Deixo a Câmara sem deixar a política
O sistema político brasileiro traz no seu bojo o vírus da procriação da corrupção e das práticas não republicanas. Há tempos não me sentia confortável com disputas onde o dinheiro cada vez mais decide o sucesso de uma campanha. Por isso me empenhei tanto na reforma política, mas fui derrotado
Após 16 anos de vida parlamentar, posso dizer que não foi uma decisão simples deixar de disputar, nas urnas, um novo mandato de deputado federal. Foram meses de reflexão e recolhimento, onde, internamente, razão e emoção, alternando posições sem qualquer coerência, buscavam assumir autoritariamente o comando único do processo decisório em curso.
Decidido o caminho, posso agora afirmar que a resposta final não foi uma decisão de natureza estritamente racional e política, mas uma resposta pessoal propulsionada por razões políticas. Uma resposta que não deve servir de exemplo a quem quer que seja, porque além de ser de foro íntimo, ela não deixa de aplaudir aqueles que, sentindo as mesmas emoções e tendo a mesma avaliação da realidade política do país, ainda conseguem reunir energias para disputar mandatos eleitorais proporcionais dentro das regras impostas pelo nosso sistema eleitoral.
Na vida, as pessoas não podem dar-se ao luxo de seguir caminhos que lhes trazem desconforto, desprazer e frustração. Quando o fizerem, mesmo que o façam por idealismo, a possibilidade de realizarem mal as suas tarefas será imensa. O que será agravado, naturalmente, quando estiverem ocupando o lugar de outros que poderiam melhor executá-las.
Minha decisão pessoal não foi causada por uma avaliação institucional negativa do Parlamento ou por um desprezo pela vida parlamentar. O Parlamento é indispensável para a democracia. Ser parlamentar, representando milhares de pessoas que, nas urnas, marcaram o número e depositaram a sua confiança no seu mandato, sempre foi visto e vivido por mim, intensamente, como uma função nobre e dignificante. As razões, portanto, foram outras.
Desde a última campanha eleitoral, já dizia que achava difícil a possibilidade de vir a participar de uma nova eleição proporcional à Câmara dos Deputados, se não houvesse uma radical reforma do sistema político brasileiro. Afirmava isso por já não me sentir confortável em disputas onde os recursos financeiros cada vez mais decidem o sucesso de uma campanha, onde apoios eleitorais não são obtidos pelo convencimento político das ideias, pelo programa ou pela própria atuação do candidato proporcional, mas quase sempre pelo quanto de “estrutura” financeira ele pode distribuir.
Já naquele momento começava a me sentir desestimulado em disputar eleições onde os órgãos fiscalizadores partem de interpretações tão rígidas e formais das regras eleitorais que mesmo os mais sérios e cautelosos dos candidatos poderão sofrer pesadas punições, enquanto os adeptos de práticas não republicanas correm praticamente os mesmos riscos quando realizam suas campanhas milionárias, engordando seus patrimônios pessoais e obtendo votos a peso de ouro.
Hoje um político sério no Brasil pode vir a ser punido ou mesmo correr o risco de perder seu mandato por um mero descuido ou erro formal. Será então exposto à impiedosa execração pública, que o tratará como um criminoso de alta periculosidade, com seu nome e fotografia estampado pelos órgãos de comunicação, sem que se busque saber exatamente qual “delito”, de fato, ele cometeu. Seus familiares, mesmo conscientes da lisura ética do punido, amargarão a vergonha e a zombaria pública, recebendo também uma sanção social implacável.
Já os corruptos cuidadosos, que podem pagar bons e caros técnicos que os assessoram, costumam não cometer erros desta natureza ao engendrarem suas grandes “falcatruas”. Bem assessorados, quase sempre saem “limpos” das disputas eleitorais e aptos a continuar a assaltar os cofres públicos com a mesma desenvoltura de sempre.
Quando, porém, eventualmente, são pegos pelas malhas da lei, já possuem os cofres nutridos para pagar bons advogados e fortuna suficiente para fugir da execração social em lugares acolhedores do mundo. Por serem desonestos, já estavam preparados para o “risco” das suas atividades perigosas.
