Construindo uma nova arquitetura financeira regional
Os próximos anos podem ser definitivos para o processo de integração regional latino-americana. Passada uma década de governos progressistas, é crucial que se consolidem propostas de transformação. Para isso, a questão do financiamento é centralLuciano Wexell Severo
(Presidente peruano Ollanta Humala conduz reunião de cúpula com os chefes de Estado da Unasul no palácio presidencial em Lima)
A grande maioria dos países da América Latina o que está em jogo hoje não é a superação do capitalismo. O que está em questão é, ainda, a possibilidade de reverterem o contínuo processo de aprofundamento de sua condição de nações subdesenvolvidas e dependentes. Ou seja, a disputa é, ainda, superar ou não o neoliberalismo. Por isso, grandes metas a alcançar neste momento seriam o resgate do poder decisório dos Estados nacionais, a retomada de políticas de desenvolvimento, a afirmação de projetos populares, a reconstrução da soberania e a promoção da integração regional. Este texto não foi escrito no início dos anos 2000. Estamos em 2013 e, infelizmente, não passou de moda posicionar-se contra as políticas neoliberais.
Pode-se dizer que a atual submissão dos países latino-americanos se dá essencialmente por meio de três mecanismos: o capital bancário, os monopólios produtivos e a mídia hegemônica. Essa tríade sufoca as dinâmicas econômicas nacionais e emperra o processo de desenvolvimento e de integração regional. Ainda que existam plenas condições para a América Latina trilhar um caminho distinto e mesmo que abundem os exemplos demonstrativos da possibilidade de sair desta ciranda daninha, persistem os bloqueios impostos pelos monopólios privados das finanças, da produção e da mídia.
Este artigo trata especificamente dos recentes esforços realizados pelo Conselho Sul-Americano de Economia e Finanças, criado em 2010, no âmbito da União das Nações Sul-Americanas (Unasul). A finalidade desse grupo de trabalho, composto por economistas dos governos da região, é promover a formulação de uma nova arquitetura financeira regional. Entre as medidas debatidas estão, por exemplo, desde o fortalecimento de instituições que já existem, passando pela articulação de iniciativas conjuntas por parte dos bancos centrais, por mecanismos de intercâmbio comercial sem a utilização obrigatória de divisas internacionais e até a criação de um Banco do Sul.
A escuridão dos anos 1990
A história econômica das últimas décadas do século XX na América Latina pode ser resumida em duas palavras: dívida e crise. Os países da região contraíram imensas dívidas externas na década de 1970. Na de 1980, para tentar pagá-las, passaram por um tremendo processo de malabarismo macroeconômico. Mesmo assim, só aumentaram os compromissos financeiros com os credores internacionais e a drenagem de recursos para fora. Nos anos 1990, como uma exigência da renegociação das dívidas, foram impostas as chamadas políticas do “Consenso de Washington”, que abriu as portas da região para as importações, o capital especulativo e a política de privatização e desnacionalização.
Foram tempos de hegemonia absoluta do deus mercado. A liberalização do comércio, o livre fluxo de capitais, as altas taxas de juros e as taxas de câmbio reais valorizadas foram fatais. Foi como na lenda em que se coloca um cigarro aceso na boca de um sapo. Apenas entra fumaça. Uma hora o sapo arrebenta. No caso das economias da região, o problema era um pouco diferente e a explosão veio pelas contas externas. Havia mais dinheiro saindo do que entrando. O capital especulativo chegou atraído pela elevada remuneração dos papéis das dívidas. Foi incentivado o desmantelamento da produção e da estrutura de emprego por meio do processo de venda/doação das empresas estatais e da submissão do capital privado nacional ao estrangeiro. As importações foram resultado claro da taxa de câmbio real valorizada e da destruição do aparato industrial interno. As remessas de lucros ao exterior foram uma consequência óbvia da presença dominante do capital estrangeiro em setores estratégicos da economia.
Ao longo da década de 1990, veio a conta: as crises financeiras e os déficits na balança de pagamentos. Em nome da derrubada da inflação e da “modernização” das economias construídas durante o período considerado negativamente como “populista” e “desenvolvimentista”, os governos neoliberais promoveram o crescente acúmulo de déficits. Como resultado, muitas economias da região quebraram. Foram os casos da Venezuela de Rafael Caldera, da Bolívia de Gonzalo Sánchez de Lozada e do México de Carlos Salinas de Gortari, todos em 1994, e do Paraguai de Juan Carlos Wasmosy em 1995. Fernando Henrique Cardoso quebrou o Brasil três vezes entre 1994 e 1999; Jamil Mahuad, que elevou o dólar a moeda oficial, quebrou o Equador em 1999; e Andrés Pastrana, o mesmo que assinou o Plano Colômbia com Bill Clinton, também quebrou seu país naquele mesmo ano. Na Argentina, Carlos Menem, Domingo Cavallo (Sunday Horse) e Fernando de la Rúa geraram a profunda crise entre 1999 e 2002. Demorou pouco para Jorge Batlle explodir a economia do Uruguai em 2002.
