De vendaval a furacão
Quem se surpreenderá com as proporções assumidas pela tempestade quando o próprio objetivo da desregulamentação foi abolir todo entrave à ação dos especuladores e proporcionar-lhes, sem a menor restrição, a mais viciante das formas do lucro: a rentabilidade financeira?
A gravidade da crise fica patente quando notícias normalmente tidas como boas passam a ser interpretadas de uma hora para outra como ruins. O Fed (Federal Reserve, o banco central norte-americano) reduz sucessivamente a taxa de juros? Nunca é o bastante. Anuncia, em 12 de dezembro último, de comum acordo com outros grandes bancos centrais, uma ampliação espantosa de seus procedimentos de refinanciamento? 1 É porque a situação se revela bem mais grave do que se imaginava. Seu presidente, Ben Bernanke, numa atitude sem precedentes, defende, em 17 de janeiro, a ampliação dos incentivos orçamentários? Só pode ser porque a instituição, tendo esgotado suas margens de manobra, não vê outro recurso senão pedir ao Estado para tomar iniciativas. Então, uma vez que isso era apenas o primeiro ato de uma comédia mal encenada, eis que George W. Bush anuncia, logo no dia seguinte, um pacote de incentivos quase que exatamente ajustado às “sugestões” do banqueiro central. Se estes dois chegaram ao ponto de coordenar tal esquete burlesco é porque a hora realmente se mostra grave: tamanho travamento das medidas clássicas constitui o sinal mais espetacular, e mais preocupante, da profundidade da confusão na qual se encontra o mundo das finanças, que já não responde às orientações fornecidas pela política monetária, a não ser de maneira errática.
A crônica cotidiana das movimentações nas praças financeiras, que de outra forma estaria fadada a permanecer incompreensível, ou dissolvida no caos das notícias cuspidas pelas agências de informação, só passa a fazer sentido quando inserida em uma perspectiva de médio prazo, que confere à crise seu perfil característico e sua real extensão temporal. Os amigos do sistema, que se apressaram em garantir a inocuidade de um processo tido como desprezível, e anunciaram a iminência do retorno à ordem, sem dúvida vão ficar decepcionados: os seus escritos permanecem… e a crise também.
Ocorre que há boas razões para a crise se ampliar e perdurar desta forma. Isto porque, para imaginar que o episódio seria solucionado com facilidade, como se fosse uma insignificante anomalia de mercado, teríamos que esquecer por completo da gravidade do fato que o gerou: o aliciamento delirante de multidões de famílias inadimplentes para contraírem a mais pesada de todas as formas de dívida, o empréstimo hipotecário. Por efeito de uma reviravolta, que parece ter sido gerada por uma justiça imanente, a cláusula do reset 2, que serviu às mil maravilhas para atrair maciçamente as pessoas interessadas (e provocou uma disparada dos preços do setor imobiliário, que alcançaram valores recordes, da mesma forma que os ganhos especulativos obtidos com os derivados), tornou-se uma maldição no mundo das finanças. Este, que tanto gosta de viver na instantaneidade, se vê obrigado a lidar com um “atrasado” de famílias endividadas do qual é impossível se livrar. O pico dos resets, ou seja, dos reajustes de taxas de juros que jogam as famílias na inadimplência, deverá ser alcançado em março-abril de 2008.
Supondo – hipótese favorável – que os recrutamentos dos candidatos ao crédito tenham sido suspensos no começo de 2007, será preciso esperar até o início de 2009 para ver a conclusão do represamento da massa dos falidos potenciais, cuja situação não apresentaria absolutamente nenhum interesse para o mundo das finanças se as suas vulgares derrocadas não estivessem na origem do desmoronamento dos produtos especulativos derivados de seus créditos imobiliários (definitivamente, os pobres não sabem estar à altura da criatividade dos ricos). Com isso, o mundo das finanças, que gosta acima de tudo da liquidez dos fluxos, está redescobrindo a inércia dos estoques: todas as pessoas que ele tratou como “carne para canhão” hipotecária nada mais são agora do que obstáculos incômodos.
