Da redescoberta da urbanidade às paisagens de marginalização
O uso do mobiliário urbano como ferramenta de controle do espaço público torna-se uma estratégia de exclusão material que, aliada a políticas de coibição de grupos sociais indesejados, corre o risco de transformar as cidades em lugares cada vez menos acessíveis para a maioria dos pobres
Nossas cidades, escreveu Michel Agier[1], trazem a marca de uma enorme contradição: foram fundadas para reunir, unir e aproximar as pessoas, mas muros, barreiras e sistemas de proteção e vigilância cada vez mais sofisticados estão definitivamente transformando a cidade de um “caldeirão de encontros” para “uma ordem urbana de solidão e negação do mundo comum”.
Quando isso acontece, as cidades parecem vazias, irreconhecíveis e de um espaço comum e compartilhado transformam-se em um ambiente hostil e inseguro onde “os outros” são percebidos como “fonte e arquétipo de todo medo”[2] e por isso é necessário mantê-los a uma distância segura ou, melhor ainda, se preciso for, expulsá-los dos lugares de nossa existência cotidiana.
Adela Cortina definiu essa atitude como uma verdadeira patologia social que leva o nome de aporofobia, um profundo desprezo que nasce do medo de, um dia, poder experimentar o horror da exclusão, como os pobres e marginalizados que vivem e atravessam as nossas cidades, principalmente as metrópoles, vivenciam diariamente.
Essa estratégia de remoção, recusa e expulsão é implementada em um espantoso projeto de espaço urbano que leva o nome de “arquitetura hostil”, numa ação diametralmente oposta ao desenho do espaço público, surgido a partir da década de 1960, que enriqueceu o debate da disciplina de Desenho Urbano na redescoberta de uma urbanidade.
A consequência é não somente uma atitude de fechamento, defesa e recusa da novidade, mas também de intensificação das diferenças[3], atitude concretizada na construção de muros, cercas e barreiras de segurança de todo tipo e gênero que, com seu contínuo desenvolvimento tecnológico, representam uma verdadeira negação da cidade.
Em outras palavras, essa reação particular toma forma em nossas cidades daquilo que Bauman[4] define como mixofobia urbana: o medo real de se misturar com os outros, ou seja, com aquela pluralidade de “tipos humanos” e de “estilos de vida” que, apesar de todas as precauções, encontram-se na vida normal da cidade.
Desenho Urbano
Em 1961, experimentos de duas importantes estudiosas norte-americanas, Elizabeth Wood e Jane Jacobs (1916–2006), serviram de base para estabelecer uma estreita relação entre o Desenho Urbano e a melhoria da qualidade de vida das pessoas, enfatizando a ideia de que o design poderia revelar-se como importante ferramenta para promover “o desenvolvimento de uma estrutura social”. A Teoria do Design Social de Wood, 1961, explora como a criação de um contexto urbano que atendesse às necessidades dos habitantes e garantisse a sustentação de uma rede social poderia representar a condição fundamental para prevenir o surgimento de comportamentos desviantes. Jacobs, conhecida internacionalmente pelo livro The Death and Life of Great American Cities (1961), cujas teorias criticavam e questionavam o modelo de desenvolvimento modernista e racionalista, explora as características morfológicas e formais da cidade – densidade populacional, ruas, calçadas, quarteirões – que destaca por serem considerados pré-requisitos fundamentais para a construção de lugares seguros, bem como a separação clara entre espaços públicos e privados com o objetivo de consolidar e estimular um sentido de territorialidade capaz de gerar atenção e afeto pelos lugares.
O impacto cultural dos estudos e das teorias de Wood e Jacobs representou a base para o desenvolvimento de perspectivas futuras de pesquisas em várias universidades, em especial, o grupo de trabalho interdisciplinar com psicólogos, sociólogos e urbanistas, criado na Universidade de Colúmbia. Coordenado pelo arquiteto Oscar Newman, o objetivo do grupo era transformar a leitura da cidade proposta por Jacobs em indicações práticas para o projeto de espaços urbanos.
