Crença no crescimento econômico infinito e o planeta em aquecimento
Embora estejamos em uma emergência climática, de norte a sul do globo governos seguem falando em ampliar as suas taxas de crescimento anuais. Entretanto, não há mais como proclamar o crescimento infinito se o planeta em aquecimento exige uma mudança sistêmica nos modos de produção e de consumo
Durante o mês de agosto, acompanhei com apreensão as notícias dos incêndios em Portugal. Foram incêncios em diferentes localidades do país, tendo destaque a Serra da Estrela, a maior reserva natural portuguesa. Foram mais de 25 mil hectares incendiados em mais de duas semanas de fogo intenso na reserva e mais de 100 mil hectares no território português até meados de agosto. Moradias foram danificadas ou destruídas e seus habitantes prejudicados em suas atividades de subsistência e de trabalho, especialmente a agricultura e a criação de animais.
Na TV, as notícias dos jornais oscilavam entre as pessoas passando férias de verão nas regiões litorâneas, as ondas de calor com temperaturas diárias acima dos 40 graus e as imagens do fogo consumindo o que havia pela frente. Entre bombeiros combatendo as chamas, aviões cujas dimensões pareciam ínfimas perante as labaredas, moradoras e moradores das áreas rurais com suas mangueiras e baldes para aplacar as montanhas de fogo, sobressaiu nas telas a imagem de um pequeno javali, cujo olhar parecia perdido diante de um mar de cinzas, onde outrora fora o habitat no qual se recolhia e alimentava.
Nas entrevistas dos telejornais, os especialistas convidados – praticamente todos engenheiros e homens – criticavam as falhas institucionais, citavam especificidades dos territórios e mencionavam as alterações climáticas, que têm resultado em incêndios de proporções, intensidades e durações inéditas. Um ou outro reportava-se à falta de vegetação nativa, que seria mais resistente aos incêndios, e ao trabalho de pastores e agricultores, que antes habitavam em maior número os territórios afetados e ajudavam a cuidar deles. Os depoimentos de quem vive nos lugares atingidos foram de dor e de revolta.
Este verão foi registrado como um dos mais quentes em Portugal. Além das queimadas, algumas localidades viveram secas históricas. Há previsão de decréscimo em algumas colheitas, como da azeitona e da uva, alimentos característicos do país. Em função da falta d´água, o abastecimento em diversos municípios chegou a ser realizado por autotanques e a rega nos jardins públicos foi reduzida. Algumas praias de rio, que no verão atraem turistas e movimentam economias locais, desapareceram com a seca. Em outros países da Europa, a conjuntura também é perturbadora. Até meados de agosto de 2022, haviam sido destruídos quase 660 mil hectares de terra por incêndios, o pior número desde 2006, quando os dados começaram a ser coletados por satélite. Países como a Espanha, a Romênia e a França arderam pelo fogo e, em função da seca que afetou o continente, grandes rios ficaram com a capacidade de água bastante reduzida, como são os casos do rio Pó, na Itália, do rio Reno, na Alemanha, e do rio Danúbio, na Bulgária. A seca na Europa é considerada a pior em 500 anos.
Ao redor do mundo, fenômenos até então atípicos tornam-se cada vez menos exceções. O Paquistão enfrenta as maiores cheias de que se tem notícias: pelo menos um terço do país foi atingido. Mais de mil pessoas morreram e estima-se que mais de 33 milhões de paquistaneses – uma em cada sete pessoas – foram afetadas pelas inundações. Na China, o lago Poyang, o maior do país, praticamente secou, tendo registrado um sétimo do seu volume total de água no último mês. Nos Estados Unidos, os lagos Mead e Powell, que abastecem milhões de pessoas, também atingiram os níveis mais baixos da história. No Brasil, várias cidades tiveram invernos rigorosos. Lembro dos incêndios que nos últimos anos queimaram a Amazônia e o Pantanal e das cheias históricas que no início do ano atingiram vários municípios do estado de Minas Gerais e que, meses depois, assolaram estados da região Nordeste.