Enquanto isso, o descalabro geral vai se ampliando. Ele atinge uma categoria de protagonistas da qual ninguém havia ouvido falar até então: as monolines, instituições especializadas que asseguram os detentores de carteiras de obrigações (em geral, fundos de investimentos ou bancos). A princípio, elas se dedicavam, sossegadamente, a cobrir os riscos simples das obrigações municipais nos Estados-Unidos 3. Mas, assim como aconteceu com todos, foram tomados pela febre e se viram tentadas a assegurar produtos mais atraentes, cujo volume em plena expansão garantia um faturamento polpudo, e que todo mundo gostava de considerar como pouco arriscados: os derivados de subprimes, obviamente!
Quem se surpreenderá com o que aconteceu na seqüência? As duas monolines mais importantes, a MBIA e a Ambac, estão em quase-falência. Bancos e fundos são instados a efetuarem a sua recapitalização em regime de emergência – ao menos, aqueles que têm condições para tanto. O caso está longe de ser apenas anedótico, uma vez que os bancos haviam colocado no seguro seus colossais volumes de produtos derivados e a degradação da contabilidade das monolines obriga a revisão da contabilidade de todos os títulos que elas asseguravam, cujo valor, tal como está estipulado nos balanços de seus clientes, deverá ser revisto para baixo.
A esta altura, a saída da crise está cada vez menos na ordem do dia, pois a dinâmica do desmoronamento financeiro começou a difundir seus efeitos mais tóxicos. A deterioração dos balanços dos bancos, em conseqüência das perdas com os derivados de subprime, e as tensões que persistem sobre a liquidez interbancária, em razão da extrema incerteza que motiva todos eles a se enxergarem uns aos outros como pestilentos potenciais, resultam fatalmente numa contração do crédito, da qual a economia produtiva, por mais distante que esteja das peripécias especulativas, acabará padecendo. Por causa de sua resistência em reconhecer os fatos, comparável apenas àquela dos intelectuais orgânicos do liberalismo, as instituições financeiras demoraram mais de seis meses até se renderem à idéia de uma iminente redução do ritmo do crescimento, e possivelmente de uma recessão.
Efeitos psicológicos da idéia da recessão
Ora, a instalação nas mentes da idéia da recessão vem alterar muitas coisas, principalmente no que diz respeito à ampliação do campo financeiro ameaçado pela desestabilização. Os abalos mais violentos dos mercados de ações, no começo de 2008, constituem uma prova disso. Não que eles estivessem em uma forma olímpica nestes últimos oito meses. Mas as reduções estiveram limitadas, primeiro, aos valores bancários – ainda que de primeira linha. Depois, a partir de setembro, tornaram-se sensivelmente mais fortes, nos períodos em que a seca do mercado monetário e a impossibilidade de nele se levantar fundos obrigaram bom número de instituições a efetuar vendas emergenciais de parte de suas carteiras de ações, de modo a obter rápida liquidez. No momento em que a perspectiva do desaquecimento fica mais nítida, toma corpo uma interrogação geral sobre a atividade e a rentabilidade de todos os setores.
Este ingresso provável dos mercados de ações em um ciclo de baixa promete rudes efeitos colaterais. Em particular no setor tão discreto quanto sensível da private-equity – esta forma brutal de capitalismo acionário na qual as empresas consideradas promissoras são compradas na sua integralidade, retiradas da Bolsa e reestruturadas, com o objetivo de, em um prazo de dois ou três anos, serem revendidas a peso de ouro, na maioria dos casos por meio da reintrodução na Bolsa 4. Se esta última se mostrar desanimada, será preciso abrir mão das reintroduções, promovidas com grande estardalhaço e cotações fulgurantes. Com isso, a “descostura” de um bom número de operações de private-equity se apresenta como particularmente delicada, seja porque as sobrevalorizações não correspondem às expectativas, seja pelo fato de os compradores se verem obrigados a adiar a sua “saída” e a carregar a dívida por muito mais tempo do que haviam previsto. Isso porque essas operações foram financiadas por meio de créditos fantasmáticos, alocados em certos casos dentro de condições tão escabrosas quanto as das subprimes. Enquanto isso, os bancos estão vendo se aproximar o momento em que gordas fatias de suas dívidas ativas de private-equity também irão desmoronar, sendo relegadas à categoria dos “maus créditos” – com todas as depreciações que podem decorrer de tal situação.
