Covid-19 escancara abismo social entre população negra e branca
A Covid-19 não escolhe quem contaminar, mas os abismos sociais entre a população branca e negra levam aos fatos já divulgados: a mortalidade do vírus tende a ser maior na população negra e em situação de pobreza
A pandemia do coronavírus descortinou no Brasil e no mundo questões históricas relacionadas a desigualdade social, racismo estrutural e violência sofrida pelas populações mais vulneráveis. Enquanto organizações da área da Saúde devidamente clamam por “fique em casa, lave as mãos e use máscara”, evidencia-se quem tem e quem não tem condições para seguir tais medidas. Diversos fatos, como a morte de George Floyd, Breonna Taylor, João Pedro, Miguel e muitos outros negros e negras, ou como a lotação dos meios de transporte por aqueles que dependem do trabalho informal para viver, só comprovam que a desigualdade racial não entra em quarentena. São muitos os dados que provam que entre aqueles que enfrentam e enfrentarão os maiores desafios estão os pretos e pardos, e especialmente, as mulheres e meninas negras do Sul Global. Por isso, neste Dia da Mulher Negra, Latina e Caribenha, precisamos evidenciar o debate em torno da urgência de respostas antirracistas e voltadas às mulheres em todas as esferas da sociedade.
A Covid-19 não escolhe quem contaminar, mas os abismos sociais entre a população branca e negra levam aos fatos já divulgados: a mortalidade do vírus tende a ser maior na população negra e em situação de pobreza. De acordo com o Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, da PUC-Rio, quase 55% de pessoas negras e pardas morreram por Covid-19, enquanto que, entre pessoas brancas, foram 38%.
Homens pretos e pardos sem escolaridade morreram quatro vezes mais do que homens brancos com nível superior (80,35% x 19,65%). Nos Estados Unidos, dados do APM Research Lab mostram que pessoas negras morreram a uma taxa de 50,3 por 100 mil pessoas, comparado com 20,7 para pessoas brancas.
Não por acaso, é essa mesma população que historicamente tem condições mais precárias de vida, com frágeis ou nenhum vínculo empregatício e menor acesso aos serviços e políticas públicas essenciais, como saúde, educação, saneamento básico, habitação, segurança alimentar. No caso de mulheres e meninas negras, a falta desses serviços e a sobrecarga de trabalho doméstico as empurram ainda mais para o trabalho informal – muitas vezes em funções de cuidado, como empregadas domésticas – e as distanciam da autonomia financeira, sendo elas também as principais vítimas da violência doméstica. São essas mulheres, portanto, as que têm seus direitos majoritariamente ameaçados em momentos de crise como o que vivemos agora. Estão, inclusive, entre as pessoas que mesmo em período de isolamento social se deslocam no seu périplo diário em transportes lotados, compondo essa grande estatística das vítimas fatais da Covid-19.
No Brasil, mulheres e meninas negras e pardas compõem 28% da população. Ou seja, são 60 milhões de brasileiras que deveriam usufruir dos mesmos direitos e condições que os demais cidadãos e cidadãs. Mas não usufruem. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), elas são 50% mais suscetíveis ao desemprego do que outros grupos. Muitas vezes, lhes faltaram oportunidades de desenvolvimento educacional – com estudos incompletos, impossibilidade de cursar o ensino superior, longas distâncias para chegar ao local de estudo ou trabalho –, além do preconceito racial que também limita o acesso a melhores condições de trabalho. Segundo estudo do Cebrap em parceria com outras organizações, há uma forte correlação entre escolaridade, gênero e raça na distribuição da população ocupada entre os grupos mais vulneráveis, mas a crise do coronavírus representa a primeira vez que grupos relativamente mais protegidos, e mais brancos, encontram-se ameaçados também. Mesmo assim, de acordo com a análise, a desigualdade é gritante. No grupo mais vulnerável, formado por trabalhadores informais em serviços não essenciais, a participação de mulheres negras é 64% maior do que na força de trabalho.