Desequilíbrio
Ondas de calor, incêndios recordes e secas históricas passaram a ser expressões recorrentes: “O mundo em aquecimento é um mundo em extremos, um mundo em que a humanidade é acossada simultaneamente por excessos brutais e ausências sufocantes dos elementos essenciais que mantêm a vida frágil em equilíbrio há milênios”[1]. Há mais de três décadas, cientistas começaram a alertar sobre as alterações climáticas e os perigos das emissões de gases com efeito estufa e, desde então, estas só aumentaram. A partir do último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU, publicado em abril, a emissão de gases de efeito estufa teria de ser reduzida em até 43% até 2030 para limitar o aquecimento a 1,5 graus, o que seria a perspectiva menos catastrófica para a vida no planeta. Para o secretário-geral da ONU, António Guterrez, estamos caminhando para mais do que o dobro desse limite e, a menos que os governos de todos os lugares reavaliem suas políticas energéticas, reduzindo o uso de combustíveis fósseis e aumentando o uso dos combustíveis alternativos, o mundo será inabitável.
Enquanto os alarmes soam simultaneamente, percebo que um debate mais sério e amplo sobre as raízes das alterações climáticas e como encará-las é interrompido pelas notícias da austeridade, da inflação recorde em Portugal, da guerra na Ucrânia, do aumento do preço do petróleo e dos lucros recordes dos seus acionistas. Neste jogo de notícias aparentemente dispersas, noto que as peças do tabuleiro se encaixam, pois se com a guerra está em causa a distribuição do petróleo e do gás natural para a Europa, este deveria também ser o momento para se colocar em cheque a matriz energética responsável pela emissão dos gases que aquecem o planeta.
A jornalista e ativista Naomi Klein relaciona o período de maior emissão de gases na atmosfera com a ascensão e o auge do neoliberalismo que, desde a década de 1980, orienta o sistema capitalista ao redor do planeta no sentido de cada vez maior desregulamentação dos serviços até então estatais e da ascendência do poder das grandes empresas: “(…) no preciso momento em que os governos estavam a unir-se para encarar seriamente o controlo do sector dos combustíveis fósseis, a revolução neoliberal a nível global disparou em flecha, e esse projeto de reformulação económica e social colidiu com os imperativos da ciência do clima e da regulamentação dos grandes grupos económicos a todo o momento”. A autora segue afirmando que, se sabemos que o neoliberalismo enquanto teoria e prática foi o que causou a nossa situação, então precisamos assumir que o nosso caminho de ação é contra ele. Em outras palavras, se a emissão de combustíveis fósseis, somada ao desmatamento das florestas, contribuem para aumentar a temperatura da Terra, tal aquecimento é estimulado e intensificado pelo modo como a sociedade produz e consome e pelas formas como operam a economia e o sistema de crenças que a sustenta. Assim, a forma possível de vivermos em ambientes respiráveis é transformando o sistema que organiza todos esses elementos, não somente mitigando os efeitos da sua perpetuação.
Crescimento infinito
O capitalismo e o neoliberalismo estão assentados em um sistema de crenças e na expectativa de crescimento econômico infinito. O sistema de crenças que os envolve radica-se na racionalidade e na ciência modernas que, se por um lado possibilitaram avanços na sociedade, por outro não deixaram de sustentar-se na apropriação da natureza, no domínio e no controle e não no cuidado com a terra. Esse sistema de crenças corroborou para uma perspectiva econômica de crescimento infinito, ou seja, de que podemos sempre avançar na extração de recursos naturais e no acúmulo de bens. Nos países emergentes do sul global, essa ideia foi materializada sob o prisma do desenvolvimento, horizonte diante do qual os impactos de grandes projetos geradores de lucros e de sérios impactos socioambientais foram reiteradamente justificados[2]. Ainda hoje, embora estejamos em uma emergência climática, de norte a sul do globo governos seguem falando em ampliar as suas taxas de crescimento anuais. Entretanto, não há mais como proclamar o crescimento infinito se o planeta em aquecimento exige uma mudança sistêmica nos modos de produção e de consumo.
