De bermuda nas trincheiras
Desde o final dos anos 1990, as construções em homenagem aos mortos explodiram: museus, memoriais, pontos históricos etc. A Unesco se vê chamada para reforçar a obra ao dar seu selo, comprovação de um respiro turístico. Essa moda, porém, preocupa alguns historiadores e levanta uma série de questões delicadasGeneviève Clastres
Memorial do Holocausto de Berlim, Parque da Memória em Buenos Aires, Museu-Memorial de Drancy, estupa [monumento construído sobre restos mortais (N.T.)] para as vítimas dos khmers vermelhos, Museu do 11 de Setembro nova-iorquino… Tantos lugares que têm menos de dez anos e testemunham a vontade de fixar a memória em locais simbólicos. Particularidade desses novos espaços, todos devem levar em conta o fato turístico desde sua concepção,1 pois cada vez mais visitantes não possuem ligação direta com a tragédia evocada.
Na região de Somme, França, cerca de 200 mil turistas pisam todos os anos no terreno da batalha que opôs franceses e britânicos às tropas alemãs, de julho a dezembro de 1916. A maioria dos visitantes é originária dos países do Commonwealth (cerca de 60%). Muitos querem se recolher e apreender o que seus avós ou bisavós viveram. No entanto, encontramos também uma parcela cada vez mais importante de adultos e estudantes desprovidos de ligações familiares com os homens mortos na guerra. Eles visitam a área para compreender, descobrir, por interesse histórico…2
Esse novo público influencia o conteúdo dos locais e das exposições. Ele deve ser mais didático do que antes, às vezes adaptado a um público jovem, frequentemente multilíngue. Em Lyon, o Centro de História da Resistência e da Deportação passou por uma renovação para comemorar seus vinte anos e reabriu em 2012 com uma cenografia nova. A partir de agora seguimos um percurso que se apoia no trabalho fotográfico de artistas da época. No Memorial de Caen, a sala consagrada ao dia D e à batalha da Normandia também foi reformada em 2012, com muitos documentos, mapas em relevo, objetos e depoimentos.
A vulgarização e a internacionalização de locais de memória não ocorrem sem que surjam questionamentos. Como dividir o espaço entre os visitantes e as vítimas (ou os descendentes das vítimas), que não têm as mesmas expectativas? Como evitar práticas desrespeitosas, administrar as diferentes percepções da relação com a morte, da cultura da memória, do religioso? Como se recolher entre os ônibus de turismo e os grupos escolares? Como administrar essas coabitações que podem se tornar conflituosas? Com mais de 1,5 milhão de visitantes por ano, o cemitério norte-americano de Omaha Beach (em Calvados) se tornou um vasto playground onde todo mundo vem fazer sua pose no meio das miríades de cruzes brancas. Sobra algum lugar para as famílias dos soldados?
As vítimas diretas e seus descendentes não se encontram mais nesses lugares superpopulosos. Preferem se reunir em locais que fazem sentido para eles e em datas intimamente ligadas à sua tragédia pessoal, explica Brigitte Sion,3 jornalista e pesquisadora que trabalhou no Memorial do Holocausto de Berlim e no dos Desaparecidos de Buenos Aires. Em março de 2014, o ingresso num valor equivalente a R$ 82 para o Museu do 11 de Setembro de Nova York gerou polêmica. A entrada num local de memória deve ser paga?
Um desafio econômico e político
Em um impulso ecumênico, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (Unesco) é frequentemente chamada a reforçar dando seu selo de “valor universal excepcional” para locais ligados a acontecimentos trágicos. Entre 1978 e 1999, a Ilha de Goreia (comércio de escravos, 1978), Auschwitz-Birkenau (Segunda Guerra Mundial, 1979), o domo Genbaku, do Memorial da Paz de Hiroshima (bomba atômica, 1996) e Robben Island (prisão do apartheid, 1999) foram inscritos na lista do patrimônio mundial. Claro, a criação da Unesco depois da Segunda Guerra Mundial tinha como missão favorecer a paz e o diálogo intercultural. Mas locais ligados a guerras, massacres e abusos podem criar essa ligação? Em outras palavras, como atribuir um valor universal excepcional a espaços difíceis de apreender, seja em sua materialidade ou em sua dimensão trágica?
