Dados pessoais, uma questão política
As pegadas que deixamos na internet, as informações dos smartphones e nossas atitudes nas redes sociais não são cobiçadas apenas pelas agências de inteligência: elas deliciam os publicitários e enriquecem os gigantes do Vale do Silício. Contudo, os dados pessoais não estão condenados a esse destino.
Pierre Rimbert
No mundo, foram vendidos 1,424 bilhão de smartphones em 2015; 200 milhões a mais que no ano anterior. Um terço da humanidade carrega um computador no bolso. Manipular esse aparelho tão prático é algo de tal forma óbvio que quase nos faz esquecer o que ele nos impõe em troca e sobre o que repousa toda a economia digital: as empresas do Vale do Silício oferecem aplicativos a usuários que, em contrapartida, lhes entregam seus dados pessoais. Localização, histórico da atividade on-line, contatos etc. são coletados sem pudor,1 analisados e revendidos a anunciantes publicitários felizes em mirar as “pessoas certas, transmitindo-lhes sua mensagem certa no momento certo”, como alardeia a direção do Facebook. “Se é gratuito, então você é o produto”, já anunciava um slogan dos anos 1970.
Enquanto as controvérsias sobre vigilância se multiplicam desde as revelações de Edward Snowden em 2013, a extorsão de dados com objetivos comerciais quase não é percebida como uma questão política, ou seja, ligada às escolhas comuns e podendo se tornar objeto de uma deliberação coletiva. Fora das associações especializadas, ela praticamente não mobiliza ninguém. Talvez porque é pouco conhecida.
Nos anos 1970, o economista norte-americano Dallas Smythe avisava que qualquer pessoa arriada diante de uma tela é um trabalhador que ignora a si próprio. A televisão, explica, produz uma mercadoria, a audiência, composta da atenção dos telespectadores, que as redes vendem para os anunciantes. “Você contribui com seu tempo de trabalho não remunerado e, em troca, recebe os programas e a publicidade.”2 O labor não pago do internauta se mostra mais ativo que o do espectador. Nas redes sociais, nós mesmos convertemos nossas amizades, emoções, desejos e cólera em dados que podem ser explorados por algoritmos. Cada perfil, cada “curtir”, cada tweet, cada solicitação, cada clique derrama uma gota de informação de valor no oceano dos servidores refrigerados instalados pela Amazon, pelo Google e pela Microsoft em todos os continentes.
“Trabalho digital”, ou digital labor, é o nome com o qual foram batizadas essas tarefas de estabelecimento de dados do mundo realizadas gratuitamente. Os mastodontes do Vale do Silício prosperam com esse “pecado original”. “O que jaz no fundo da acumulação primitiva do capital”, escreveu Karl Marx, em 1867, em O capital, “é a exploração do produtor imediato.” Para fechar as pastagens comuns, colocar no trabalho assalariado os camponeses famintos ou colonizar o Sul, o capital recorreu “à conquista, à escravidão, à rapina a mão armada, ao reino da força brutal”. No século XXI, o arsenal compreende também armas leves, como os vídeos de gatinhos engraçados. A história econômica vai creditar talvez ao patronato de tênis e calça jeans o fato de ter universalizado a figura do espoliado feliz, coprodutor de livre vontade do serviço que consome. Os US$ 75 bilhões de volume de negócios do Google em 2015, advindos principalmente da publicidade, são um bom indicador da amplitude de uma acumulação por espoliação que já não é possível ocultar. No anúncio dos resultados do Facebook no segundo semestre de 2016, o site Re/Code proclamava alegremente que a rede social, com 1,71 bilhão de inscritos, “ganha ainda mais dinheiro de cada pessoa, US$ 3,82 por usuário”.3
