Da Soberania à Dependência
Em 2010,no Cons. de Segurança ONU,o México votou a favor de sanções contra o Irã e não condenou o ataque à frota humanitária destinada a Gaza,em sintonia c/ os EUA.Será que o país renunciou à liberdade que caracterizou sua política externa,fundamentada na soberania nacional e no respeito à autodeterminação dos povos?Jean François Boyer
O alinhamento da diplomacia mexicana com a de Washington vem se dando desde a ascensão ao poder do presidente Calderón, em 2006, e contrasta fortemente com a independência reivindicada pelo Brasil frente aos Estados Unidos, o que pode ser observado em vários acontecimentos.
Em dezembro de 2009, após a derrubada do presidente hondurenho Manuel Zelaya, o México e os Estados Unidos reconheceram a legitimidade das eleições que conduziram Porfírio Lobo ao poder, enquanto o Brasil e a União Europeia as declararam ilegítimas.
Em maio de 2010, no dia que se seguiu à iniciativa turco-brasileira que buscava oferecer uma alternativa às ameaças das Nações Unidas contra o Irã – baseando-se num acordo de fornecimento de combustível nuclear – o México votou a favor de novas sanções contra Teerã, em sintonia com os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, liderados por Washington. Um mês mais tarde, por ocasião do debate no Conselho de Segurança sobre o ataque à frota humanitária destinada à Gaza, perpetrado por Israel, o México apoiou a resolução apresentada pelos Estados Unidos, que “lamentaram”, mas não condenaram os fatos. Brasília, por sua vez, argumentou a favor de uma condenação clara da operação.
Teria o México renunciado à liberdade que, de 1945 a 1982, caracterizou sua política externa, fundamentada – segundo seus dirigentes – na soberania nacional, na não intervenção nos assuntos internos dos Estados e no respeito à autodeterminação dos povos?
Datas que merecem ser lembradas…
Em 1954, o México, então dirigido por Adolfo Ruiz Cortines, acolheu Jacobo Arbenz, o presidente guatemalteco que acabara de ser derrubado por um golpe de Estado organizado pela CIA. O sucessor de Cortines, Adolfo López Mateos (1958-1964), aproximou-se do movimento dos não alinhados, visitando o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser e o primeiro-ministro indiano Jawaharlal Nehru, os seus dois representantes mais emblemáticos. Em 1962, López Mateos se opôs a Washington quando este último articulou a exclusão da Cuba revolucionária da Organização dos Estados Americanos (OEA). Mais tarde, Luis Echeverria (1970-1976) iria apoiar Salvador Allende, dar guarida aos refugiados das ditaduras militares da América do Sul, além de consolidar as relações com os não alinhados e com Cuba. José López Portillo, que lhe sucedeu, apoiou a revolução sandinista e foi a Moscou, em maio de 1978, onde se encontrou com Leonid Brejnev, o qual observou: “Os nossos dois países adotam posições idênticas ou similares em relação às questões mais importantes1”.
Mas a memória pode ser enganadora: muito além das declarações provocadoras do seu vizinho, os Estados Unidos sempre puderam contar com a solidariedade do México no que diz respeito à questão essencial da segurança do império dentro do quadro da Guerra Fria. Agente da aproximação com os países não alinhados, López Mateos cultivou ao mesmo tempo uma relação íntima com Washington: no espaço de quatro anos, ele reuniu-se seis vezes com os seus homólogos Dwight D. Eisenhower, John F. Kennedy e Lyndon B. Johnson – um recorde. Além disso, ele se absteve de atravessar a linha vermelha traçada pelo poderoso vizinho: o México nunca se tornou membro de pleno direito do Movimento dos Não Alinhados, contentando-se com um posto de observador. Além disso, em outubro de 1962, durante a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, o México, na OEA, se posicionou ao lado dos Estados Unidos para condenar a instalação de lançadores no território cubano e exigir seu desmantelamento.
A partir daquele momento, o México aplicou rigorosamente o bloqueio econômico contra a ilha e informou regularmente a CIA dos deslocamentos, via aeroportos mexicanos, dos cidadãos norte-americanos e dos revolucionários latino-americanos que iam a Cuba. Echeverria não seria uma exceção na matéria.