É bastante simbólico, portanto, o fato de a primeira vítima fatal do coronavírus no Rio de Janeiro ter sido uma trabalhadora doméstica, infectada pela mulher que contratou seus serviços e que tinha acabado de chegar de uma viagem à Itália – com alta taxa de infectados naquele período. O sintoma do abismo e das desigualdades sociais, raciais e de acesso a serviços já aparecia, portanto, nesse primeiro caso na capital fluminense.
Esse episódio, no entanto, foi apenas o primeiro a ganhar mais destaque durante a pandemia dentro do debate racial, que tomou proporções mundiais com os revoltantes casos de George Floyde, americano morto ao ser imobilizado por um policial branco, e João Pedro, adolescente assassinado durante operação policial em São Gonçalo. Há também a morte do menino Miguel, num exemplo trágico do quanto o acesso a serviços e a enorme sobrecarga do trabalho do cuidado afetam de forma desigual mulheres brancas e negras. Afinal, a mãe, Mirtes, teve que levar seu filho para o trabalho por não ter com quem deixá-lo, já que as creches em Recife estavam fechadas por conta da pandemia. Mirtes perdeu o menino, que estava aos cuidados da patroa e caiu do nono andar de um prédio de luxo, enquanto trabalhava por seu sustento. A ela, está proibida não só a expressão “fique em casa”, mas os direitos básicos de cidadã. A seu filho, foi negado o direito à vida. E as estatísticas persistem.
Mesmo em um momento de fragilidade mundial, pessoas negras e pardas continuam morrendo mais, sejam quais forem os motivos. Independentemente de qualquer isolamento ou distanciamento social, uma pessoa negra morre a cada 23 minutos no Brasil. A cada 100 pessoas assassinadas, 75 são negras. Se fizermos novamente o recorte por gênero, estudos apontam que as mulheres negras sempre estiveram e, mesmo após o fim do período escravocrata, continuam sendo mais vulneráveis às diversas formas de violência do que as mulheres brancas. De acordo com o Mapa da Violência, por exemplo, em 2013 morreram 66,7% mais mulheres negras vítimas de homicídio no Brasil em comparação com a taxa de mulheres brancas.
Como já mencionado acima, é de fundamental importância que ao refletir sobre mulheres e meninas negras nesse contexto de pandemia combinemos aqui as perspectivas de raça, gênero e classe, ou seja, que tenhamos um olhar interseccional para o problema. Quando pensamos nessa interseccionalidade e seus estudos temos acesso a dados que entristecem, mas que ao mesmo tempo nos ajudam a refletir sobre a necessidade do desenvolvimento de respostas e políticas voltadas para essas mulheres e também lideradas por elas. É preciso, por exemplo, fazer com que medidas de transferência de renda cheguem adequadamente a essas mulheres; apoiar organizações de mulheres considerando a diversidade entre elas e envolvê-las nas tomadas de decisão; promover medidas para reconhecer, reduzir e redistribuir a sobrecarga de trabalho não-remunerado nas casas; garantir serviços básicos como alimentação e saúde para suas famílias. Vale lembrar que as mulheres negras estão na base da pirâmide econômica13, e mudar esta pirâmide altera todo o sistema de reiteradas desigualdades. Afinal, como afirma o Coletivo Combahee River: “Se as mulheres negras fossem livres, isso significaria que todas as outras pessoas teriam que ser livres. Uma vez que a nossa liberdade necessitaria da destruição de todos os sistemas de opressão.”14
Claudia Dias é cientista política, doutora em Políticas Públicas pelo Instituto de Economia da UFRJ e assessora de Direitos das Mulheres da ActionAid, organização internacional que trabalha por justiça social, igualdade de gênero e pelo fim da pobreza.
Dandara Oliveira de Paula é internacionalista, mestre em Relações Étnico-raciais pelo CEFET e assistente de Programas e Vínculos Solidários da ActionAid.