Os novos governos da década de 2000
Há uma vasta literatura que associa os desastres econômicos dos anos 1990 com a chegada dos governos progressistas da década de 2000. Estes últimos representaram uma luz diante da escuridão do “pensamento único” que vinha do Norte. Os novos governos sintetizaram o desejo popular de resgatar a própria dignidade. Daquelas revoltas populares contra os pacotes do Fundo Monetário Internacional (FMI) e seus representantes internos emergiram propostas alternativas e contra-hegemônicas. Cada país passou a adotar medidas parecidas relacionadas com a maior intervenção do Estado, com o desenvolvimento, com o pagamento da dívida social e com a proposta bicentenária da integração regional. É sempre bom lembrar que sem entender o caos econômico, político e social gerado pelas políticas dos anos 1990 não podemos compreender os atuais governos, suas propostas e seus tremendos desafios.
Hoje mais do que nunca, tomando em conta os crônicos problemas de restrição externa que historicamente afetam as balanças de pagamentos dos países sul-americanos, é necessário que as recentes iniciativas de desenvolvimento econômico e de integração regional deem a devida importância para as fontes de financiamento próprias e as linhas de cooperação macroeconômica fora do âmbito neoliberal.
Não há dúvida de que, na última década, na América do Sul, houve uma mudança de estratégia para a integração. Os países deixaram a defensiva e partiram para a ofensiva. Desde a ascensão de Chávez, Lula e Kirchner, por exemplo, foi formalizado o acordo entre o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a Comunidade Andina de Nações (CAN), gerando o futuro embrião da Comunidade Sul-Americana de Nações (CSN), criada em 2004. Ao mesmo tempo, Venezuela e Cuba criaram a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), como um contraponto à Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A proposta concebida por Chávez e Fidel foi baseada em critérios como soberania, solidariedade, reciprocidade e complementaridade. Pouco a pouco, o bloco se expandiu, formalizando-se em 2009 a entrada de Equador, São Vicente e Granadinas e Antígua e Barbuda como membros plenos, ao lado de Bolívia, Nicarágua, Dominica, Honduras e os dois países pioneiros.
Como parte dessa virada para dentro, em 2005, na IV Cúpula das Américas, em Mar del Plata, foi sepultado o projeto norte-americano da Alca. Com dificuldade, mas foi derrotado. É bom lembrar que a rejeição daquela proposta de anexação não era um consenso. A declaração final do encontro explicita duas posições muito diferentes. Enquanto alguns países levantaram a possibilidade de continuar asdiscussões sobre a Alca, as intervenções de Chávez, Lula, Tabaré Vásquez e Kirchner barraram essa ideia. A posição altiva dos líderes sul-americanos foi expressa da seguinte forma no documento: “Ainda não existem as condições necessárias para um acordo de livre-comércio equilibrado e justo, com acesso efetivo dos mercados, livres de subsídios e práticas de comércio distorcidas e que tome em conta as necessidades e as sensibilidades de todos os sócios, assim como as diferenças nos níveis de desenvolvimento e no tamanho das economias”.
Naqueles anos de aumento dos preços internacionais das commodities, de intenso crescimento econômico global e de melhores condições financeiras, surgiram várias iniciativas comuns. Em 2007, a recém-criada CSN passou a se chamar Unasul. Essa organização, composta pelos doze países da América do Sul, assumiu o papel de promover a integração em diversas áreas, seja comercial, de infraestrutura, financeira, educacional, de saúde ou de ciência e tecnologia.
Nesse contexto, dentro da estrutura da Unasul, em 2010, formalizou-se a criação do Conselho Sul-Americano de Economia e Finanças (CSEF). Entre os objetivos desse conselho estão o “uso de moedas locais e regionais nas transações comerciais intrarregionais”, o trabalho com “sistemas de pagamentos multilaterais e de crédito”, a criação de um “mecanismo regional de garantias, para facilitar o acesso a diferentes formas de financiamento”, o aprofundamento da “coordenação dos bancos centrais em relação à gestão das reservas internacionais”, a adoção de “mecanismos de coordenação de recursos financeiros […] para atender às demandas de projetos de desenvolvimento e integração”, o impulso a um “mercado sul-americano financeiro e de capitais”, o desenvolvimento de “mecanismos de monitoramento conjunto para os fluxos de capitais […] em caso de crises de balança de pagamentos” e a promoção de “mecanismos de coordenação de políticas macroeconômicas”.