Entre estas, se incluem a redução direta do valor de suas carteiras de ações, a queda do ritmo de suas atividades de geração 5 e de fusão-aquisição, a ameaça sobre os créditos de private-equity (que também recai sobre muitos outros, tais como os cartões de crédito, o financiamento de veículos etc.) e a redução dos lucros de trading (operações especulativas) nos mercados, marcados por uma tendência à queda: tudo, no desaquecimento econômico, concorre para comprometer a situação financeira dos bancos e para diminuir sua inclinação a emprestar. No mundo maravilhoso das finanças, a crise alimenta a crise.
Nada disso foi fruto da ira divina. Contra todos aqueles que, a exemplo do presidente do banco Société Générale, Daniel Bouton, pensam poder se eximir de sua responsabilidade no curso dos acontecimentos, valendo-se da tese do “deplorável acidente de percurso”, é preciso lembrar o quanto estes eventos são expressão das lógicas puras das finanças de mercado. Quem haveria de ficar espantado por ver que os agentes financeiros correm atrás de todas as oportunidades para saciar sua gula? Por ver que, em caso de necessidade, acabam até mesmo inventando essas oportunidades por meio de “inovações” que os levam a acreditar por um tempo que estão livres do risco? Por ver que se precipitam sobre toda dinâmica altista e que a transformam imediatamente em bolha? E, finalmente, por ver que são capazes de apenas vigiar o seu risco individual e considerar que o risco global de maneira alguma lhes diz respeito? Quem haveria de ficar espantado por ver tudo isso acabar regularmente em catástrofe? Quem poderia se surpreender quando o próprio objetivo da desregulamentação financeira é justamente abolir todo entrave à ação dos investidores e devolver-lhes sem a menor restrição a mais viciante das formas do lucro e o mais forte dos poderes de sideração: a rentabilidade financeira?
Daniel Bouton está numa posição particularmente embaraçosa para permitir-se alegar que aquilo foi “um acidente fora de norma e absolutamente lamentável”6, ele que preside um banco, o Société Générale, que, há 25 anos, desliza regularmente rumo ao delírio. Isso porque o Société Générale, tradicionalmente um banco de varejo de um classicismo cinzento, com suas agências, seus balcões e seus executivos medianos, uma instituição bastante fraca no que diz respeito a atividades como banco de investimento, foi mordido tardiamente pela tarântula da globalização: sonha com sofisticação e telões cintilantes, gostaria de ser o Goldman Sachs, aprende inglês, instala seus golden boys em Londres e respira o ar revigorante dos mercados de capitais – algo muito diferente de renovar o crédito do moleiro que mora em uma remota aldeia da província. Por isso, quando o senhor Bouton afirma, em entrevista a Le Figaro, que “o modelo do Société Générale de maneira alguma foi atingido ou contestado”7, é preciso entender exatamente o contrário: tal modelo, que, aliás, não é do Société Générale, e sim deste homem em particular, acaba de sofrer um tombo daqueles. O fascínio pelos mercados, que já lhe rendeu bastante dinheiro, poderá agora lhe custar muito caro. Um pouco mais em destaque do que os outros, conforme sempre acontece com quem aparece tardiamente, o Société Générale ilustra com perfeição esta fantástica distorção do universo bancário em sua abertura para os mercados, movido pela atração magnética da desregulamentação.