As consequências dos desastres provocados pelas alterações climáticas já são muito devastadoras para as populações mais vulneráveis, em função do exercício da moradia em áreas sujeitas a inundações e tempestades, da falta de provimento de serviços e equipamentos públicos e, ainda, da falta de assistência estatal pré ou pós emergências. Não são poucos os abandonados nos desastres[3] em diferentes pontos do globo e a tendência é a de que, nos próximos anos, seja cada vez maior o número de refugiados climáticos[4]. Somente no ano de 2020, desastres relacionados ao clima provocaram mais de 30,7 milhões de novos deslocamentos, três vezes maior do que aqueles provocados por conflitos e violência. Enquanto isso, há quem se prepare para as catástrofes climáticas por meio da construção de bunkers ou refúgios em países como os Estados Unidos ou a Nova Zelândia, onde a demanda por bunkers em casos de catástrofes climáticas, pandemias ou terrorismo aumenta exponencialmente. São lugares hermeticamente fechados, protegidos do sol, da chuva ou de ataques nucleares e blindados aos desastres – mas só para quem pode pagar. Se há quem proponha soluções individuais para lidar com as alterações climáticas ou não se importe se as populações vulneráveis serão as que mais sofrerão com elas, enfrentá-las não se opõe a lutar por um mundo com mais justiça. O ambiente surge, então, como um novo campo de batalhas dos direitos humanos, como afirma Naomi Klein.
Capitalismo de desastre
As alterações climáticas em curso podem precarizar ainda mais a vida das pessoas que já são vulneráveis. Em 2019, Klein propôs que, naquela altura, começava a ascensão do capitalismo de desastre, caracterizado por incursões orquestradas à esfera pública pelos setores privados, combinadas com o tratamento dos desastres como oportunidades de mercado, o que acentua a vulnerabilidade. O capitalismo de desastre opera através da doutrina de choque, ou seja, da utilização de momentos de trauma coletivo, de medo e de desordem provocados pelas guerras e catástrofes para a implementação de um choque econômico que combina a privatização, a desregulamentação governamental e cortes nos gastos sociais enquanto política de Estado. Para a autora, as alterações climáticas podem ser o choque para novas medidas de austeridade por meio, por exemplo, da privatização dos serviços de empresas de resposta a catástrofes e dos serviços militares.
Os maiores causadores do aquecimento do planeta são os mesmos exploradores de sempre; por isso, a luta contra o aquecimento da Terra é também a luta contra as desigualdades sociais e em direção a uma sociedade mais equânime. E é por isso que apenas medidas individuais – afáveis ao desenvolvimento sustentável, tal como sugere o capitalismo verde – não irão nos salvar. Não há mais tempo para cairmos na armadilha das falsas respostas para lidar com o clima. Se, por um lado, são válidas medidas a tomar no âmbito privado, como o uso com parcimônia dos recursos disponíveis em casa e mudanças nos hábitos alimentares, por outro lado, estas não podem ser desacompanhadas de uma transformação sistêmica. Esta precisa atingir o modo de produção e sua matriz energética, assim como o seu conjunto de crenças e valores que, ao invés de baseados nas lógicas da competição e da exploração, devem concretizar-se no sentido da interdependência e do cuidado.
