Crise mundial e integração latino-americana
Para nós não há escolha: ou avançamos na integração latino-americana plena ou sucumbiremos diante da ofensiva norte-americana que considera nossa região espaço vital para sua estratégia de dominação global. Mas afinal, qual integração?Nildo Ouriques
(Presidentes latino-americanos em Lima, Peu, durante a posse do colega Ollanta Humala)
A incapacidade de os países centrais encontrarem uma saída consistente para a crise não somente elimina dúvidas sobre seu caráter estrutural, mas também abre espaço para a atualização de uma velha lição da economia política latino-americana: sempre e quando o centro do sistema entra em crise, inicia-se um período de possibilidades para os países periféricos. Foi assim em 1929, momento em que a região aproveitou os dinamismos do episódio e deu os primeiros passos rumo à industrialização. Novo impulso industrializante ocorreu no período relativo à Segunda Guerra Mundial. Agora, a eclosão da crise global iniciada em setembro de 2007 encontra os países latino-americanos em franco processo de integração com iniciativas que jamais foram tão ousadas em nossa acidentada história. Sem dúvida, estamos diante de um novo período histórico, especialmente importante no que diz respeito à integração latino-americana.
Ademais, a fé no evangelho do livre-comércio, responsável pelo aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento – principais obstáculos à integração latino-americana –, sofreu dois abalos estruturais. A profundidade e a extensão da crise estão sendo consideradas por amplos setores sociais produtos da doutrina liberal que sustenta ideologicamente os tratados de livre-comércio. As classes dominantes na América Latina sempre acreditaram que a subordinação aos países centrais era o caminho mais rápido para o progresso econômico e social, razão pela qual se lançaram avidamente na assinatura de tratados de livre-comércio. De fato, desde 1994, grande parte da atividade diplomática e comercial das classes dominantes na América Latina foi consumida no estabelecimento de tratados comerciais orientados pela doutrina do “livre-comércio”. Contudo, antes mesmo do colapso global, a experiência do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) produziu no México não somente uma grave crise social – aumento sem precedentes da miséria e da violência, e desnacionalização da economia –, mas também a emergência de um “Estado falido”, conceito criado nos Estados Unidos destinado a identificar a debilidade estrutural do Estado mexicano, incapaz de cumprir funções básicas do Estado moderno na periferia capitalista.
A combinação dos fatores anteriores – a crise global e os resultados produzidos pelo tratado de livre comércio no México – abriram espaço para fortalecer ainda mais a integração latino-americana. O México passou de “exemplo” de modernização capitalista a ser seguido para modelo a ser esquecido. Foi nesse contexto que movimentos originalmente defensivos, como a constituição do Mercosul (Sarney e Alfonsín), foram gradualmente valorizados e, de certa forma, combinados com estratégias ofensivas, como a Aliança Bolivariana para as Américas (Alba). É também a razão pela qual o próprio Mercosul foi gradualmente evoluindo em seu conceito e mais cedo do que tarde integrará Venezuela, Equador e Bolívia de maneira plena, tornando-se parte de uma estratégia ofensiva, destinada à completa integração dos países latino-americanos e caribenhos.
Contudo, é preciso alertar para o fato de que os Estados Unidos não ficaram de braços cruzados. O recente tratado comercial entre a potência imperialista e a Colômbia revela que eles insistem na linha de “dividir para reinar”. O tratado de livre comércio entre Estados Unidos, América Central e República Dominicana (Cafta-RD), que entrou em vigor em 2006, também se inscreve nessa perspectiva, e o apoio diplomático ao recente Acordo do Pacífico (Chile, Peru, Colômbia e México) é outra demonstração de que os interesses norte-americanos contam com elites nacionais destinadas a sabotar o espírito bolivariano em curso na América Latina.
Nacionalismo em nações inconclusas
Para nós não há escolha: ou avançamos na integração latino-americana plena ou sucumbiremos diante da ofensiva norte-americana que considera nossa região espaço vital para sua estratégia de dominação global. Mas afinal, qual integração?
