Da espanholização do Brasil
Se na primeira grande onda neoliberal (1990) era possível prever os efeitos socioeconômicos de futuras crises na Europa olhando para o Brasil, não há dúvidas de que hoje, nós, brasileiros, podemos prever o que possivelmente nos acontecerá olhando o que passou na Espanha. Viveremos a “espanholização do Brasil”
No final do século XX, momento de expansão global da racionalidade neoliberal, justificadora da revolução tecnológica e do capitalismo financeiro, Ulrich Beck, sociólogo alemão, dizia que se a Europa quisesse saber o que aconteceria no continente acaso as reformas de ajustes estruturais (chamadas de políticas de austeridade) fossem aprovadas, bastava que olhasse para o Brasil. Ele se referia, obviamente, ao desemprego estrutural, ao subemprego, à miséria e à degradação socioambiental que distinguia a realidade brasileira.
Dizia ele que se as reformas estruturais anti-públicas fossem aprovadas haveria um fenômeno de “brasileirização do ocidente” e a ascensão de uma sociedade de risco em substituição ao sonho da sociedade do pleno emprego. Alertava, portanto, que os processos de desregulamentação do trabalho e do capital condenariam a Europa a um processo de desigualdade crescente e de tensões sociais perigosas.
Pois bem. Passada a primeira década do século XXI, de fato, a Europa mergulhou em uma crise civilizatória bastante severa. O bloco, como um todo, sentiu os efeitos da crise financeira de 2008, mas não há dúvida de que os países mais afetados foram os países do sul, dentre eles a Espanha.
De acordo com Elsa Santamaría López e Amparo Serrano Pascual, sociólogas espanholas, os índices de desemprego na Espanha – em torno de 8% – sempre foram estruturalmente mais altos do que os de outros países denominados desenvolvidos. Ocorre que com a crise de 2008 e com as respostas políticas dadas a ela, o problema da desocupação se agravou tendo alcançando, em 2013, o índice de 27% da população economicamente ativa.
Entre os mais jovens, aqueles com até 25 anos de idade, no período de 2008 a 2015, a taxa saltou de 18,1% para 55,5%, segundo os dados oficiais, o que significou mais que o dobro da média europeia, onde os dados de desemprego juvenil também cresceram no período, à exceção da Alemanha e de Malta, segundo López e Pascual.
O uso indiscriminado de contratos de trabalho a prazo, de trabalho a tempo parcial, a terceirização, o trabalho intermitente, o subemprego, a sobrequalificação da mão de obra e o ataque à representação sindical, tornaram-se característicos do mercado de trabalho espanhol da segunda década do século XXI.
As reformas trabalhistas dos últimos trinta anos, por óbvio, deram suporte a essa transição da sociedade de pleno emprego para a sociedade de risco.
E ainda que recentemente haja crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) espanhol e redução do índice de desemprego, isso não tem significado melhoria nas condições de vida e desenvolvimento humano dos trabalhadores.
Primeiro, porque a redução do índice de desemprego está intimamente relacionada com a massiva contratação de mão de obra precária, em substituição aos contratos de trabalho de longa duração e jornada a tempo integral. Segundo, porque os salários diretos (direitos trabalhistas), indiretos (direitos sociais como saúde, educação e segurança) e diferidos (pensões) continuam baixando, enquanto a desigualdade se amplia em favor das classes mais abastadas. Ou seja, a Espanha está longe de resolver os problemas de seu combalido mercado de trabalho. Da mesma maneira, está longe de resolver os problemas de fraca demanda agregada e consumo que impactam negativamente em sua economia.
A classe média espanhola, pauperizada, não consome. Ao menos não no ritmo que consumia antes. Aliás, parte dela, desempregada, passou a sofrer com problemas até então incomuns como, por exemplo, o crescimento do número de pessoas sem-teto, em condição de mendicância e miséria extrema.
Direitos sociais como o direito à moradia, ao trabalho digno, à vida, à educação pública de qualidade, à saúde, à seguridade social já não existem para boa parte dos espanhóis. Os excluídos do mundo do trabalho são abandonados à própria sorte e à indigência.