Não bastasse isso, a generalização e a banalização da ideia de que todo político é “desonesto” não podem deixar de abater ou desestimular os que buscam comportar-se com a dignidade e a ética que o respeito ao voto popular exige. Não há nada pior para alguém que vive com dignidade no mundo da política do que, diante de uma acusação qualquer, ver que a sua palavra ou a ausência de provas incriminadoras não afasta nunca a “certeza” da sua “culpa”.
Se na vida comum se costuma dizer, injustamente, que “onde há fumaça há fogo” (injustamente porque a fumaça pode ter outras “causas químicas”), na vida de um político, o senso comum costuma sentenciar que se há “a leve aparência da fumaça, a existência do fogo é certa”. E não admite, jamais, prova em contrário.
Bandeiras derrotadas
Por isso, me empenhei muito na defesa da reforma política. Defendi o financiamento público das campanhas, por entender que as formas atuais de financiamento privado das eleições geram corrupção e uma real ausência de isonomia entre os candidatos. Defendi o voto em lista partidária, porque entendo que, em uma eleição, um partido deve disputar seu programa de forma unitária, sem que pessoas que estão do mesmo lado busquem votos uns dos outros, personalizando a competição e reduzindo a chance de uma politizada e madura disputa eleitoral.
Tinha e tenho consciência de que somente uma reforma política aguda e radical poderia romper com a cultura dominante de execração preconceituosa de todos os que optam pela vida política, forçando a diferenciação do joio do trigo pela sociedade.
Mas, junto com outros companheiros de luta, fui derrotado. As regras eleitorais que marcarão as próximas disputas aos cargos proporcionais serão as mesmas. Os vícios serão os mesmos. E o desestímulo dos que defendem posturas republicanas na atividade política, cada vez maior. Recentemente, o deputado gaúcho Ibsen Pinheiro, que também deixará por decisão unilateral a Câmara dos Deputados, justificando a sua decisão, disse “quero ser deputado, mas o que eu não quero é ser candidato”. Suas razões, em certa medida, guardam forte correspondência com as minhas.
O sistema político brasileiro traz no seu bojo o vírus da procriação da corrupção e das práticas não republicanas. E por isso inocula, ao mesmo tempo, no espírito dos que militam na política, outro vírus que atinge o ânimo dos que gostam do Parlamento, mas não gostam das condições, das regras, das calúnias e das incompreensões que forjam o caminho do acesso e o exercício de um mandato proporcional.
Embora tenha lutado muito contra o primeiro, fui, lamentavelmente, atingido pelo segundo. Por isso, optei por não disputar novamente uma vaga para a Câmara dos Deputados, mas jamais abandonarei a militância política. Estarei sempre à disposição do meu partido e do projeto político-ideológico que defendo para o país, para assumir qualquer tarefa que me traga ao espírito o ânimo e a alegria do bom embate, na construção de uma sociedade justa e fraterna.
Por fim, não posso deixar de observar que, após ter tornado pública minha decisão de não mais disputar um mandato para a Câmara dos Deputados, tenho a impressão de que passei a ser mais ouvido pelas pessoas em relação às críticas que faço ao nosso sistema político. Não foram poucas as vezes em que disse antes o que digo agora. Só que agora o faço como alguém que deixa o Parlamento e que talvez tenha passado a ser ouvido como um ser humano “comum”, “pessoalmente desinteressado”, ou seja, sem o preconceito que sempre afasta os ouvidos dos cidadãos das palavras ditas por “políticos”.
Se minha percepção quanto a esse fato estiver correta, sem dúvida, a minha partida talvez acabe sendo mais útil ao que defendo do que a minha própria estada na Câmara dos Deputados.
José Eduardo Cardozo é professor de Direito Administrativo, deputado federal em seu segundo mandato e secretário-geral do Partido dos Trabalhadores (PT). Presidiu a Câmara Municipal de São Paulo em 2001 e 2002, e integra o Conselho Editorial de Le Monde Diplomatique Brasil.