Todas as negações do mundo não impedirão que a crise atual apareça tal como é: uma experiência em tamanho real que demonstra a nocividade intrínseca de mercados e operadores de mercado livres de todo controle. Mas esta experiência não é a primeira do tipo. Quem não se lembra das cenas grandiloqüentes de indelicadeza e fraude proporcionadas pelo krach da Internet em 2000? Do apelo solene das autoridades financeiras à regulação, à transparência, à reintegração das transações que as firmas excluíam de seus balanços? “Nunca mais”, juram toda vez os atores do mundo das finanças, antes de partirem para uma nova rodada. Mas, os seus juramentos de bêbados; a idéia de que eles enriquecem de maneira solitária e fabulosa durante a bonança e põem a economia inteira em perigo quando suas imperícias vêm à tona, obrigando os poderes públicos a salvá-los da difícil situação na qual qualquer falido ordinário seria abandonado à sua própria sorte; tudo isso dá vontade de “quebrar o carrocel”, o que parece ser a única solução para que esta seja verdadeiramente a “última rodada”.
Um balanço um pouco mais analítico das “realizações” das finanças desregulamentadas, nas quais os danos causados superam de maneira tão evidente os serviços prestados, deveria ao menos convencer da urgência de se quebrar algumas de suas engrenagens. Ao contrário do que dizem, não faltam idéias em relação a esta questão. A Taxa Tobin é uma delas. Sugerida em 1972 pelo Nobel de Economia James Tobin, consiste em uma taxação das transações monetárias internacionais de modo a desencorajar a especulação. Mas caiu prematuramente no esquecimento. Em seu registro próprio, o SLAM, um projeto visando limitar a rentabilidade acionária autorizada, e suprimir com isso as incitações à intensificação indefinida da exploração dos assalariados, é outra dessas idéias 8. O esquema de uma política monetária desmembrada, que visa financiar por meio de taxas de juros diferenciadas a economia produtiva e a economia especulativa, é uma terceira. A exemplo do que foi feito pelo Glass Steagall Act 9 nos Estados Unidos, decidido em decorrência do desmoronamento dos anos 1930, por que não considerar a possibilidade de se estabelecer uma separação hermética entre os bancos comerciais e os bancos de investimento? O princípio da separação estanque tem como propriedade atenuar sensivelmente a transmissão dos desastres financeiros para a economia real, que se dá por intermédio do canal do crédito.
Basta tomar maior distância em relação aos fatos para se obter uma melhar perspectiva da situação. Isso permite perceber que, se for verificado que a economia francesa sofrerá menos com a crise das subprimes, conforme deram a entender alguns observadores, tal diferença se deverá, principalmente, ao fato de ela não ter ido tão longe quanto outras na desregulamentação, que se tornou uma prática generalizada. Mas é rumo a esta última que estamos sendo empurrados com força pelos “reformadores”, os quais incluem tanto os liberais como os socialistas! O que mais impressiona é sem dúvida a constância de seu entusiasmo, que já dura há 25 anos desde que eles deslancharam a “grande transformação”, e que nunca cessou de mostrar seus efeitos nocivos.
Alguns rebaterão que ela não é nociva para todo mundo. Sem dúvida. Mas, no que vem a ser uma curiosidade persistente, mesmo com uma distância de 25 anos, ela prejudica incontestavelmente todos aqueles que o Partido Socialista supostamente deveria defender. Pois não há como fugir do terrível veredicto da aritmética: 2008 – 25 = 1983. Foram “eles” os primeiros “reformadores”: François Mitterrand, o primeiro presidente socialista, estava no poder desde 1981. É impossível não ficar espantado diante da brevidade do tempo necessário para mudar o rosto da sociedade francesa. O ano de 1983 viu a guinada da política econômica, e, principalmente o grande desenclausuramento ideológico. O de 1984 foi um ano de muitos acontecimentos: primeiro, a exortação do primeiro-ministro socialista Laurent Fabius às empresas públicas para não terem outro objetivo a não ser o lucro, proclamando com isso a inutilidade de seu estatuto de estatais e preparando de fato as privatizações; depois, a Cúpula Européia de Fontainebleau, que serviu de antecâmara para o Tratado Europeu, um pacto que visava defender a livre concorrência. O de 1986 foi o ano da desregulamentação financeira. É muita coisa em tão pouco tempo.