A emergência de um nacionalismo revolucionário ampliou o horizonte do debate sobre a integração. Não por acaso, as elites não fazem a necessária distinção entre “populismo” e nacionalismo revolucionário, este particularmente forte na Venezuela, Equador e Bolívia. Ao contrário da ideologia dominante, que insiste em considerar o nacionalismo uma peça de museu, a verdade é que nas nações inconclusas da América Latina o nacionalismo cumpre funções construtivas de extraordinária importância. Os três países antes mencionados representam precisamente situações em que o nacionalismo é indispensável para o fortalecimento ou a conquista da soberania nacional, o combate à desigualdade social e a democratização do Estado. A integração latino-americana é também um requisito desse nacionalismo, pois eles sabem que não podem superar o subdesenvolvimento e a dependência com estratégias exclusivamente nacionais. Em consequência, são os países que apostam decididamente no latino-americanismo.
O surgimento da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), em fevereiro de 2010, é produto necessário desse nacionalismo de novo tipo e espaço de articulação política destinada a substituir a Organização dos Estados Americanos (OEA). Ele revela que, apesar das dificuldades, as condições políticas, econômicas, culturais e sociais nunca foram tão favoráveis à integração. A União de Nações Sul-Americanas (Unasul), criada pouco tempo antes, é outro fórum que representa esforço na constituição de alianças, de construção de consciência comum sobre problemas comuns. Há também instituições como o Banco do Sul e as imensas vantagens de uma moeda como o sucre, imprescindível para um exercício de soberania monetária, que ganharam inédita relevância e eficácia comprovada em várias ações já realizadas. Nenhuma iniciativa das décadas anteriores progrediu tanto como as atuais.
É claro que existem problemas importantes para superar. Há, de fato, a ação permanente dos Estados Unidos destinada a desacreditar e sabotar cada passo na direção da Pátria Grande. As elites nacionais já deram suficiente demonstração de que ainda julgam a aliança prioritária com a potência imperialista um instrumento valioso de estabilidade de seus interesses, que invariavelmente conspiram contra o fortalecimento da nação. Historicamente, os Estados Unidos sabotaram o esforço integracionista e contribuíram decididamente para a balcanização do continente. Bastaria lembrar o Tratado Herran-Hay assinado com a Colômbia em janeiro de 1903, para entender a posterior separação do Panamá da Colômbia, talvez o caso mais evidente de como os interesses estratégicos dos Estados Unidos não podem suportar uma América Latina unida e soberana. É também um exemplo inequívoco de que as elites crioulas não vacilam em fazer da Doutrina Monroe sua bússola no mundo atual.
Ainda que os Estados Unidos sabotem a integração latino-americana, é evidente que possuem, em caso de necessidade, uma particular visão do processo. Por isso, estimulam propostas que fortalecem uma economia exportadora, razão pela qual indicam que a integração física (infraestrutura) é indispensável para o futuro da região. A economia política latino-americana revelou que uma economia exportadora requer, necessariamente, salários deprimidos. Nesse contexto, é impossível consolidar um mercado interno de massa calcado nas necessidades elementares da maioria da população. O Brasil é o exemplo mais evidente dessa limitação estrutural do capitalismo periférico, pois a despeito de sua imensa riqueza verificamos um obstáculo insuperável para a plena constituição de um poderoso mercado interno de massa: 76% da população economicamente ativa recebe até três salários mínimos! Segundo dados recentes, os 10% mais ricos detêm 75% da renda e riqueza nacionais. Enfim, o salário mínimo de R$ 545 está bem distante do salário mínimo necessário calculado pelo Dieese, que é de R$ 2.194,76. Nessas condições, até mesmo a ampliação do crédito será, necessariamente, limitada, quando não drasticamente reduzida como com frequência ocorre em tempos de crise.
A recorrente tentação subimperialista brasileira se explica, portanto, por essa restrição estrutural do mercado interno, razão pela qual a reprodução do capital tem de buscar novos e permanentes mercados. O ativismo do Itamaraty no segundo mandato do presidente Lula é expressão desse requerimento do desenvolvimento capitalista em nosso país. É por essa via que o discurso da “integração” entrou no universo diplomático e empresarial brasileiro. Da mesma forma, o estímulo de Washington à chamada “liderança natural” do país na América Latina coroa no terreno político-diplomático a necessidade de que existam “potências intermediárias”, sempre muito úteis na política de contenção de uma integração continental destinada a enfrentar os interesses norte-americanos na América Latina. O nacionalismo revolucionário anteriormente indicado é um adversário considerável do subimperialismo brasileiro, fato que não impede que governos mantenham relações amistosas e até mesmo alianças pontuais, especialmente no que diz respeito às relações com os Estados Unidos.