Materializa-se, passo a passo, uma sociedade de risco. Uma sociedade individualista que prefere os mais ricos, “os vencedores”, e exclui os mais pobres, “os perdedores”. Uma sociedade que privatiza os lucros e socializa os prejuízos. Uma sociedade que permite, mesmo depois do movimento denominado 15M, constrangimentos progressivos da democracia, haja vista, por exemplo, a edição da lei da mordaça que criminaliza a ação sindical, o piquete, dentre outras ações indispensáveis à luta por dignidade dos trabalhadores.
Uma sociedade em que as pessoas não contam. Em que o que conta é o lucro. Uma sociedade em que o precariado, na concepção de Guy Standing, em livro intitulado The Precariat, cresce ano a ano.
Se na primeira grande onda neoliberal (1990) era possível prever todos esses efeitos socioeconômicos olhando para o Brasil, não há dúvidas de que hoje, nós, brasileiros, podemos prever o que possivelmente nos acontecerá olhando o que passou na Espanha. Viveremos a “espanholização do Brasil”.
E no Brasil? A classe média desavisada!
As classes privilegiadas foram às ruas. Aqueles vestidos de amarelo, com a criança no carrinho empurrado pela babá (fantasiada de novela das sete). Os mesmos que apresentam a empregada de anos como sendo da família, mas consideram o almoço parte do salário. Apoderaram-se da bandeira do Brasil e, verdadeiros patriotas, bradaram contra a corrupção, proclamando-se guardiões da moralidade e dos bons costumes. Elegeram alvos para seu ódio reprimido: a presidenta da república, o PT, seus aliados e tudo que possa lembrá-los, inclusive as camisas vermelhas.
Outros se juntaram, como a nova classe média, que na definição de Jessé de Souza, os “batalhadores”, é aquela que “não dispõe – ou não dispõe em medida significativa – das precondições para a incorporação do capital cultural – indispensável no capitalismo moderno…”. Pois bem, animada por shows pirotécnicos, mascote, discursos inflamados e, obedecendo aos chamados da imprensa que divulgou datas, horas e locais, a nova classe média incorporou-se ao canto da sereia e entoou o hino brasileiro. Não percebeu que se trava na sociedade uma luta de classes e de que integra a explorada, tão pouco admite ter sido manipulada (ninguém gosta de assumir o protagonismo de gado). Não podendo cometer o pecado da mentira ou confessá-lo, continua se convencendo dos seus melhores propósitos.
Inconsciente de quão graves serão os resultados das modificações legislativas impostas pelos atuais representantes do estado brasileiro, nem por isso pode ser isentada de responsabilidade no processo. A sociedade, como um todo, não os interessa. A mais trágica, de resultados que serão rapidamente sentidos, é a que rege o contrato de trabalho e que foi incorretamente chamada de “reforma trabalhista” porque, na verdade, constitui-se no rompimento das relações entre capital e trabalho.
A justiça e a legislação especializadas que foram demonizadas pela imprensa e pelos interesses do capital (ora minguadas em suas funções) sempre serviram de anteparo para uma convulsão social nos moldes do século XIX na Europa e nos Estados Unidos. O retrocesso é digno da comparação. Não há exageros em dizer que os direitos foram extintos. São mais de 100 artigos legalizando a discrepância entre empregados e empregadores, negando princípios básicos do direito material e processual. Até mesmo o que o direito civil pátrio não admite em uma disputa patrimonial, agora, é perfeitamente legítimo na relação de trabalho. O salário – que tem caráter alimentar – é menos protegido pela lei do que o aluguel de um carro. Este pode ser discutido sem pagamento de custas no Juizado de Pequenas Causas, já não sendo mais possível na discussão dos direitos do trabalhador, porque o processo na Justiça do Trabalho tornou-se oneroso.
Lamentavelmente, não são levados a público os resultados desastrosos dessa mesma política em outros países que nos antecederam.
Mírian Gonçalves, advogada de trabalhadores há 35 anos, mestra em Direito das Relações Sociais pela UFPR, sócia-fundadora dos institutos DECLATRA e Instituto Direito e Democracia (IDD), vice-prefeita de Curitiba pelo PT, gestão 2013-2016.
Ricardo Nunes de Mendonça, advogado de trabalhadores há 14 anos. É sócio do Declatra. Mestre em Direito pela PUC-PR. Cursa, atualmente, o “Master em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento”, da Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha – Espanha.