Sem dúvida, a sociedade francesa nunca cessou, desde aqueles anos, de manifestar uma rebeldia desajeitada contra a plena realização do brilhante destino que havia sido forjado para ela. Pois é preciso reconhecer que o destino em questão apresenta o inconveniente de deixar escapar, em intervalos regulares, que ele assimila a calamidades, “demonstrações”, para as quais as crises financeiras fornecem incontestável contribuição.
Este pano de fundo permite enxergar a crise atual sob nova perspectiva, evidenciando a coerência, só que dentro da nocividade, do “modelo completo” que muitos gostariam que abraçássemos.
Com efeito, à medida que exerce uma pressão permanente e sempre crescente sobre os preços, portanto, sobre os custos, e, finalmente, sobre o custo salarial, a concorrência instaura um regime de “preços-salários”, no qual toda discussão sobre o poder aquisitivo remete imediatamente apenas à questão dos preços: quando o assalariado reivindica aumentos, a resposta acaba sendo dirigida ao consumidor. Mas a redução dos preços que é oferecida a este último tem por efeito imediato reduzir o salário do primeiro! Os assalariados colocados no olho da rua por um plano de terceirização, por exemplo, não têm outro recurso senão fazerem suas compras no hard discount (supermercado com menos produtos e preços mais baratos), o qual constitui a extremidade mais feroz da corrente concorrencial e ativa precisamente todos os mecanismos que acabam de causar o seu infortúnio. Contra a vontade, os assalariados dão deste modo “razão” ao próprio encadeamento que os maltrata, e, na falta de qualquer outra solução, contribuem para assegurar a sua manutenção 10. Deste processo notavelmente perverso resulta um regime de baixa pressão permanente do poder aquisitivo, que deprime em conseqüência o consumo e a demanda global.
Menor consumo? Que cresça o endividamento!
Mas o modelo liberal se gaba de oferecer ele mesmo as soluções para os problemas que gera. Assim, a resposta ao menor consumo, que é uma característica inerente do regime de “preços-salários” concorrencial, se impõe como uma evidência: o endividamento! Se o poder aquisitivo das famílias tende a ficar estagnado ou a regredir, ao passo que o capital reclama apesar de tudo um mercado mais dinâmico, haverá algo mais lógico do que ampliar, por meio do crédito, a capacidade de os assalariados gastarem além da conta? Ninguém há de se surpreender ao verificar que nos Estados Unidos e no Reino Unido, que já têm uma boa “dianteira” em relação à França nesta descida íngreme, a taxa de endividamento das famílias em relação à sua renda disponível é respectivamente de 120% e 140%. Isso explica por que as economias anglo-saxãs são chamadas a sofrer mais do que as outras: nelas, o crédito para o consumo constitui uma válvula indispensável, que está prestes a ser brutalmente fechada.
O presidente Sarkozy comemora o fato de a situação ser muito diferente na França. Mas tudo o que ele anda fazendo aponta nessa direção, ou, melhor dizendo, nos conduz ainda mais rapidamente nessa direção, pois, na França, a taxa, que era de 68% em 2006, vem explodindo literalmente nos últimos dez anos.
É no envolvimento financeiro maciço dos assalariados que a coerência liberal alcança níveis insuspeitos de refinamento. Na sua qualidade de vertente simétrica da alienação pela dívida, chegou a vez da poupança ser o seu protagonista. A falência das instituições financeiras não consegue exatamente nos arrancar lágrimas… até o momento em que nos perguntamos qual é a origem dos fundos perdidos por elas. Ora, é mesmo em parte com a poupança dos assalariados que essas instituições jogam e perdem.