No volume Defensible Space: Crime Prevention Through Urban Design (1972), Newman apresentou sua teoria do “espaço defensável”, um espaço considerado como resultado de três diferentes componentes: a territorialidade, ou seja, a capacidade dos moradores de perceberem o espaço do entorno como um espaço pessoal para defender; a vigilância natural, ou seja, a capacidade do ambiente físico de proporcionar, aos moradores, oportunidades de controle e monitoramento de áreas de interesse comum; a imagem, ou seja, a aparência de um espaço residencial que afeta tanto a percepção dos habitantes daquele espaço quanto seu estilo de vida.
As contribuições teóricas e práticas de Wood e Jacobs – e, em particular, a reinterpretação de Newman em termos de Desenho Urbano – inspiraram o nascimento de uma importante linha de estudos, especialmente nos Estados Unidos: Crime Prevention Through Environmental design, sintetizado com as iniciais CPTED. Introduzida pelo criminologista Charles Ray Jeffery em 1971, a teoria baseia-se na identificação de condições do meio físico e do social capazes de favorecer a disseminação de comportamento desviante. Dentro dessa abordagem, o Design Ambiental coloca-se como principal ferramenta para responder à forte demanda de segurança expressa pelos cidadãos e implementar uma prevenção eficaz do crime.
Portanto, as primeiras reflexões sobre o poder de dissuasão do Desenho Urbano têm suas raízes na primeira metade dos anos 1970. Nos anos seguintes, embalado pela tradução de Collins & Collins do livro A cidade segundo seus princípios artísticos, do austríaco Camillo Sitte, desenvolveu-se um interesse renovado no potencial do ambiente urbano, o que levou a mudanças significativas no espaço público dos centros históricos de cidades contemporâneas, tanto do ponto de vista estético quanto do ponto de vista de gestão[5].
Todavia, as estratégias de renovação que visam transformar a morfologia social e física dos espaços centrais e promover turismo, consumo e entretenimento, mudaram gradativamente e a paisagem urbana transformou-se em um “espaço de interdição”, ou seja, um espaço que, por meio de diferentes estratégias, funciona seletivamente para excluir a alteridade. Tal conceito foi cunhado por Steven Flusty[6] para indicar os espaços destinados a interceptar e rejeitar ou deixar passar possíveis usuários para criar áreas “livres de risco” e das quais são excluídos grupos sociais que adotam estilos de vida considerados não condizentes com uma concepção específica do espaço urbano e de seu uso.
Na análise proposta por Flusty, o espaço de interdição pode possuir vários atributos: o “espaço pungente”, assim definido por ser desconfortável e incômodo; o “espaço indescritível”, tornado inacessível pela tortuosidade de suas vias de acesso que dificultam o acesso a determinado destino; o “espaço hipersensível”, altamente controlado por patrulhas de vigilância ou sistemas de segurança cada vez mais sofisticados que contribuem para tornar uma determinada área quase impenetrável.
Arquitetura hostil
Exatamente nesses espaços é que a chamada arquitetura hostil se estabelece, também definida como “arquitetura urbana defensiva” ou “arquitetura excludente”[7]. Esse fenômeno tem sido objeto de análise e crítica tanto no meio acadêmico quanto no debate público inclusive no contexto brasileiro, e inspirou o nascimento de organizações e projetos artísticos voltados a denunciar a tendência à privatização e ao caráter inóspito de muitas áreas urbanas.
São inúmeras as formas pelas quais esse tipo específico de arquitetura implementa as estratégias de exclusão e expulsão. Uma delas consiste em modificar a infraestrutura existente impossibilitando sua utilização usual, como no caso de bancos com formas onduladas, braços e até sem encosto, sobre os quais não é possível parar por muito tempo ou dormir. O exemplo mais conhecido e eloquente é o famoso banco Camden, um banco de concreto projetado e instalado em Londres, em 2012, para resistir a uma série de comportamentos vistos como perigosos e antissociais. O revestimento especial torna-o impermeável ao grafite e ao vandalismo, e sua superfície inclinada e afiada foi projetada não só para desencorajar qualquer skatista de usá-lo como base para realizar uma manobra, mas também para tornar impossível a perspectiva de usá-lo e acomodar-se sobre ele.
Uma segunda forma de implementar essas estratégias de exclusão consiste em adicionar elementos que produzam o efeito de dissuasão em um espaço ou mobiliário urbano específico. Um exemplo são os “espinhos antimoradores de rua”, pontas metálicas no chão ou na soleira de portas e janelas que impedem indivíduos de ali ficarem em pé ou sentarem-se. Aqui também se enquadram as peças de metal colocadas em determinado espaço ou mobiliário urbano para dissuadir indivíduos a ações como pular bancos ou muretas.
