Curiosas “inovações” da indústria brasileira
As famílias, diante da necessidade dos produtos, continuam comprando os itens expostos nas prateleiras dos supermercados, mas pagando, por quantidades menores, preços muito próximos daqueles oferecidos antes da “inovação”
A inovação é tema importante no debate econômico. Aquilo que os humanos podem fazer melhor, em maior quantidade, mais barato ou que seja novidade geralmente significa ofertar maior bem-estar material para a sociedade e lucros estimulantes aos empresários. Foi Schumpeter que, no começo do século XX, sublinhou o papel das inovações, dando a elas o status de motor do desenvolvimento econômico. Seu trabalho seminal de 1911 observou a centralidade do aperfeiçoamento das forças produtivas e seus resultados em termos de riqueza material e mesmo simbólica para as sociedades.
Nas economias pobres, contudo, o circuito de “destruição criadora”, desenhado por Schumpeter, não tem a mesma potência e talvez nem mesmo funcione. Por exemplo, apesar dos esforços para industrialização em alguns países, as técnicas e equipamentos importados para as novas fábricas e serviços trouxeram saltos tecnológicos, mas não mudaram o fato de que, nesses territórios, pouquíssimas inovações são criadas. No caso brasileiro, há importantes exceções que, na maioria das vezes, restringem-se a empresas que são ou foram estatais (Petrobrás, Eletrobrás, Embraer, CEITEC e Embrapa, por exemplo). O setor privado sempre preferiu importar padrões, design, tecnologia e máquinas para fabricar, aqui, bens simples ou sofisticados que parodiam os países ricos. Por isso, a inovação produzida na maior economia da América Latina, quando acontece, costuma ser apenas incremental, quase nunca disruptiva.
O fim do período de industrialização do país (entre 1930-1980) piorou o cenário. Hoje, o Brasil soma mais de quarenta anos de baixo crescimento. E sem crescimento, o progresso técnico não aconteceu.[1] Logo, a indústria perdeu competitividade, reduziu sua participação na pauta de exportações e as cadeias produtivas encurtaram com a maior importação de manufaturados. Consequentemente, a economia brasileira se afastou dos setores mais dinâmicos e portadores de futuro no mundo. Tanto assim que, atualmente, a agropecuária é festejada como setor promissor para a nação, evidenciando a perda de complexidade produtiva e o risco de o país voltar a exportar apenas “pau e pedra”.

Além disso, não foi impunemente que o Brasil chegou aos dias atuais arrasando as esperanças renascidas na primeira década do século XXI. As escolhas políticas e o neoliberalismo tacanho, aprofundado desde 2015, continuam a adiar a recuperação da crise econômica há oito anos, conformando a retomada mais lenta da história republicana brasileira.
A “ousadia” inovadora, porém, ressurgiu nos últimos anos de baixíssimo desempenho econômico e inflação elevada. Como isso foi possível? Por dois motivos: 1. a curiosa inovação se concentrar no setor de alimentos e, em menor medida, espalhar-se por outras indústrias; 2. o poder oligopolista das grandes empresas, algumas de âmbito mundial. O fenômeno, é preciso esclarecer desde já, tem consequências muito diferentes de inovações em produtos novos, melhores ou mais baratos. Trata-se, ao contrário, de velhas novidades, que prejudicam os consumidores. Isto é, curiosas “inovações” conhecidas como maquiagem ou reduflação que consistem em novas embalagens com menor conteúdo (e/ou qualidade), expostas como a única opção do produto de uma marca específica, mas com preços muito semelhantes aos apresentados pelo pacote anterior, maior.
Ao consumidor não restou escolhas. Impor essa estranha inovação só foi possível porque os mercados de bens industrializados são oligopolizados e as marcas têm alto valor. Assim, os médios fabricantes, diante do comportamento das empresas líderes, tornam-se, previsivelmente, seguidores, realizando, quando possível, o mesmo tipo de inovação inusitada. As famílias, diante da necessidade dos produtos, continuam comprando os itens expostos nas prateleiras dos supermercados, mas pagando, por quantidades menores, preços muito próximos daqueles oferecidos antes da “inovação”.
O tema se torna especialmente grave porque essa estratégia de maximização de lucros das grandes empresas se faz em uma economia em crise, onde o mercado de trabalho apresenta elevados índices de desemprego, os salários estão corroídos e a informalidade e o subemprego, com todas as suas consequências, cobram sofrimento aos mais pobres. Juntas, crise econômica e curiosas inovações concorrem, ainda que em graus diferentes, para reduzir o bem-estar das famílias trabalhadoras, não obstante a satisfação dos empresários com a margem de lucro operacional ter se recuperado após 2015, segundo a CNI.
O fulcro do problema, então, não é a inovação, mas a extração de renda por parte de grandes empresas e suas seguidoras em desfavor da maioria da sociedade, concentrando ganhos em parcelas muito específicas e pequenas da população. O tema é discutido para o contexto estadunidense no último livro de Mariana Mazzucato, The value of everything (2018). Aqui, no Brasil, é o rentismo em uma roupagem diferente: a inovação insidiosa que reduz a quantidade (e/ou a qualidade) de produto por embalagem sem diminuir o preço, aumentando o lucro por unidade vendida. Qual a contribuição disso para o crescimento econômico, a geração de emprego ou o aumento do bem-estar material no país? Certamente nenhum. Pelo contrário, o descompromisso dos grandes capitais com o desenvolvimento nacional, nos últimos quarenta anos, reproduz uma sociedade escandalosamente desigual, com enormes contingentes pobres e acentuados conflitos sociais. As lideranças empresariais, ao abandonar a aspiração ao progresso coletivo em favor do rentismo privado, estão colocando toda a nação sob o risco da violência das ruas ou do Estado, enquanto a subnutrição e o atraso escolar se alastram descontroladamente sem reação republicana.
Destarte, o grande capital brasileiro, exceto honrosas exceções, não inovou em seu velho hábito de se apoderar do Brasil, reduzindo o país a espaço para seu rentismo. As recentes e curiosas “inovações” contra o consumidor são a expressão regular e repetida da muito antiga disposição de extrair renda, apesar do ultraje.
Ricardo L. C. Amorim é economista e pesquisador do grupo Cadeias Globais de Valor da Universidade Federal do ABC (UFABC).
[1] A Lei de Kaldor-Verdoorn, em poucas palavras, prevê que o aumento da taxa de crescimento da produção industrial induz ao aumento da produtividade do trabalho na indústria.