A nova arquitetura financeira regional
Dessa maneira, dentro do CSEF ganhou força a proposta de uma nova arquitetura financeira regional (NAFR), que de largada já resultou em uma forte aproximação dos bancos centrais da região. A partir dessas reuniões, foram resgatadas antigas ideias, como constituir um Banco do Sul e um Fundo Monetário do Sul, impulsionar o comércio intrarregional com moedas locais e formar um mercado regional de títulos públicos. Vale comentar que muitas dessas iniciativas e medidas foram apresentadas pelos governos do Equador e da Venezuela. Esta última, por exemplo, usou seus elevados saldos comerciais, obtidos com as exportações de petróleo, para adquirir títulos da dívida pública argentina e equatoriana.
Neste momento de aceleração das mudanças, é importante que as ações promovidas pela NAFR sejam conhecidas e estudadas, até mesmo como uma forma de melhorá-las e potencializá-las. Como resultado de seus primeiros passos já houve um visível progresso inicial. Agora parece essencial que as discussões e os estudos caminhem especialmente em três direções:
1) A criação de instituições de crédito de longo prazo (entender as funções do Banco do Sul e o papel assumido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social do Brasil, BNDES). A importância de contar com fontes próprias de financiamento justifica-se, entre outros pontos, pelo fato de oferecer autonomia de reação nos momentos de restrição de liquidez internacional, com a possibilidade de adoção de políticas anticíclicas. Além disso, os países se libertam das exigências e contrapartidas neoliberais impostas pelas instituições de financiamento tradicionais;
2) A manutenção e a promoção de acordos de swapde moedas (como o Convênio de Créditos Recíprocos [CCR] da Associação Latino-Americana de Integração [Aladi], o Sistema de Moedas Locais [SML] do Mercosul e o Sistema Único de Compensação Regional de Pagamentos [Sucre] dos países da Alba). Esses instrumentos permitem a mútua compensação dos pagamentos de importações, podendo reduzir a necessidade da utilização de dólares nas transações internacionais e aliviar os problemas de restrição externa;
3) O fortalecimento de um mecanismo provedor de divisas (como o Fundo Latino-Americano de Reserva [Flar], que seria fortalecido com a entrada da Argentina e do Brasil). Note-se que no final de 2011 os dois países levantaram a possibilidade de integrar o fundo, mas ainda não o fizeram até outubro de 2013.
Ao mesmo tempo que o CSEF promove a criação de novos instrumentos, é recomendável que reinterprete de forma construtiva as possíveis funções dos mecanismos já existentes, como a Corporação Andina de Fomento (CAF), o Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (Fonplata) e o Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem). O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), controlado pelos Estados Unidos, é outra instituição que há décadas desempenha um papel de liderança na região.
Por fim, comentamos algo sobre as políticas macroeconômicas. Não se trata, naturalmente, de defender a adoção das mesmas iniciativas em todos os países, mas de analisar a possibilidade de pôr em prática medidas convergentes. Por mais distante que essas ações estejam da atual política econômica adotada no Brasil, por exemplo, em nosso entendimento alguns dos pontos mais relevantes a serem discutidos no âmbito da integração financeira regional implicariam que as nações sul-americanas:
1) assumissem uma postura centrada no desenvolvimento econômico, na industrialização e na integração regional;
2) adotassem políticas monetárias que estimulem o crescimento econômico contrariamente à alta remuneração de capitais especulativos, os quais drenam recursos da área produtiva e sobrevalorizam as moedas locais;
3) priorizassem a adoção de metas de crescimento e de emprego em vez das metas de inflação e de superávit fiscal;
4) pagassem, antes de qualquer outro compromisso, a dívida social com a maioria da população, historicamente excluída;
5) estabelecessem algum nível de controle de câmbio, de capitais e de remessas de lucros ao exterior, como forma de diminuir a exposição financeira dos países. Deve estar bem claro que, na maioria dos casos, o suposto “financiamento” via investimento direto externo (IDE) aprofunda ainda mais a dependência e a restrição externa;
6) priorizassem as instituições de financiamento regionais, de comércio compensado e a utilização de moedas locais, com a consequente redução da dependência com relação às agências multilaterais e às moedas internacionalmente conversíveis.
Os próximos anos podem ser definitivos para o processo de integração regional. Passada uma década de governos progressistas, é crucial que se consolidem essas propostas de transformação. Para isso, a questão do financiamento é central. Neste momento, estão dadas as condições para avançar no caminho da integração financeira. Estão presentes as condições econômicas (elevadas reservas internacionais) e as condições políticas (o bom grau de confluência entre os projetos das maiores economias da região). Mãos à obra.
Luciano Wexell Severo é Professor do curso de Economia, Integração e Desenvolvimento da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). [email protected]