Segundo o historiador Lorenzo Meyer, a sua estratégia de antagonismo aparente com o “vizinho do Norte” – similar àquela dos seus predecessores –, representava acima de tudo “uma fonte insubstituível de legitimidade” paraum governo “que não podia contar com a legitimidade que lhe conferiria a democracia, inexistente no decorrer dos 70 anos de exercício autoritário do poder pelo PRI2”.De fato, a relação de Echeverria com os Estados Unidos foi muito diferente. Soube-se mais tarde que o presidente fora recrutado pela CIA durante os seis anos de mandato de seu predecessor, Diaz Ordaz, no quadro de um programa batizado de Litempo, que visava detectar as atividades da esquerda revolucionária na América Latina.3 Então, durante o seu próprio mandato, ele se engajou na “guerra suja”, uma repressão feroz aos movimentos de guerrilha locais.
Contudo, as relações foram realmente tensas entre o México e Washington no que diz respeito à América Central. Assim, o presidente mexicano López Portillo (1976-1982) esteve em Manágua para celebrar a vitória da Frente Sandinista de Liberação Nacional, em 14 de julho de 1979, e proporcionou ajuda financeira considerável ao novo Estado. Em particular, ele forneceu petróleo mexicano barato para a Nicarágua revolucionária. Em 28 de agosto de 1981, o México e a França assinaram uma declaração que reconheceu as duas frentes revolucionárias salvadorenhas (FMLN e FDR) como “forças representativas”.
Mas, assim que assumiu o poder em 1981, Ronald Reagan fustigou a Nicarágua sandinista, “um aliado da União Soviética a duas horas de voo das nossas fronteiras4”. Washington pressionou então o México, que foi abandonando aos poucos a ideia de legitimar a revolução sandinista, reunindo Washington e Manágua à mesma mesa. Entretanto, Portillo continuaria apoiando uma solução negociada para os conflitos que atingiam igualmente El Salvador e Guatemala no âmbito do Grupo de Contadora.5 O divórcio nunca seria consumado.
Sempre pressionado por Washington, Miguel de la Madrid (1982-1989) autorizou a sua polícia a colaborar discretamente com a CIA e os cartéis mexicanos para treinar os homens da “Contra” nicaraguense no solo mexicano e deixar que as suas atividades fossem financiadas pelo tráfico de drogas 6.
Portanto, não há como não dizer que a autonomia mexicana é relativa: uma “independência na dependência”, por assim dizer. Segundo Meyer, ela decorre de um acordo discreto, não escrito, do qual era impossível fugir, que remonta ao final da revolução mexicana, em 1924: na ocasião, os Estados Unidos teriam se comprometido a apoiar os governos mexicanos e a não intervir nos seus assuntos internos se estes garantissem a paz e a segurança na fronteira comum – mais de 3 mil km – além da estabilidade política no interior do seu país 7.
Essa margem de manobra diplomática se deu de 1960 a 1982 e envolveu as opções econômicas dos presidentes da época – em sua política de industrialização, de consolidação das sociedades nacionais (sobretudo bancárias) e de desenvolvimento do mercado interno. Esse “modelo” foi financiado, em primeiro lugar, pela renda petroleira: de 1963 a 1972, a perfuração de novos poços de petróleo em alto-mar, ao largo de Tampico e Campeche, fez com que o México se tornasse uma potência petroleira.8 Simultaneamente, o país também se abasteceu na fonte do endividamento internacional.
