‘Conclave’ a esgrima entre a ficção que convence e o real que dúvida
Conclave é um filme dirigido por Edward Berger e baseado no romance homônimo de Robert Harris. A trama tem início com a morte do Papa e a formação do Colégio de Cardeais, que se reúne para eleger o sucessor
O longa-metragem apresenta múltiplos caminhos para ser decifrado, mas gostaria de analisar alguns pontos relevantes. Antes, é importante acrescentar que não há a intenção de afirmar que apenas a religião católica tenha seus pontos de desgaste, uma vez que as informações e analogias neste texto se limitam à produção cinematográfica em análise.
A obra cinematográfica está longe de ser apenas uma ficção; seu roteiro apresenta uma abordagem honesta ao expor a fragilidade dos Cardeais e como essa fragilidade se reflete em comportamentos que destoam dos princípios da espiritualidade de seus membros. Embora pareça uma alerta redundante ou uma crítica destrutiva, a ficção é coerente e expõe as precariedades da Igreja Católica.
A produção deixa clara a natureza dos Cardeais; cada diálogo revela a ponta do iceberg das vulnerabilidades humanas. Embora nem tudo seja explícito na trama, esses elementos sugerem uma extensa lista de transgressões do clero.

Aliás, na realidade é público e notório que essa deterioração não se limita à cúpula da igreja. Não podemos deixar de lembrar os casos de corrupção em Roma e no Brasil, além dos inúmeros abusos de freiras e crianças por membros do clero. Na França, foram 216 mil crianças abusadas em sete décadas. No Brasil, com dados apenas do século XXI, ao menos 108 membros do clero brasileiro foram acusados, indiciados, denunciados, condenados ou se tornaram réus por envolvimento em abuso sexual de 148 crianças. Um relatório interno do Vaticano em 2005 estimou que um em cada dez padres brasileiros estava envolvido em casos de abuso, ou seja, 1.700 sacerdotes, e no México (pelo menos 550 denúncias), Chile (243), Argentina (129) e Colômbia (137).
Em Conclave, a corrosão está nas estruturas da Igreja Católica, embora o Cardeal Thomas Lawrence (Ralph Fiennes) diga em determinado momento do filme: “Existe um pecado que passei a temer acima de todos, a certeza. Se houvesse apenas certeza, e nenhuma dúvida não haveria mistério. E, assim, nenhuma necessidade de fé.” No entanto, não podemos esquecer que a dúvida que paira sobre a Santa Igreja faz com que sua desintegração esteja sempre à espreita.
É durante o conclave que se revela a imperfeição desses líderes da Igreja Católica, uma imperfeição que não surgiu durante a sessão fechada, mas foi trazida dos locais onde cada um atuava. Sendo detentores de tais pecados, esses líderes refletem suas condutas em seus subordinados.
Não é à toa que, ao afirmar que a situação denotava uma visão do inferno, o Monsenhor Raymond (Brían F. O’Byrne) provoca a resposta do Cardeal Lawrence (Ralph Fiennes): “O inferno começa quando chegarem os Cardeais.”
Apesar de o Cardeal Lawrence afirmar que, durante o conclave, ninguém poderia ter acesso a qualquer notícia que pudesse influenciá-los, cada cardeal é, por analogia, um cavalo de Troia, pois traz ao conclave todas as suas angústias, medos e imperfeições.
Ao longo do conclave, muitas discussões vêm à tona, como o crescimento do islamismo e o papel da mulher na Igreja. Aliás, merece destaque a atriz Isabella Rossellini, no papel da Irmã Agnes, cuja atuação foi determinante em um ambiente predominantemente masculino. Por meio dela, muitos nós são desfeitos, como respostas que surgem daquelas que são ignoradas. Além disso, discute-se a subserviência instituída, a diversidade na Igreja, a discriminação racial, o catolicismo segmentado geograficamente, a corrupção, os vícios do corpo e do caráter, a arrogância, o desejo pelo poder e, sobretudo, a fé.
Depois de muitas intrigas, atritos, revelações e decisões que não atingiram o número de votos necessários para eleger o Papa, o conclave chega ao desfecho. O Cardeal Vincent Benítez (Carlos Diehz) é proclamado o novo Sumo Pontífice. Ao assumir o papado, ele escolhe o nome de Innocentius (Inocêncio).
Naturalmente, numa trama como essa, até o nome do Papa precisa ter um significado profundo. Esse nome tem origem no latim inocens que significa ‘inofensivo’, ‘puro’ ou ‘sem culpa’. A identificação condensa uma resposta aos inúmeros questionamentos que ocorreram durante o conclave, ao sugerir que apenas alguém sem pecados poderia ocupar o trono de Pedro; uma utopia nomeada, uma solução improvável.
Para dar maior profundidade à trama, as investigações revelam que o novo Papa é intersexo. O ápice do enredo! Nessa conclusão polêmica, a obra vai além de uma análise stricto sensu sobre a diversidade no clero; ela apresenta um eleito que, por ter um ventre, simbolicamente – frise-se – seria capaz de gerar o novo e desafiar a incongruência e o binarismo da Igreja.
No cotidiano, o grande enigma reside na pergunta: o que é esse ‘novo’? Afinal, uma ação nova não é, por si só, uma ação evolutiva. Embora se ouçam as homílias dos mais elevados, as mazelas do catolicismo resistem. Os desgastes são encontrados, entre muitos aspectos, nos padres que denominam como modernização o uso de discursos fundamentalistas em redes sociais, o apoio aos ultraconservadores – algo como um escárnio do conservadorismo radical disfarçado de inovação – e a substituição do vestuário clerical por trajes onde o tecido cede à vaidade, são alguns dos elementos que ainda continuam a provocar inúmeras fraturas na Igreja e na fé de seus membros.
Por fim, vale a pena lembrar uma das cenas de Conclave, em que uma tartaruga percorre os espaços vazios. O Cardeal Lawrence a observa por um momento, depois a apanha e a devolve num pequeno tanque. O momento é uma metáfora da própria Igreja Católica: uma instituição protegida por uma couraça rígida, de passos lentos, de existência longa e que se encontra perdida.
No filme, o responsável pelo conclave conduz a tartaruga de volta ao seu espaço de origem no Vaticano, sem a pretensão de nos fazer acreditar, seja na arte ou na vida real, que os desafios foram resolvidos.
Renato Dias Baptista é docente da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.