Por fim, há uma terceira modalidade que fundamenta uma estratégia de remoção, que consiste em retirar objetos que garantiam serviços ou desempenhavam funções específicas nos locais públicos, como a retirada de bancos de uma praça ou um centro de compras para evitar que grupos de pessoas permaneçam muito tempo na área.
O objetivo final dessas “invenções arquitetônicas/urbanísticas”, muitas vezes habilmente disfarçado por “formas mais sedutoras”[8], é manter diferentes categorias de moradores da cidade, colocando uns contra os outros, transformando-os em adversários pelo próprio isolamento espacial.
Assim, essas formas de controle e seus “aprimoramentos”, responsáveis por torná-las cada vez mais sutis, penetrantes e quase invisíveis, desempenham um papel fundamental na maneira como percebemos, agimos e interagimos em lugares públicos e privados. Sua força legitimadora deriva da “percepção” de uma ameaça que é apenas potencial e, de modo geral, não sustentada pelos fatos.
Apesar disso, já estão presentes na maioria das metrópoles contemporâneas (e cidades médias), incluindo ainda o uso de cercas para limitar o acesso a espaços confinados, sistemas de vídeovigilância e até formas extremas de controle. Estas últimas foram definidas por Savičić e Savić como “sistemas repelentes”, ou seja, dispositivos audiovisuais capazes de causar uma mudança total na atmosfera de áreas específicas da cidade, ao produzirem sensações (visuais, auditivas, olfativas) desagradáveis. Para tanto, baseiam-se em características sociais ou psicológicas do grupo para o qual foram projetados, gerando um sentimento de repulsa e rejeição em relação ao outro.
Nos últimos anos, o uso do espaço público parece estar cada vez mais restritivo em função de regulamentos que proíbem certos atos e da criminalização dos sem-teto[9] e as restrições, como já dito, também surgem por meio de um desenho de mobiliário urbano que exclui grupos sociais marginalizados e cria uma categoria de uso “irregular” nos espaços da cidade gentrificada.
A chamada arquitetura hostil, portanto, ferramenta mais controversa e cruel para implementar essas estratégias de exclusão/expulsão é que gradualmente coloniza nossa concepção de espaço público, como bem apontado pela tradutora e arquiteta Anita Di Marco, em seu blog pessoal. É um fenômeno complexo que, acima de tudo, representa um exercício perfeito de construção social de uma ameaça, perceptível apenas em potencialidade, e que, muitas vezes, pode ser identificada em um membro dessa mesma comunidade que se quer proteger.
Sem dúvida, trata-se de uma abordagem para um padrão de Desenho Urbano, cujas características distintivas são a expressão sutil de divisão social e a negação, também sutil, de apoio aos habitantes mais vulneráveis num ambiente urbano aparentemente aberto e inclusivo. A arquitetura hostil faz parte de uma atitude mais ampla e crescente de hostilidade e indiferença, cujas raízes estão em um sentimento de insegurança que parece derivar de uma crise nas redes tradicionais de proteção (família, comunidades locais, bairros), transformados pelo consumismo, por processos de mobilidade geográfica e profissional, pela fragmentação das relações sociais, pelo individualismo e pela falta de uma visão solidária.
A falta de segurança existencial leva os atores sociais a transferir ansiedades e medos para o nível de segurança pessoal, como única dimensão sobre a qual é possível exercer alguma forma de controle. É assim que se trava a “guerra contra a insegurança e […] contra os perigos e riscos para a segurança pessoal”[10], através da inclusão na paisagem da cidade de criações que “normalizam” o estado de emergência em que vivem diariamente os moradores urbanos. As cidades configuram-se, portanto, como «os lugares em que inseguranças concebidas e incubadas na sociedade manifestam-se de forma […] particularmente tangível “[11] e, em sua construção e reconstrução, o “fator medo”[12] adquiriu uma importância crescente ao contribuir para produzir “paisagens de marginalização”[13].
Para usar o termo de Michel Foucault, uma verdadeira “cidade punitiva” que, contra uma “população estigmatizada e amplamente percebida como desviante, desesperada e perigosa”, de tempos em tempos, “inventa novas engrenagens, reinicia, imobiliza, cava” [14] dando forma a uma inédita “arquitetura de ordem”[15].