A situação da França, também neste caso, continua sendo uma exceção relativa, uma vez que a maioria dos assalariados não tem dinheiro suficiente para ir além da caderneta de poupança e apenas os mais ricos têm acesso ao mercado de investimentos (o que faz, aliás, com que os acidentes especulativos, que prejudicam principalmente os segundos, apresentem inesperadas propriedades de redução das desigualdades). Mais uma vez, o exemplo nos é mostrado pelas economias anglo-saxãs, que tiveram a interessante idéia de acabar de vez com os sistemas de aposentadoria por repartição, de modo a captarem enormes massas de poupança salarial injetadas nos mercados por intermédio dos fundos de pensão.
No que vem a ser um charme particular da “universalidade financeira”, são todos os assalariados que pagam o pato quando os mercados afundam. O fato de encontrar um substituto ao salário direto – cujo aumento todos entenderam agora que não está mais na ordem do dia – já caracteriza por si só uma manobra fraudulenta, mas efetuá-la expondo diretamente os assalariados às instabilidades do mercado financeiro, e ainda por cima tentando torná-los solidários daquilo que majoritariamente os escraviza, é algo muito sério, até mesmo em demasia.
Presos dentro da armadilha da concorrência, que só promove a redução dos preços com a condição de que os seus salários sejam diminuídos, e presos dentro da servidão do endividamento, que se tornou tão indispensável quanto a renda para viver, os assalariados desfrutam, ainda por cima, da “sorte” de serem tiranizados às suas próprias custas, uma vez que a poupança que abastece as finanças acionárias, aquela mesma que exige rendimentos que não acabam mais, é justamente a deles! E a perversidade confina com a estética quando, de um lado, todos os acidentes do mercado financeiro estão fadados a recaírem sobre eles, já que eles pagarão pelas perdas de crescimento; e, de outro, no que vem a ser o desfecho supremo, passa a ser proibido mexer em qualquer coisa que seja das estruturas financeiras, pelo motivo (razoável, eis o pior!) de que isso equivaleria a atentar contra as suas pensões. Afinal, dentro desta armadilha perfeita, o fato de investir contra a rentabilidade financeira não equivale a investir contra a aposentadoria dos idosos?
Sejamos justos: não existem, do lado do liberalismo, apenas macacos amestrados que passam os dias entoando incansavelmente os artigos de fé do evangelho dos mercados. Na maioria dos casos, os seus apoiadores mais eficientes não são necessariamente os mais visíveis. Estes últimos deixam ao entusiasmo um pouco tolo dos economistas de plantão a tarefa de transfigurar em “ciência natural dos mercados” (reputada por lidar apenas com “ofertas” e “demandas”, e, portanto, supostamente livre de toda ideologia e de toda política) um processo de transformação do capitalismo que é só ideologia e só política! Este cinismo lúcido e atuante (que faz intensamente política onde o economismo teima na negação e vive repetindo que os mercados dizem respeito apenas à neutra “administração das coisas”) compreendeu muito bem que existe efetivamente uma economia política da “financiarização”.
Migalhas em troca da servidão
A meta de envolver os assalariados no mercado financeiro representa a sua estratégia – e ela é muito perigosa. Como melhor consagrar os mercados de capitais do que tornando os assalariados solidários? Afinal, reconstruir seus interesses por meio das finanças não equivale a reconstruir o salariato como apoio objetivo da “financiarização”?
É evidente que essa “solidariedade” não passa de uma fraude: algumas migalhas de participação financeira contra uma servidão adquirida para a eternidade 11. Além disso, a servidão procede de mecanismos abstratos, remotos, e que sabem se fazer esquecer, ao passo que as migalhas, mesmo sendo migalhas, exercem um peso concreto que pode ser suficiente para deixar acreditar que “mexer com as finanças” equivale a “mexer com os interesses dos assalariados”.
*Frédéric Lordon é economista, autor de Jusqu’à quand? L’éternel retour de la crise financière (Até quando? O eterno retorno da crise financeira), Raisons d’Agir, Paris, 2008.