Confluências autoritárias
A diferença entre a espionagem da ditadura e a de uma grande corporação é que, no primeiro caso, visavam-se os agentes da crítica e da oposição, com o intuito de desmantelar a rede da resistência; no segundo, o objetivo é o público em geral que se quer “proteger” dos efeitos da críticaHenri Acselrad
Uma observação mais atenta permite destacar elementos ainda pouco discutidos da relação entre o atual modo de operação de grandes interesses econômicos e as práticas de origem militar correntes no período de exceção. Estão hoje em curso procedimentos baseados em lógicas de operação próprias do pensamento militar gestado no período de exceção, agora aplicados ao controle territorial de áreas requeridas para a instalação de grandes projetos de investimento. É crescente o recurso a ações ditas de “inteligência corporativa” aplicadas ao terreno em que se constroem barragens, polos industriais ou projetos de mineração, tendo em vista a obtenção de informações sobre comunidades, movimentos sociais e lideranças locais. Debates recentes motivaram vários balanços sobre o que se chamou de restos da ditadura: a militarização das polícias, a impunidade dos torturadores, a desfaçatez com que bem-falantes altos responsáveis do período de arbítrio, como Delfim Netto e Celio Borja, usam da liberdade de imprensa para negar que houve golpe. Trouxe-se à luz também o fato de que grandes interesses econômicos lucraram com o golpe, apoiaram sua realização e o regime que dele decorreu, e, em certos casos, financiaram a repressão e a tortura. Afinal, o golpe foi dado para barrar as mobilizações populares e impedir a realização de reformas que ameaçavam interesses de corporações internacionalizadas, da grande propriedade fundiária e do capital financeiro.
São conhecidas as ações de espionagem sobre movimentos sociais recentemente reveladas nos casos da hidrelétrica de Belo Monte e do projeto de duplicação da Estrada de Ferro Carajás. Tais práticas alimentam-se de um mercado especializado em serviços privados de vigilância, inteligência e segurança, configurando um processo de privatização da atividade de espionagem que, nos anos de chumbo, era operada por agentes da repressão política do regime de exceção.
Ao lado da infiltração de agentes de informação nos movimentos, temos visto constituir-se uma espécie de “ciência” destinada a enfrentar e desmobilizar essas organizações: são realizados estudos ditos de “risco social” para determinar em que medida as populações atingidas pelos grandes projetos podem vir a gerar risco aos empreendimentos caso venham a ser, com sucesso, mobilizadas para o debate e o questionamento dos projetos. Cientistas sociais e comunicadores são contratados para estudar os grupos atingidos e desenvolver programas de relações comunitárias. Observa-se, assim, um forte parentesco entre as ações ditas de “responsabilidade social empresarial” e aquelas conhecidas como “ações cívico-sociais” das Forças Armadas.
Durante a ditadura, foi criada pelo Exército a estratégia das ações cívico-sociais, em nome do atendimento a carências das populações “marginalizadas”. No combate à guerrilha do Araguaia, tais ações foram executadas por órgãos de inteligência das Forças Armadas.1 Entre os princípios de tais ações encontra-se o requisito do “estudo minucioso dos valores, crenças, tradições e costumes da população a ser atendida”.2
Ora, as práticas de assistência social são, em princípio, tão estranhas aos atores da guerra como aos agentes da exploração mineral, da produção siderúrgica ou petroquímica, que têm por fim a obtenção de lucro privado. No entanto, discursos e práticas das Forças Armadas e das grandes corporações se aproximam no que diz respeito a suas relações com as populações quando estas ocupam áreas de interesse para suas respectivas operações. Tudo indica que elas teriam em comum o vocabulário de uma certa “ciência” – a da chamada “guerra revolucionária moderna”.
No âmbito militar, a menção a ações de assistência social surge no bojo das transformações do discurso estratégico verificadas nos anos 1960, notadamente a partir das análises da derrota do colonialismo francês. Segundo tais análises, as guerras no Vietnã e na Argélia diferenciavam-se das anteriores por envolver “tudo que pensa, tudo que vive, tudo que respira”. Tratando-se de “uma guerra que toma conta das almas como dos corpos”,3 o teatro de operações seria todo o território e o essencial seria cortar a possibilidade de que a população ouça e apoie os movimentos de resistência.4
No âmbito empresarial, as ações de assistência social são parte das chamadas estratégias de “não mercado”, destinadas a “combater o risco de instabilidade institucional, que pode afetar seriamente as oportunidades de negócio”. Visam, assim, nos termos dos administradores privados, “aumentar as capacidades empresariais de captura de valor, por meio da gestão de suas interações institucionais, políticas e sociais”5 – interações essas “que são mediadas pelo público”.6 Pesquisadores da área da Antropologia7têm designado como “políticas de resignação” esses esforços empresariais de neutralizar a crítica social e o descontentamento popular, procurando oferecer respostas limitadas por meio de gestos simbólicos de compensação ou mitigação, aproveitando-se do vazio do Estado na garantia dos direitos à educação e à saúde. Um representante da grande mineração afirmou a um jornal econômico: “Antes, os movimentos sociais nos criticavam por fecharmos a mina e só deixarmos, no local, um grande buraco. Agora, deixamos também uma escola e um posto de saúde”. Ou seja, a intenção de desmobilizar os movimentos críticos está na origem mesma de tais estratégias ditas “sociais”.
As conjunturas são distintas e a diferença entre a espionagem da ditadura e a de uma grande corporação é que, no primeiro caso, visavam-se os agentes da crítica e da oposição, com o intuito de desmantelar a rede da resistência; no segundo, o objetivo é o público em geral que se quer “proteger” dos efeitos da crítica. No regime político de exceção, queria-se silenciar os críticos; no regime de exceção privado das corporações, deseja-se obter elementos para montar programas eficazes de responsabilidade social, neutralizar a crítica e viabilizar o controle sobre o território.
É por meio dessa convergência entre as técnicas de controle territorial, desenvolvidas durante a ditadura, e as ações destinadas a obter um controle análogo por parte de empresas em grandes projetos de investimento que o autoritarismo se reproduz e a democracia é corroída pela base. Pois não são compatíveis com a democracia ações que têm por objetivo impedir que a população, em geral desatendida, desinformada e com pouco acesso às esferas decisórias, ouça os movimentos que problematizam os impactos que grandes projetos exercem sobre suas condições de vida. Ao menos se entendermos por democracia uma forma de existência social bem distinta daquela evocada retoricamente pelos agentes do colonialismo francês e pelos gestores intelectuais da ditadura brasileira.
Henri Acselrad é professor do Ippur/UFRJ e pesquisador do CNPq. O presente artigo retoma questões debatidas no recém-lançado livro Sinais de fumaça na cidade: uma sociologia da clandestinidade na luta contra a ditadura no Brasil, Editora Lamparina, Rio de Janeiro, 2015.