Esse é um tipo de arquitetura presente, hoje, nas cidades de todo o mundo, e que surge da combinação de dois paradigmas de vigilância: o do Panóptico, cujas características e implicações foram bem descritas por Michel Foucault, e uma forma inédita de controle social que leva o nome de Ban-óptico, termo introduzido no debate contemporâneo por Didier Bigo e, depois, retomado e desenvolvido por Zygmunt Bauman e David Lyon na análise dos sistemas de potência e controle, atuantes na chamada modernidade líquida.
Segurança
Quando prevalece a ideia de segurança, o espaço público é privado daquelas qualidades de interação civil e diversidade que o caracterizam. O potencial para encontros indesejados é gerenciado por uma arquitetura defensiva que busca produzir interações restritas, individualizadas e baseadas no consumo. É assim que o uso do mobiliário urbano como ferramenta de controle do espaço público torna-se uma estratégia de exclusão material que, aliada a políticas de coibição de grupos sociais indesejados, corre o risco de transformar as cidades em lugares cada vez menos acessíveis para a maioria dos pobres e, em geral, para todos aqueles grupos sociais considerados inúteis e indesejados. Esses “espaços de interdição”, “ilusórios”, “pungentes” ou “hipersensíveis”, tornaram-se, na paisagem urbana, “os marcos da desintegração da vida coletiva compartilhada”[16]. A consequência de tudo isso é uma vida urbana não mais capaz de promover encontros, “comparações entre diferenças” e “conhecimento mútuo […] de modos de vida”[17] e a afirmação de um espaço em que as tendências de segurança e controle desencadeiam dinâmicas mais ou menos visíveis de expulsão e exclusão das categorias mais frágeis e marginais, abrindo caminho para uma ideia de cidade cada vez mais hostil e repulsiva.
Adalberto da Silva Retto Jr é professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza (2003) e professor-pesquisador visitante no Master Erasmus Mundus TPTI (Techiniques, Patrimoine, Territoire de l’Industrie: Histoire, Valorisation, Didactique) da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013). Coordenador do Curso de especialização lato sensu em Planejamento Urbano e Políticas Públicas: Urbanismo, Paisagem, Território – PlanUPP.
[1] Agier, M. (2019). Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo, SP: Editora Terceiro Nome
[2] Bauman, Z. (1999). Modernidade e ambivalência. Tradução Marcus Penchel. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. 171 pág.
[3] CASTEL, Robert. A Insegurança Social: o que é ser protegido? Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
[4] Bauman, Z. (2007). Modus vivendi. Inferno e utopia del mondo liquido. Bari: Laterza.
[5] Choay, Françoise (2002) “Camillo Sitte, Der Städtebau nach seinen Künstlerischen Grundsätzen, 1889. Uno statuto antropologico dello spazio urbano”, in: Paola Di Biagi (a cura di), I classici dell’urbanistica moderna, Donzelli, Roma, pp. 3-16.
[6] Flusty, S. (1997). Building paranoia. In Ellin, N. (ed.), Architecture of fear, (Pp. 47-59). New York: Princeton Architectural Press
[7] De Fine Licht, K.P. (2017). Hostile urban architecture: A critical discussion of the seemingly offensive art of keeping people away, Etikk i praksis, v.11, n.2, Pp 27-44
[8] Savičić, G., Savić, S. (2013) (eds). Unpleasant design. Belgrade: G.L.O.R.I.A
[9] Begamaschi M., Castrignanò M., De Rubertis P. (2014). The Homeless and Public Space: Urban Policy and Exclusion in Bologna, Revue Interventions économiques, journals.openedition.org/interventionseconomiques/2441
[10] Bauman, 1999, p. 82
[11] Bauman, 1999, p. 81
[12] Ellin, N. (1997). Architecture of fear. Princeton: Princeton Architectural Press
[13] Gold, J. R., Revill, G. (2003). Exploring landscapes of fear: Marginality, spectacle and surveillance, Capital & Class v.27, n.2, pp 27-50
[14] Foucault, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.
[15] Di Cesare, 2019
[16]Bauman, 2007, p. 89
[17]Lefebvre, Henri. Le droit à la ville. Paris, Éditions Anthropos, 1968.