E o país desmoronou
A grande reviravolta ocorreu em 1982 com a crise da dívida. O país desmoronou de repente, incapaz de honrar seus compromissos. A ajuda financeira norte-americana e a renegociação dos empréstimos foram condicionadas à aplicação de um ajuste estrutural que, de fato, não desagradou aos novos presidentes neoliberais, De la Madrid e, mais tarde, Carlos Salinas de Gortari, oriundos do Partido Revolucionário Institucional (PRI). Estes impuseram redução do déficit fiscal, desregulamentação, privatização maciça das empresas públicas e bancos… Os esforços mexicanos foram recompensados com a incorporação do país, em 1986, ao Acordo Geral sobre as Tarifas e o Comércio (cuja sigla em inglês é GATT). A assinatura do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (em inglês, Nafta) entre os três países da América do Norte, em 1993, uniu em definitivo o destino do México ao dos Estados Unidos. O crescimento do país passou a depender do volume das transações com o vizinho do Norte e dos investimentos norte-americanos no campo industrial e no setor de produtos e serviços terceirizados.(ler texto ao lado)
Tanto mais que nos primeiros meses dos seis anos de mandato de Ernesto Zedillo (1994-2000), nova crise econômica ampliou essa dependência. Mais uma vez Washington salvou o seu vizinho do Sul da falência, organizando a transferência de um empréstimo de emergência cujo montante era considerável: mais de US$ 40 bilhões pagos pela Reserva Federal (FED), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco de Compensações Internacionais (em inglês, BIS), o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
“Essa dependência financeira dos setores estadunidenses mais conservadores teve o efeito de uma coleira no pescoço dos governos sucessivos do país em matéria de política externa, os quais tudo fizeram para não criar atritos com os grupos industriais e financeiros que mantêm a economia mexicana funcionando”, constata o analista econômico Rogelio Ramirez da O.9 Nessas condições, “não é necessário que os Estados Unidos acenem com qualquer ameaça para obrigar o México a renunciar a certas posições”,analisa Jorge Castañeda, ex-ministro das Relações Exteriores do governo de Vicente Fox.“Isso porque, a cada cinco ou seis anos, desde 1982, o país está em crise, à beira da falência, e são sempre os estadunidenses que salvam a lavoura…10.”
A derrota do PRI em 2000 e a eleição de Vicente Fox, um homem de negócios democrata cristão, ex-diretor-geral da Coca-Cola no México, líder do Partido de Ação Nacional, pôs fim em definitivo às veleidades de não alinhamento.
Fox instaurou uma relação íntima com George W. Bush. O governo mexicano colocou as suas forças de segurança a serviço da defesa da fronteira norte-americana após os atentados de 11 de setembro de 2001 e se opôs à renegociação – exigida pela esquerda e pelos nacionalistas do PRI – dos artigos do Nafta mais nocivos à economia mexicana. No espaço de alguns anos, os principais bancos privados mexicanos passaram a ser controlados por estabelecimentos estrangeiros: Citygroup, HSBC, Santander etc. Pela primeira vez na história das suas relações bilaterais, o México votou contra Cuba na Comissão dos Direitos Humanos da ONU, em 2003.
Em troca, o México acalentava a esperança de uma profunda reforma da legislação norte-americana em matéria de imigração, o que regularizaria o estatuto dos ilegais e autorizaria a livre circulação da mão de obra mexicana entre os dois países, e seria uma solução para o principal problema da sua economia: o desemprego, decorrente da inexistência de uma política nacional de industrialização. Mas o endurecimento dos regulamentos relativos à segurança, provocado pelos atentados de 11 de setembro de 2001, enterrou o projeto.
Herdeiro dessa lenta evolução rumo a uma aliança total com os Estados Unidos, Felipe Calderón opta por reforçá-la. Para ganhar aquela que ele batiza de “guerra contra o narcotráfico e o crime organizado” – os quais vinham sendo alimentados pela corrupção endêmica e a marginalização dos setores populares –, ele precisou… do apoio dos Estados Unidos: inteligência, escutas telefônicas, luta contra a lavagem de dinheiro etc. No que era uma iniciativa inimaginável alguns anos antes ao sul do rio Bravo, vários intelectuais mexicanos de prestígio, como Jorge Castañeda e Hector Aguilar Camin, deram declarações públicas solicitando a intervenção norte-americana em território mexicano, no quadro de um outro Plano Colômbia11, que acabaria resultando em nova perda de soberania para o país.
“Pobre México”, diz um refrão popular. “Tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos…
Jean François Boyer é diretor de Le Monde Diplomatique no México, América Central e Estados Unidos.