Da $Libra à liberdade sectária, os golpes na Argentina de Milei
O avanço da extrema-direita, originado nos países ricos, impacta os conflitos internos da periferia. Com a ordem em colapso, surge uma dinâmica ingovernável
Javier Milei, o presidente da Argentina, mergulhou o seu governo em um grave escândalo. Visto com entusiasmo como expoente de um laboratório ultraliberal pela direita internacional, ele foi ao “X” promover o lançamento de uma nova criptomoeda, a $Libra: “A Argentina liberal está crescendo!!! Este projeto privado será dedicado a incentivar o crescimento da economia argentina, financiando pequenos negócios e empreendimentos argentinos. O mundo quer investir na Argentina”.
A postagem de Milei incluía um link para o empreendimento, denominado “projeto Viva la Libertad”. Sem dúvidas, uma referência ao slogan do presidente, que encerra todos os seus discursos dizendo: “Viva La Libertad Carajo”. Após o endosso, a capitalização de mercado da nova criptomoeda subiu para mais de US$ 4 bilhões.
Em resumo, Milei divulgou uma moeda sem lastro real e ela bombou porque empolgou a especulação. A equipe que criou a moeda digital, porém, detinha 80% de toda a circulação. Depois, quando o preço disparou, resolveram vender tudo e o valor foi a zero. A cereja do bolo, o presidente da Argentina ajudou a aplicar um golpe financeiro, atestando que o país vive uma realidade quase distópica. A situação que envolve Milei é, evidentemente, um caso de polícia.
O criptogate, contudo, desdobra-se de uma conjuntura difícil, envolvendo dimensões políticas e sociais que não dizem respeito aos limites do direito penal. A passagem de rasteira nos argentinos começou quando Milei prometeu enfrentar a casta, mas colocou em marcha uma receita falaciosa para combater a inflação, sem enfrentar os seus contornos sociais mais dramáticos.

Em meio à regressão, o cavalo de batalha
O ministro da Economia, Luis Caputo, divulgou que a Argentina terminou 2024 com uma queda de 94 pontos na inflação e um superávit nas contas do governo de 1,8% do PIB. Foi a primeira vez desde 2010. O feito veio depois que a inflação desacelerou durante o ano, acumulando 118%. Quando a trajetória de queda na inflação e o superávit fiscal começaram no primeiro trimestre do ano passado, a porta-voz do Fundo Monetário Internacional declarou “um progresso impressionante” nos ajustes da economia e recomendou ao presidente proteger os setores mais pobres da Argentina. Na época, Milei se apropriou da primeira parte da mensagem como um triunfo, deletando a segunda.
O “progresso impressionante” se traduz, porém, em uma tragédia anunciada. A equação é a seguinte: com o congelamento dos investimentos públicos e a remarcação liberada de preços, a inflação faz praticamente sozinha o trabalho de engordar as contas do governo. Assim, quando há aumento na arrecadação, as despesas também avançam. Dados apresentados no jornal El País e pesquisados pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), o equivalente ao IBGE no Brasil, apontam que, em termos nominais, os investimentos na Argentina em 2024 caíram significativamente em relação a 2023. O superávit fiscal é superficial quando descontamos desse quadro a inflação acumulada em três dígitos no final de 2024, desembocando em uma catástrofe para o financiamento da educação e da saúde pública.
Os dados do Indec mostram que em 2024 a pobreza cresce em ritmo acelerado, com 52,9% da população nessa condição. Na chamada situação de indigência, são 5,4 milhões de argentinos, o equivalente a 18,1% da população total. O informe ainda permite verificar que 66,1% das cerca de 11 milhões de crianças com menos de 14 anos estão em situação de pobreza, o equivalente a 7,3 milhões de jovens.
A política monetária de Milei ajuda a decifrar esses números desoladores. Direcionada ao controle da inflação com intervenção direta do governo no mercado cambial para estabilizar o peso argentino frente ao dólar, é preciso queimar reservas internacionais, das quais a Argentina não dispõe em sua maior parte porque são produto da dívida externa. A estabilização e valorização do peso em mais de 40% durante o primeiro ano de governo beneficiam principalmente as classes altas, que passaram a consumir mais no exterior e investir na própria Argentina, devido ao fortalecimento do peso. No entanto, essa valorização tornou o país mais caro em termos de dólar, o que aponta para um processo de acentuada desindustrialização, prejudicando as exportações. Assim, em uma lógica de brutal concentração de renda e de riqueza, com o desemprego e a miséria, descortina-se o cavalo de batalha do mundo contemporâneo: a disputa pelas organizações do trabalho.