Portanto, nada tem um nome mais inadequado do que o “dado”: ele é produzido e, principalmente, roubado. Se por um lado o trabalho involuntário dos internautas constitui o tema de luminosas análises universitárias,4 por outro a esquerda política ou sindical ainda não integrou essa dimensão à sua análise – e muito menos a suas reivindicações. No entanto, as formas materiais e imateriais da exploração estão estreitamente imbricadas. O trabalho digital não é mais do que um elo de uma cadeia que passa pelos pés dos mineiros do Kivu forçados a extrair o coltan necessário para a fabricação dos smartphones, pelos punhos das operárias da Foxconn em Shenzhen que fazem a montagem deles, pelas rodas dos motoristas sem proteção do Uber e dos ciclistas do Deliveroo, e vai até o pescoço do pessoal de manutenção da Amazon pilotado por algoritmos.5
Os agricultores se rebelam
Quem produz os dados? Quem os controla? Como repartir a riqueza que se tira deles? Que outros modelos se podem vislumbrar? Colocar essas questões no jogo político é ainda mais importante quando se pensa que a multiplicação dos objetos conectados e a instalação sistemática de captadores ao longo dos circuitos de fabricação industrial inflam a cada dia os fluxos de informação. “Os automóveis atuais produzem uma quantidade maciça de dados”, vangloria-se o presidente da Ford, Marks Field (Las Vegas, 6 jan. 2015): “mais de 25 gigas por hora”, ou seja, o equivalente a duas temporadas da série Game of Thrones. Dos trajetos aos padrões de conduta, passando pelas preferências musicais e pela meteorologia, tudo aterrissa nos servidores do fabricante. E os consultores já se interrogam: em troca, os motoristas não poderiam negociar um desconto?6
Certas forças sociais organizadas e conscientes de seus interesses escolheram colocar o furto dos dados em suas prioridades políticas – por exemplo, os grandes fazendeiros norte-americanos. Há vários anos, sensores instalados em máquinas agrícolas recolhem uma quantidade de informações que permite ajustar com precisão a semeadura, a aplicação de pesticidas, a irrigação. No início de 2014, a produtora de sementes Monsanto e o fabricante de tratores John Deere propuseram, cada um a seu turno, aos agricultores do meio-oeste que transmitissem diretamente esses parâmetros a seus servidores a fim de que fossem calculados. Mas a austera Mary Kay Thatcher, responsável pelas relações do American Farm Bureau com o Congresso, não viu as coisas dessa forma. “Os agricultores devem saber quem controla seus dados, quem pode acessá-los e se esses dados agregados ou individuais podem ser partilhados ou vendidos”, afirma em um vídeo pedagógico intitulado “A quem pertencem os dados?”. Mary Kay Thatcher teme que esse material captado pelas transnacionais caia em mãos de especuladores: “Bastaria a eles ficar sabendo as informações sobre a colheita em curso alguns minutos antes de todo mundo”.7 A mobilização gerou frutos. Em março de 2016, prestadores de serviços de TI e representantes dos fazendeiros entraram em acordo sobre “princípios de segurança e de confidencialidade para os dados agrícolas”, enquanto uma organização, a Coalizão dos Dados Agrícolas (Agdatacoalition), erguia em julho de 2016 uma fazenda de servidores cooperativa para partilhar seu armazenamento.
Tais ideias não despertam a atenção dos líderes da União Europeia. Em outubro de 2015, uma série de queixas formuladas por um estudante austríaco contra o Facebook por desrespeito à privacidade levou à invalidação de um arranjo que há vinte anos autorizava a transferência de dados para empresas norte-americanas (o Safe Harbor). A União Europeia poderia então ter imposto aos gigantes da web que estocassem as informações pessoais dos europeus no Velho Continente. Ao contrário, ela apressou-se em assinar, no início de 2016, um novo acordo de transferência automática, a orwelliana “proteção de confidencialidade”, em troca da garantia pelo diretor do serviço de informações nacional norte-americano de que nenhuma “vigilância de massa indiscriminada” seria praticada – prometido e jurado! Dessa forma, basta ligar seu celular para praticar a importação-exportação sem saber. No momento em que a batalha contra o Grande Mercado Transatlântico (GMT) reúne milhões de opositores, a reafirmação do livre-comércio eletrônico não suscitou nenhuma reação especial.
