A ilha completa mais de duas semanas sem mortes por Covid-19
No calamitoso cenário da América Latina e do mundo, como pode Cuba, enfraquecida economicamente e sob embargo, destacar-se de maneira tão exitosa?
No trágico período que vivemos, Cuba pode finalmente respirar: no último sábado, a ilha completou duas semanas sem nenhuma morte causada pelo novo coronavírus depois de, no dia 19 de julho, amanhecer sem novos casos de Covid-19. Diante do almejado resultado, questionamos: a que se deve o sucesso cubano? Situada a apenas 140 km do país que registra o maior número de casos de contaminação por Covid-19, os Estados Unidos – com 4.368.079 casos confirmados e 150.199 óbitos –, como a ilha alcançou o melhor cenário na região?
As Américas e o Caribe reportam 8.620.775 casos confirmados até o dia de hoje, o que representa 53,8% do total de casos no mundo. Em Cuba, os primeiros casos de contaminação por coronavírus foram notificados no dia 11 de março. Naquele momento, o vírus já estava presente em mais de cem países. Os casos relatados passavam de 109 mil e mais de 3.811 pessoas haviam sido vítimas fatais da doença ao redor do planeta. O país, que destaca-se internacionalmente pelo desempenho com a medicina preventiva, já se preparava para a chegada do vírus. Por meio de campanhas sanitárias e informações contínuas difundidas na televisão, rádio e internet e com antecipada restrição de entrada na ilha, Cuba encarava o vírus mesmo antes deste tornar-se realidade em seu território.
Até o último domingo, Cuba confirmou 2.532 casos de contaminação, além de um total de 87 óbitos por Covid-19. Apenas uma morte ocorreu em julho. Onze, das quinze províncias cubanas, não registram novos casos desde maio. O mês de julho iniciou em Cuba com o “desconfinamento” gradual de Havana, com reabertura de serviços e atividades definidos como essenciais.
A crise sanitária, contudo, não era a única que se anunciava no país. Há uma espécie de permanência de crises e de vitórias desde a polemicamente comentada – ainda que pouco estudada – Revolução Cubana, de 1959. Quando declarado o caráter socialista da revolução, em 1961, a relação já estremecida com o vizinho, símbolo da ideologia capitalista, assumiu a cena. Os Estados Unidos impuseram um bloqueio econômico que vigora há 58 anos, mesmo que condenado pela Assembleia Geral da ONU por 28 vezes consecutivas. O embargo agrava-se no contexto da pandemia e impede que cubanos tenham acesso a suprimentos médicos e sanitários em meio à crise.
Cuba é um dos vinte países que integram a chamada América Latina. Nas últimas semanas, o subcontinente foi reposicionado como novo epicentro da doença, sendo a região mais impactada pela pandemia. A pandemia de Covid-19 descortinou e intensificou problemas que despontam com a crise sanitária, mas que nela não começaram e tampouco terminam. Com a exceção de Cuba, as últimas décadas na região foram caracterizadas pela promoção de políticas de acelerada privatização de serviços essenciais, flexibilização e precarização dos contratos de trabalho e avanço espoliatório de empresas extrativistas por meio da abertura ao capital financeiro. Houve, nesse sentido, uma sequência de governos que, a despeito da chamada onda rosa, seguiram à risca as diretrizes do projeto neoliberal empenhadas pelo FMI e Banco Mundial.
O resultado é não apenas verificável como também visível: a acentuada desigualdade social e a exploração desregulada de recursos naturais são apenas dois dos traços da gravidade do problema. Com a pandemia, tornou-se, enfim, insuportável. Países que experienciaram protestos massivos e radicalizados em 2019, Chile, Bolívia, Equador e El Salvador, multiplicaram suas frentes de ação. Alguns, com mobilizações relativamente pulverizadas, passaram a se organizar em torno de pautas emergenciais, como a fome e o direito de existir. Destacam-se, nesse caso, Argentina, Brasil, Colômbia e México. No meio da pandemia, manifestações antirracistas ocorridas nos Estados Unidos, Vidas negras importam, ecoaram também pela América Latina, levando milhares às ruas.