Se os sindicatos organizados e atuantes refletem uma classe trabalhadora viva e pulsante, eles podem ser o antídoto mais eficaz contra os projetos socialmente regressivos da extrema-direita, que se reorganiza em todo o mundo em um contexto de descontrole. Não é à toa que Milei escolheu os movimentos sociais como inimigos internos, recorrendo a uma repressão sem precedentes contra as manifestações populares desde o fim da última ditadura militar, entre 1976 e 1983. “Dissidência em risco” é o título do relatório da Anistia Internacional para a Argentina em 2024. Foram 1.155 pessoas feridas, incluindo 50 jornalistas e profissionais da imprensa durante a cobertura dos protestos, além de 73 pessoas criminalizadas por participarem das mobilizações.
Nesse contexto, vale recorrer à história. Nas primeiras décadas da Guerra Fria, foram abertos espaços de concessão por parte das grandes potências ao então Terceiro Mundo. Os latino-americanos sabem, contudo, que as alternativas que desafiaram o capital do Norte foram violentamente contidas, muitas vezes por golpes militares. Na região, a Guerra Fria tomou a forma de guerra suja. Em uma etapa de polarização militarizada, protagonizada pelos Estados Unidos e a China, seria de se espantar se a rigidez dos programas de ajuste do Fundo Monetário Internacional viesse combinada com retrocesso autoritário?
O criptogate e a política no centro
Conforme a história se desdobra, o criptogate é mais obsceno. Milei deu uma entrevista ao canal de TV Todo Notícias para falar sobre o escândalo. O assunto ficou em segundo plano porque o programa foi editado após o seu assessor, Santiago Caputo, interromper e interferir diretamente na entrevista. O tradicional jornal La Nación obteve mensagens que mostram criadores da criptomoeda $Libra tratando de subornos ao governo de Javier Milei. Referindo-se às transações intermediadas pela irmã do presidente, que ocupa o cargo de secretária-geral da Presidência, um dos especuladores diz, “eu envio o dinheiro e ele assina o que digo e faz o que quero”. O outro responde: “uma loucura”.
O crash de 2008, marcou o limite de uma época, inaugurando o descarrilamento do capitalismo e da democracia. O avanço da extrema-direita, é importante lembrar, foi o resultado de um terremoto cujo epicentro está nos países ricos, causando efeitos nos conflitos internos da periferia em geral. Enquanto a ordem está falida, entra em cena uma coreografia ingovernável.
Assim, o eixo analítico desloca-se para o campo da sociologia e tem fundamento em David Lockwood, com o “colapso da integração sistêmica”. Com a dissolução institucional do “capitalismo democrático”, o ônus de garantir segurança e estabilidade recai sobre as relações individuais, em uma sociedade desinstitucionalizada ou infrainstitucionalizada, na qual as expectativas só podem ser estabilizadas por um curto período, por meio da improvisação local. Por essa razão, é essencialmente ingovernável.
A política, então, está no centro do palco com a crise de legitimidade do Estado democrático, cada vez menos capaz de se ocupar das maiorias.
É preciso considerar que as revoltas contra os excessos do mercado, quando comandadas por figuras messiânicas, podem dar em um rumo semelhante ao que se viu no fascismo histórico dos anos 1930, ou no ultraliberalismo no estilo do Make America Great Again e Javier Milei.
Segundo o sociólogo Wolfgang Streeck, o conflito entre o “povo de mercado” (a constelação financeira) e o “povo de Estado” (composto por cidadãos) é um impasse no qual estamos inseridos: os direitos do “povo de mercado” perante o Estado são privados e submetidos à regulação privada, sobrepondo-se ao direito e à regulação públicos. Isso é perigoso, pois aliena o Estado do mundo da vida e de suas dinâmicas internas de classes, levando-o a abrir mão de seu papel precípuo de formulador de políticas públicas que amparem e facilitem a vida das pessoas.
O criptogate argentino, protagonizado por um presidente que aumenta flagelos ao submeter o seu próprio povo a um sofrimento inútil, revela como processos de implacável desagregação social são capazes de fabricar concepções pervertidas de liberdade.
Rafael Pepe Romano é bacharel em Direito pelo Mackenzie, graduando em Ciências Sociais pela USP e atua no planejamento de políticas públicas no Governo de São Paulo.
Referência bibliográfica:
SINGER, André et al. (Org.). O segundo círculo: centro e periferia em tempos de guerra. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2024.