A existência e a amplitude das mobilizações sobre esses temas vão direcionar o futuro do “trabalho digital” numa das pistas que já se desenham. A primeira, a de uma derrota sem combate, consagraria o status de usuário-vendedor de seus próprios dados. Segundo esse modelo imaginado no início dos anos 2010 por Jaron Lanier, especialista em informática e guru da realidade virtual, “desde que uma pessoa contribua por algum meio e por menos que isso esteja numa base de dados, […] ela receberá um nanopagamento proporcional à amplitude da contribuição e ao valor que dela resulta. Esses nanopagamentos se somariam e seriam a base de um novo contrato social”.8 Todos (nano)lojistas!
A segunda via é a da retomada pelos Estados. Desde o início dos anos 2010 e do reforço da austeridade, cresce a exasperação contra a grande evasão fiscal praticada pelas empresas de alta tecnologia. À margem de procedimentos abertos pelo comissariado europeu na concorrência contra o Google e diversas investigações nacionais por fraude, surgiu na França a ideia de taxar as empresas tecnológicas sobre o valor gerado pelos dados pessoais. Em seu relatório sobre a questão de tributos na área do setor digital, os altos funcionários Nicolas Colin e Pierre Collin lutam para que “a França retome o poder de impor os benefícios do ‘trabalho gratuito’ dos internautas localizados no território francês” segundo o princípio do “predador-pagador”.9
Apoiando-se nesse método, o sociólogo Antonio Casilli propôs que essa taxa financie uma renda básica. Esta última, explica, seria vista ao mesmo tempo “como alavanca de emancipação e como medida de compensação para o digital labor”.10 A metamorfose da questão dos dados pessoais em uma questão política progressista encontra aqui uma formulação. Podem-se imaginar outras, que repousariam não mais na mercantilização, mas na socialização.
Nos campos do transporte, da saúde e da energia, as informações de massa até aqui serviram apenas para fazer funcionar a austeridade realizando economias. Elas poderiam também contribuir para melhorar a circulação urbana, o sistema de saúde, a alocação dos recursos energéticos, a educação. Em vez de emigrar por default para o outro lado do Atlântico, elas poderiam ser obrigatoriamente destinadas a uma agência internacional de dados instaurada sob a égide da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Direitos de acesso diferenciados estabeleceriam a possibilidade de consulta e de uso: automática para os indivíduos envolvidos; gratuita, mas anônima, para as coletividades locais, os organismos de pesquisa e de estatística públicos; possível para os promotores de projetos de utilidade coletiva não comerciais. O acesso dos atores privados à preciosa matéria-prima seria em contrapartida condicionado e pago: prioridade para o comum, e não mais para o comércio. Uma proposta conexa, mas pensada em escala nacional, numa ótica de soberania, foi detalhada em 2015.11 Uma agência internacional apresentaria a vantagem de reagrupar imediatamente em torno de normas estritas um conjunto de países sensíveis às questões de confidencialidade e desejosos de contestar a hegemonia norte-americana.
Uma indignação que erra o alvo
O impulso necessário para popularizar uma propriedade e um uso socializados dos dados se defronta ainda com o sentimento de inferioridade técnica que conjuga o “É muito complexo” com o “Não se pode fazer nada”. Apesar de sua sofisticação e de seu léxico enrolado, o campo digital não está separado do resto da sociedade nem colocado em imponderabilidade política. “Muitos programadores da internet lamentam o futuro de sua criatura, mas sua cólera erra o alvo”, observa o crítico Evgeny Morozov. “A culpa não cabe a essa entidade amorfa, mas à esquerda, que se mostrou incapaz de propor políticas sólidas em matéria de tecnologia, suscetíveis de frustrar a inovação, a ‘agitação’ e a privatização promovidas pelo Vale do Silício.”12
A questão não é mais saber se um debate vai emergir em torno do controle dos recursos digitais, mas se forças progressistas tomarão parte nesse enfrentamento. Reivindicações como a reapropriação democrática dos meios de comunicação on-line, a emancipação do trabalho digital, a propriedade e o uso socializado dos dados prolongam logicamente um combate que já dura dois séculos. E frustram o fatalismo que situa inelutavelmente o futuro no cruzamento do Estado-vigilante com o mercado predador.