No calamitoso cenário da América Latina e do mundo, como pode Cuba, enfraquecida economicamente e sob embargo, destacar-se de maneira tão exitosa? Cabe destacar alguns dos processos que diferenciam o país. Assim que constatados os primeiros casos na ilha, as ações do governo foram tomadas por meio de duas frentes principais. Primeiro, a dinâmica de “porta em porta”, que contou, voluntariamente, com médicas/os e estudantes de medicina para fazer visitas às casas e monitorar novos casos. Um diferencial, nesse caso, foi a testagem ampliada de assintomáticos. Segundo, garantias trabalhistas com condições mínimas para permanecer em casa.
Ao passo que o resto do mundo proferia discursos bélicos quanto à forma de encarar a pandemia, marcadamente os governos brasileiro, inglês e estadunidense, o presidente cubano Miguel Díaz-Canel reivindicou outro ponto de partida. Um caminho de solidariedade e investimento em ciência, pesquisa e recursos médicos, uma escolha que crie “instrumentos de saúde e de vida e não de morte”, disse em reunião internacional, citando Fidel Castro. Em escala interna, explorou o resultado histórico do sentido de comunidade cubano.
Segundo o Anuário Estatístico de 2019, Cuba conta com mais de 95 mil médicas/os no país, quase 10 para cada mil habitantes, e cerca de 85 mil enfermeiras/os. As brigadas médicas são uma prática cubana de cooperação com países considerados da periferia global desde a década de 1960. Durante a pandemia, estendeu-se também a países do Norte global, como Itália e Portugal. As celebradas – e também criticadas – missões de solidariedade de profissionais de saúde cubanos em maio já se encontravam em 31 países.
Internamente, as medidas emergenciais do governo de garantias aos trabalhadores associaram-se às políticas sociais contínuas. A libreta, por exemplo, é um auxílio continuado do governo que, embora com alterações contextuais, garante alimentos básicos a preços subsidiados desde 1962. O sistema de racionamento de comida, que caminhava para ser eliminado, voltou a ser uma política de grande relevância não apenas pela garantia de alimentação, mas também como forma de conter aglomerações em centros comerciais.
Paralelamente, o governo, marcado por seu caráter propagandista, dada a relação orgânica que possui com o Partido Comunista de Cuba – único partido legal no país mas que não possui lógica eleitoral –, fez um chamado à “solidariedade, disciplina e altruísmo” do povo cubano, em discurso oficial. Cabe dizer que um certo estado constante de alerta e defesa do povo cubano é decorrente do processo histórico anteriormente mencionado A constância de ataques e dificuldades, não apenas econômicos, mas também bélicos e ideológicos, tornaram a sociedade em Cuba altamente integrada e articulada entre si.
Por outro lado, o chamado à “disciplina” feito pelo governo não se restringiu ao discurso e lançou mão de ações penais em caso de infração às novas regulações de restrição à mobilidade. A repressão para fazer valer as regras aproxima Cuba de outros países latino-americanos e destoa do discurso que parecia apostar em iniciativas espontâneas e coletivamente reguladas. Assim como na totalidade dos países monitorados pelo Observatório de Movimentos Sociais da América Latina, Cuba também viu surgirem ações e redes de solidariedade. Essas redes são, no caso cubano, em grande parte, politicamente orientadas a combater à violência de gênero e constituem apoio e ajuda à comunidade LGBTQI e a mulheres em situação de vulnerabilidade. Outras reivindicam direitos e desencarceramento de presos políticos durante a pandemia.
A crise pandêmica revela outras crises precedentes da América Latina: sociais, políticas e econômicas. Mas também evidencia respostas exitosas que apontam para um acúmulo social historicamente construído. O êxito cubano para confrontar questões sanitárias a despeito dos problemas econômicos é possível porque o país soma mais de sessenta anos em que a vida e saúde da população vêm sendo colocadas no centro das políticas nacionais. Porém, o sucesso não se restringe a um Estado com caráter diferenciado. Conta, sobretudo, com uma sociedade constituída, a largos passos, de solidariedade.
Cabe destacar que o texto presente é fruto das reflexões coletivas do Observatório de Movimentos Sociais da América Latina/NETSAL, lançado esta semana. O observatório divulgará relatórios mensais sobre os movimentos e mobilizações da região.
Lara Sartorio Gonçalves é cientista política pela Unirio e pesquisadora do Observatório de Movimentos Sociais da América Latina/NETSAL.