Algumas sugestões passam pelo planejamento, pelo setor público, de cidades menos poluidoras e com uso de fontes alternativas de energia, que não tragam mais impactos socioambientais, com sistemas de transportes coletivos a preço justo e com formas de morar integradas e zelosas à natureza. Passam também pelo combate ao desmatamento e às monoculturas em larga escala, que retiram o equilíbrio e a diversidade das florestas e favorecem os incêndios. Outras propostas são: refrear o setor empresarial, impondo-lhe maiores regulamentações; relocalizar a produção, já que o transporte de mercadorias em longos percursos despende muita energia; tributar ricos e poluidores, aplicando impostos ao carbono e à especulação financeira, aumentando a carga fiscal dos grandes grupos econômicos e dos ricos e eliminando subsídios às indústrias dos combustíveis fósseis; por fim ao culto ao consumo, melhorando a eficiência das economias e reduzindo os bens materiais que consumimos (neste caso, os aumentos dos níveis de consumo estariam reservados às nações que estão a sair da pobreza). Todas essas mudanças implicam em redistribuir, reparar e compensar os povos mais prejudicados pelas indústrias extrativistas e pelas alterações climáticas, sendo então a justiça climática inseparável da descolonização[5]. Ela implica em agir nos níveis econômico, político e cultural para que os efeitos das alterações climáticas sejam menos catastróficos e para que tenhamos uma outra sociedade.
O capitalismo moderno e a doutrina neoliberal converteram-se em um modelo econômico incendiário e em um modo de vida destrutivo: “(…) come montanhas; come florestas; come rios. Ele não é uma entidade sobrenatural. Ele é formado por gente”, disse Ailton Krenal, em entrevista ao site Amazônia Real. Mais individualistas, parece que cada vez menos olhamos o outro e o ambiente ao nosso redor e reparamos nas mudanças sutis que inscrevem no espaço sinais de alterações climáticas mais profundas – a demora no desabrochar de uma flor, a diminuição do fluxo de insetos, a inconstância das chuvas. Alarmamo-nos quando uma tempestade ou incêndio de grandes proporções toma forma, mas, encerrados em ambientes climatizados, parece que a gente se acostuma. Porém, ligar o ar condicionado – para quem pode – e dizer que está tudo bem enquanto a terra arde, é uma mentira que contamos a nós mesmos.
Nosso tempo está a exigir competências e conhecimentos que a maioria de nós não possui, e isso tem a ver com o fato de muitos de nós termos nos afastado da terra. Se há caminhos possíveis para agir, eu apostaria em uma reaproximação, enquanto sujeitos e enquanto comunidades, à terra. É preciso senti-la, e sentir aqui tem a ver com a ideia de mobilizarmos os nossos sentidos. Cheirar, apalpar, ver, escutar a terra e entender o que de diferente se passa com ela. Mais do que isso, aprender e dialogar com quem nela vive e é sua guardiã ou guardião – agricultoras e agricultores, pastoras e pastores, populações ribeirinhas, indígenas de vários cantos do mundo. Voltar à terra e ouvir as vozes de quem a guarda, cuida pacientemente dela – e, indiretamente de todas e todos nós – e resiste. Este é o chamado do nosso tempo.
Ananda Martins Carvalho é brasileira residente em Portugal, graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutoranda em Discursos: Cultura, História e Sociedade no Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra.
[1] KLEIN, Naomi. O mundo em chamas: um plano B para o planeta. Tradução de Ana Saldanha. 1ª. ed. Lisboa: Editorial Presença, 2020
[2] SACHS, Wolfgang. Introdução. Em Wolfgang Sachs. Dicionário do desenvolvimento – Guia para o conhecimento como poder. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
[3]VALENCIO, Norma; SIENA, Mariana; MARCHEZINI, Victor. Abandonados nos desastres: uma análise de dimensões objetivas e simbólicas de afetação de grupos sociais desabrigados e desalojados. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2011.
[4] KLEIN, Naomi. Tudo pode mudar: capitalismo vs. clima. Tradução de Ana Cristina Pais. 1ª. ed. Barcarena: Editorial Presença, 2016.
[5] KLEIN, Naomi. Dizer não não basta: resistir às novas políticas de choque e alcançar o mundo de que necessitamos. Tradução de José Miguel Silva. Lisboa: Relógio d´Água Editores, 2017