Efetivamente, para que esse valor universal excepcional seja reconhecido, é preciso preencher pelo menos um dos dez critérios da instituição:4 representar “uma obra-prima de um gênio criador humano”, ser um “depoimento único ou ao menos excepcional sobre uma tradição cultural ou uma civilização viva ou desaparecida” etc. No caso dos memoriais, o sexto critério é determinante. O local deve “ser direta ou materialmente associado a eventos ou tradições vivas, ideias, crenças ou obras artísticas e literárias, tendo um significado universal excepcional”. Segundo a historiadora Sophie Wahnich, basear-se nesse critério é nonsense: “Como falar de tradições vivas para campos de batalha que conheceram milhares de mortos?”.5 O paradoxo é evidente.
Então, não haveria um sentido oculto por trás dessa vontade dos memoriais de serem endossados pela Unesco? Na França, duas propostas estão em estudo para obter o selo. Os locais funerários e memoriais da Primeira Guerra Mundial (front Oeste) e as praias do desembarque da Normandia. A primeira proposta também foi apresentada pela Bélgica, por meio de uma associação astuta de catorze departamentos franceses6 com as regiões de Flandres e Valônia, o que permite uma inscrição suplementar, já que cada país é limitado no número de propostas que pode apresentar (ler boxe nesta página).
Com relação ao front Oeste, a inscrição na lista do patrimônio mundial cairia bem neste período de centenário da Primeira Guerra Mundial. Uma centena de locais importantes esperam por isso. No entanto, ao escutar a apresentação do projeto feita por Serge Barcellini, conselheiro junto ao secretário de Estado francês encarregado dos antigos combatentes e da memória, nos questionamos diante das expressões “clientela cativa”, “mercado principal”…7 O objetivo para as coletividades territoriais se tornou tão econômico quanto político. Em Carcassone, a frequência turística teve um salto de 20% em 1998, ano seguinte à inscrição da cidadela. Em 2013, cinco anos após a classificação de doze grupos de construções fortificadas ao longo das fronteiras, a associação Rede Vauban constatou aumento de 10% a 20% da média de visitas. Em Albi, cuja cidade episcopal foi classificada em 2010, as visitas à Catedral de Santa Cecília aumentaram 23% entre 2009 e 2012.
A questão está clara, então, e os objetivos, assumidos; mas, no caso da Primeira Guerra Mundial, o assunto permanece delicado, pois se trata nesse caso de locais cuja dimensão trágica beira o indizível. Uma frase pronunciada por Barcellini resume essa sensação incômoda: “A região de Marne pôde escolher entre o 1914-1918 e o champanhe; eles escolheram o champanhe, dá mais lucro”. As bolhinhas contra a memória, a embriaguez em vez dos massacres – o combate era desigual demais. Lancinante, a questão retorna agora como um bumerangue: é justo, ou pelo menos pertinente, colocar a tônica nos locais que retraçam antes de mais nada as feridas da humanidade?
Seria preciso assim rejeitar tudo, negar o papel e o lugar do turismo nos locais memoriais? Podemos argumentar sobre o papel pedagógico desses lugares, que deveriam nos informar sobre os massacres que nunca mais gostaríamos de rever e que procuramos transcender. Em outras palavras, eles dizem respeito às gerações futuras, as que devem saber, compreender, já que, com os anos, o tempo da lembrança e das vítimas dá lugar a um tempo mais distanciado, o da história.