Precisamente quando a concepção bolivariana de integração continental ganhou força, o Brasil deixou para trás sua histórica distância dos temas latino-americanos e se esforça para ganhar um papel de protagonista no processo em curso. Mas é fácil observar que o súbito interesse pela América Latina não incluiu esforço na direção de consolidar o Banco do Sul, a Telesur ou o Sistema Único de Compensação Regional (Sucre), projetos recebidos sempre com desdém ou aberto ceticismo pelo mundo acadêmico, empresarial e grande parte da diplomacia. Em lugar do fortalecimento do Banco do Sul e do estabelecimento das estratégias produtivas e científicas comuns, parte significativa da poupança nacional é convertida em crédito e destinada, via BNDES, para respaldar a conquista de mercados nos países vizinhos.
Eis a razão pela qual a tematização da integração em nosso país ainda é cativa dos interesses dominantes. Também por isso aumenta a desconfiança dos povos e Estados latino-americanos em relação às pretensões hegemônicas do Brasil. Contudo, é cada dia maior a percepção de que sem a completa e definitiva integração latino-americana nenhum país poderá superar a dependência e o subdesenvolvimento, características essenciais de nossa formação social. É impossível ocultar que os Estados Unidos tentaram criar a Alca como reserva estratégica na luta pela hegemonia global, assim como a Europa criou seu projeto comunitário com o mesmo objetivo. Por que semelhante operação não resultaria no caso da América Latina?
Integração ou dependência
Os efeitos destrutivos da crise global revelarão, mais cedo do que tarde, não existir alternativa para nós: integração ou aprofundamento da dependência. O lugar reservado para nossos países fora de uma alternativa emancipatória, em que a integração é peça fundamental, é mais do que evidente: basicamente exportadores de produtos agrícolas e minerais. Enfim, para os países latino-americanos – o Brasil entre eles – está reservada uma posição adversa na divisão internacional do trabalho, na qual podemos aspirar tão somente ao desenvolvimento de indústrias tecnologicamente superadas nos países centrais e somar, marginalmente, nas cadeias de valor global. Mas jamais poderemos superar a dependência tecnológica e a condição de uma economia exportadora complementar às exigências de acumulação dos países centrais.
O retorno da estratégia desenvolvimentista em curso encontra, neste contexto, obstáculos formidáveis. Não basta realizar importantes programas sociais se o nó górdio da concentração da renda não for combatido severamente e a superexploração da força de trabalho for mantida como uma exigência do desenvolvimento capitalista. Da mesma forma, é preciso sair da armadilha imposta pelo crescente endividamento estatal e o caráter rentista que este assumiu em vários países da região, especialmente no Brasil. O crescimento exponencial da dívida interna, a retomada do endividamento externo nos últimos anos e a pesadíssima carga financeira que eles implicam indicam que tudo reforça o papel periférico que ocupamos na economia mundial. A despeito do otimismo – ingênuo ou interessado – que observamos no Brasil, a verdade é que, sob o impacto da crise, a velha política de austeridade de extração fundomonetarista já se escuta novamente na região. A ruptura com essa política é uma condição necessária para enfrentar os desafios tradicionais e os novos engendrados pela crise global. Ninguém mais poderá afirmar que estamos imunes a seus efeitos mais perversos ou acreditar que o desempenho dos países periféricos nos limites aqui indicados poderá tirar o mundo capitalista de sua grande crise. Ao contrário, o que podemos concluir sem margem de erro é que estamos entrando numa fase da crise na qual os países do centro cobrarão dos periféricos de maneira crescente sua inevitável cota de sacrifício. A integração latino-americana – no terreno da cultura, da economia, da ciência e tecnologia e do poder político – é um instrumento que ninguém mais poderá desconsiderar. O tempo em que o Brasil estava de costas para a América Latina acabou. Contudo, o caminho brasileiro da integração latino-americana terá de abandonar as crenças com as quais as elites construíram aquela antiga distância, expressão acabada de um continente balcanizado. Uma das mais arraigadas é a ilusão de que o Brasil, por sua grandeza geográfica e seu desenvolvimento relativo maior, pode salvar-se individualmente num mundo em chamas.
Nildo Ouriques é Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais e membro do Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) . Email: [email protected]