a potencialidade da conexão em rede. Mostram ainda que, por consequência, os usuários são domesticados a usar as aplicações e os recursos disponibilizados pelas operadoras, o que dificulta a formação de novas habilidades no uso das tecnologias e limita o universo de informações acessadas.
A questão que muitas vezes escapa pela tangente é que esses dados também revelam como nossa sociedade se edificou sobre o racismo estrutural e como isso segue reproduzindo desigualdades de acesso a direitos de toda ordem às populações negras. Basta olhar para as filas que se formaram em frente às agências da Caixa Econômica Federal, em meio ao isolamento social, para se dar conta de que o direito à comunicação, como meio para acessar outros direitos, não estava sendo garantido. Em notícias na TV e nos jornais era possível perceber que a ida às ruas, quase sempre, estava associada a uma completa falta de informação sobre o calendário dos pagamentos ou sobre a forma de solicitar o auxílio emergencial.
Da mesma forma, a não garantia da internet como essencial para o desenvolvimento da cidadania impediu que milhares de pessoas pudessem baixar e utilizar de forma adequada o aplicativo para solicitar o auxílio emergencial. A política não apenas desconsiderou as desigualdades de acesso às TICs como também o fato de que nem todos têm as habilidades necessárias para usá-las.2
Racismo estrutural na TV
A pouca representação dos negros na mídia – ou melhor, a dificuldade em produzir uma representação positiva dessa parte da população – ainda gera debates acalorados, quase sempre marcados pela necessária reivindicação de mais espaço. E aqui vale lembrar que meios de comunicação, em especial os eletrônicos de massa, ainda são um campo significativo de disputa de imaginários e representações sociais.
No mais recente episódio sobre representatividade na mídia, a GloboNews se viu obrigada a montar uma bancada de jornalistas e comentaristas negros (seis no total) para analisar as manifestações antirracistas nos Estados Unidos e no Brasil. Foi um dia histórico aquele 3 de junho de 2020. Ainda assim, só possível de ser concretizado depois que a emissora sofreu críticas nas redes por ter, no dia anterior, elegido um conjunto de jornalistas brancos para tratar da mesmo temática.
De modo geral, a cobertura das manifestações contra o assassinato de George Floyd provocou reflexões e reações por aqui. Algumas emissoras enfatizaram que eram protestos contra “a morte de um homem negro por um policial branco”. As palavras “racismo” e “racistas” apareceram a todo momento, dando destaque às tensões raciais que ocorrem nos Estados Unidos desde o período de segregação. Questões relacionadas à história norte-americana, à formação da comunidade negra e ao período das Jim Crow laws eram pano de fundo para contextualizar a ação dos que protestavam.
Contudo, não se viu a mesma disposição em tratar as tensões raciais que estão na raiz das execuções de jovens negros por PMs no território brasileiro. Na cobertura nacional há sempre uma tentativa de desvincular a execução de negros do racismo estrutural – como se as mortes fossem um dado da casualidade, e não uma permanência histórica.
Por aqui, aconteceram inúmeros atos contra a morte de pessoas negras, entre os quais a manifestação “Vidas Negras Importam”, no dia 7 de junho, no Rio de Janeiro, contra a morte de João Pedro, adolescente de 14 anos baleado e morto pela PM dentro de casa. Nas semanas seguintes, outros protestos ganharam as ruas, entre os quais os ocorridos na Zona Sul de São Paulo, por conta do assassinato do adolescente Guilherme Silva Guedes, de 15 anos.
Nesses casos, não houve debate sobre a formação da sociedade brasileira, sobre o processo de integração do negro na sociedade de classes, tampouco sobre como isso reverbera nos dias atuais como racismo institucional da PM. Na cobertura sobre a execução de Guilherme, os jornais chegaram ao disparate de colocar em suas manchetes e GCs frases que enfocavam os ônibus queimados e as vias interditadas pela comunidade local, como se o transtorno causado pela queima dos ônibus fosse mais relevante do que a morte do adolescente.
A cobertura das manifestações antirracistas ocorridas nos Estados Unidos mobilizou discursos que revelam o modo insidioso como o racismo estrutural opera no Brasil, refletindo uma dificuldade dos veículos em dialogar sobre o racismo como algo que estrutura as relações sociais e, portanto, modela as ações da sociedade. Sob a égide do mito da democracia racial, essa desfaçatez em tratar de tais temas acaba por corroborar o cenário de violência constante que vivemos por aqui, na medida em que não revela as estruturas do racismo que o edificam.
Ana Claudia Mielke é jornalista, secretária-geral do FNDC e professora convidada na FESPSP.
1 Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, Dominus, São Paulo, 1965, v.1, p.XI.
2 Alguns municípios brasileiros disponibilizaram equipes compostas por assistentes sociais e outros profissionais para auxiliar, de casa em casa, cidadãos que não tinham smartphone ou não sabiam como usar o aplicativo. Na maior parte dos territórios, no entanto, essa ajuda ficou por conta de ONGs, movimentos sociais e voluntários.