A oportunidade de pensar
Quando se trata de definir a universalidade de um local, uma série de questões aparece, nota Sébastien Jacquot, do Instituto de Pesquisa e de Estudos Superiores do Turismo (Irest, na sigla em francês): “Quem propõe? Quem escolhe? Quais vozes? Os moradores? Os resistentes?”. De fato, é difícil classificar os locais onde o indizível aconteceu. Segundo Wahnich, “é importante aceitar a parte não reabsorvível do que tentamos reconciliar, esse traço deixado pela crueldade humana. Tentar inscrever os locais a qualquer preço, fazer deles santuários, seria o mesmo que negar a crueldade, não reconhecer essa pulsão de destruição que gera apenas uma lacuna. E isso porque o ser humano tem uma forte propensão a querer apagar os traços do insuportável, a não querer ver”. Olhar não é ver. Não basta que um lugar tenha sido declarado “local de crueldade” para contornar a resistência dos indivíduos em se confrontar com o impensável. Então, para transmitir, para ajudar também o olhar a ultrapassar o primeiro estágio do testemunho, até mesmo de voyeur, a historiadora propõe que se criem itinerários que permitam ajustar o passo ao ritmo dos pensamentos: “É preciso que o olhar saia das normas, que esses locais de memória gerem a oportunidade de pensar. É preciso andar, vasculhar, criar itinerários que produzirão uma possibilidade de apropriação. É o que acontece sob nossos pés que importa, a relação entre o visível e o invisível”.
E o turismo? Os profissionais do setor jogam frequentemente com a identificação com as vítimas, os discursos emocionantes. Eles colocam em cena a piedade para vender “tours da memória”, esquecendo-se frequentemente de mostrar os carrascos. Não podemos nos impedir de pensar no contrário, no cineasta franco-cambojano Rithy Panh e seu extraordinário S21 (2003), que coloca em cena os torturadores khmers vermelhos.
Como conseguir fazer do turismo um instrumento inteligente e responsável, e não apenas uma alavanca econômica e política a serviço de alguns? Em nossas sociedades, onde é preciso saber se mostrar, comunicar, “se autopromover”, o símbolo importa mais que o conteúdo e os recipientes. A emoção toma a frente do sentido e da decência. Esgotamo-nos recenseando tudo o que pode ser lançado para ser devorado por um público ávido por eventos, memórias gloriosas, para o qual o vazio de uma época se preenche com acontecimentos, aniversários, bicentenários, homenagens. Somente o passado poderia alimentar o presente? Um presente que questiona…
*Geneviève Clastres, jornalista, é autora, entre outros livros, de Le Goût des voyages [O gosto pelas viagens], Gallimard Jeunesse, Paris, 2013.
BOX
Unesco, um selo que deve ser merecido…
A França conta com 39 locais na lista do patrimônio mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), sendo o último a gruta ornada da Ponte d’Arc, chamada gruta Chauvet-Pont-d’Arc (região de Ardèche), classificada em junho de 2014.
Para apresentar um projeto, os Estados devem em primeiro lugar fazer um inventário dos pontos naturais e culturais que desejam propor ao longo dos cinco a dez anos por vir. Estes últimos são inscritos em uma lista indicativa, que poderá ser atualizada a qualquer momento. Os projetos são então trabalhados e apresentados por associações auxiliadas por serviços de Estado. Para a gruta Chauvet, a candidatura à Unesco foi feita por uma reunião do Sindicato Misto da Caverna de Pont-d’Arc, dos serviços de Estado, do conselho geral de Ardèche e da região Rhône-Alpes.
A cada ano, cerca de cinquenta projetos são apresentados, de todos os países. Cada Estado só tem direito a apresentar dois projetos por sessão, um local natural e um cultural. Os projetos são examinados pelo Centro do Patrimônio Mundial e avaliados por duas organizações consultivas independentes: o Conselho Internacional dos Monumentos e dos Sítios (Icomos) e a União Mundial pela Conservação da Natureza (UICN, nas siglas em inglês).
Uma vez por ano, o Comitê Intergovernamental do Patrimônio Mundial se reúne para decidir quais locais serão escolhidos. Em 2014, 26 foram inscritos na lista do patrimônio mundial: 21 locais culturais, entre eles o Grande Canal da China, a Fábrica Van Nelle, na Holanda, e a cidade histórica de Djeddah (a porta de Meca), na Arábia Saudita; quatro locais naturais, entre os quais o complexo de paisagens de Trang An, no Vietnã; e um local misto, a antiga cidade maia e as florestas tropicais protegidas de Calakmul, no México.
Geneviève Clastres, jornalista, é autora, entre outros livros, de Le Goût des voyages [O gosto pelas viagens], Gallimard Jeunesse, Paris, 2013.