Democracia, inovação e cultura digital
Não é só a sociedade e a economia que sentem o impacto da digitalização e da rede mundial de computadores. A política começa a se transformar. Junto com inúmeras outras propostas, o Fórum da Cultura Digital Brasileira é um exemplo de como a democracia pode se beneficiar da inovação
I
A política vaticina que os cem primeiros dias de um presidente são definitivos. É nessa época que o novo governante marca posição e anuncia à sociedade suas prioridades – que, com o avanço e a complexidade da democracia contemporânea, geralmente são baseadas em um programa já apresentado durante o período eleitoral.
Com Barack Obama foi assim. Defensor da comunicação livre e distribuída durante a disputa que o levou à Casa Branca, uma de suas primeiras iniciativas foi reformular o site da presidência americana, licenciando todos os conteúdos produzidos em Creative Commons, um modelo flexível de gestão de direitos autorais desenvolvido na Universidade de Stanford, que permite ao autor definir a utilização de sua produção circulante na internet.
Obama demonstrava ser um presidente inovador, apontando para um governo aberto e transparente, superando o período sombrio que marcou a administração de George W. Bush.
No mundo das redes horizontais, no entanto, a inovação está em toda a parte. E quem realmente criou algo interessante para os cem primeiros dias do governo Obama foi Jim Gilliam, um ativista multimídia, produtor de documentários guerrilheiros da Brave New Films, como Wal-Mart – O Alto Custo do Preço Baixo, dirigido por Robert Greenwald.
Gilliam imaginou como a internet poderia auxiliar no mapeamento dos principais problemas americanos. Valendo-se da abertura proposta por Obama, criou o website White House 2 (Casa Branca 2), no endereço www.whitehouse2.org. No princípio, o site seria justamente para que qualquer americano pudesse elencar os desafios e descrever o que considerava as maiores prioridades para o país. Gilliam esperava constituir uma governança virtual que ofereceria ao presidente Obama um poderoso instrumento de consulta popular.
O site foi ao ar, mas não foi incorporado ao conjunto de estratégias de comunicação do presidente. A proposta continua e, atualmente, é um ambiente em que dez mil norte-americanos debatem as prioridades para o governo atual.
Recupero o exemplo de White House 2, porque ele é a expressão de um modelo de se fazer política propiciado pela rede mundial de computadores. Duas de suas características são extremamente representativas do contexto político atual: 1) White House 2 é um projeto individual e apartidário, que se torna coletivo por meio da interação e da conversação on-line; 2) preocupa-se centralmente em produzir informação aberta e transparente, que subsidie a prática social, não interagindo diretamente com as estruturas de poder da democracia representativa convencional.
II
Aqui, chegamos a um ponto em que uma pausa se faz necessária.
No início dos anos 1990, era certo que a internet superaria os meios eletrônicos de comunicação de massa – ineficazes porque não propiciavam o diálogo – tornando-se o ambiente ideal para a realização da democracia. Autores de diferentes correntes ideológicas passaram a se debruçar sobre o tema da democracia digital. Muita teoria foi produzida. Acreditava-se, por exemplo, que o cidadão teria a possibilidade de votar em qualquer projeto de lei, colocando abaixo o modelo de representação moderno.
A essa coqueluche do início somou-se o fato de que a ciência política também se concentrava com maior intensidade sobre o tema da democracia deliberativa.
Sivaldo Pereira afirma, no artigo Promessas e desafios da deliberação online: traçando o panorama de um debate, que além da “proximidade temporal, a democracia deliberativa e democracia digital possuem também algumas preocupações de fundo em comum que podem ser sintetizadas em dois anseios compartilhados por ambas:
1) minimizar a crise de representatividade que afeta o sistema democrático moderno e
2) utilizar processos mediados de comunicação para este fim.”
Para as esquerdas, até esse momento, questões como participação social nos processos decisórios e a colaboração entre diferentes atores sociais para a construção de políticas públicas não se constituíam como valores inquestionáveis.
Não à toa, a compreensão da importância desses dois pilares para a estruturação de sistemas democráticos é algo recente e constitui-se como foco de disputa entre diferentes correntes de pensamento progressista, algumas delas ainda reféns de um modelo centralizador de planejamento.
Com a chegada da internet, devido principalmente às possibilidades democratizantes por ela abertas, participação e colaboração começam a se diluir e a ser incorporadas ao vocabulário dominante das organizações e movimentos sociais.
Outra palavra que ganha força nesse mesmo contexto é transparência. Esse conceito parte da ideia de que é obrigação de um sistema político democrático prover ao cidadão o maior número de informações, para que assim as decisões possam ser tomadas. Sem transparência, canais de participação e colaboração podem se resumir a um mero artifício para neutralizar conflitos.
Nesses últimos quinze anos, no entanto, o debate concentrou-se mais em teorias e anseios que em ações práticas, a não ser por alguns poucos projetos-piloto. Essa tendência, porém, parece estar se revertendo e a inovação começa a ganhar espaço.
Fim da pausa.
III
Conhecer as iniciativas de democracia digital em curso é uma boa forma de entender o que está em jogo e como esse contexto mutante se configura.
Recentemente, a convite do Google Brasil, do Instituto Overmundo e da Fundação Getúlio Vargas, participei de uma roda de conversa sobre Cidadania Digital, que gerou uma articulação inédita entre atores que vêm militando nesse campo. Não sabemos onde essa confluência nos levará, mas o diálogo já tem sido extremamente enriquecedor.
No documento produzido pelo Instituto Overmundo e pelo Centro de Tecnologias e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas, há um guia bem completo das iniciativas mais importantes em curso atualmente, no Brasil e nos Estados Unidos.
Pinço, para efeito demonstrativo, algumas pelas quais mais me interesso. Prefiro concentrar-me em exemplos brasileiros, como forma de afirmar a nossa inventividade.
O projeto WikiCrimes (http://wikicrimes.org) é um fenômeno mundial. Trata-se de um mashup (uma plataforma híbrida) de dados e mapa. No caso, sobre crimes, informados colaborativamente, pelos cidadãos usuários ou a partir de bases de dados públicas. Essas informações aparecem em um mapa de forma que as pessoas possam visualizar os locais onde há maior incidência de determinada ação ilícita. Os usos s&a
tilde;o muitos. Desde subsidiar secretários de segurança pública até orientar a população a evitar determinados comportamentos em regiões que são reconhecidamente perigosas.
A liderança desse trabalho é do professor Vasco Furtado, que coordena o grupo de Engenharia do Conhecimento da Universidade Federal de Fortaleza. Todo o projeto é desenvolvido dentro dessa instituição, por estudantes que participam do grupo de pesquisa.
Recentemente, alguns deles, sob supervisão de Furtado, lançaram a empresa WikiMaps, que pretende oferecer essa plataforma de integração de informações a quem se interessar por produzir “mapas sociais”.
Um outro projeto que vale nota, surgido recentemente, é o Transparência HackDay, reuniões que aproximam gestores públicos, jornalistas e produtores de informação dos desenvolvedores (os hackers). Nos três últimos meses, foram realizados três encontros, dois deles em São Paulo e um em Brasília. Dessa recombinação de conhecimentos, surgem discussões, mas principalmente aplicativos que têm como objetivo melhorar a democracia e a ação pública (seja uma denúncia, uma reivindicação ou um instrumento de gestão).
O Transparência HackDay é organizado pela empresa Esfera, uma das instituições que integra o coletivo da Casa da Cultura Digital (www.casadaculturadigital.com.br).
Entre os aplicativos surgidos no projeto, o mais interessante e bem-sucedido até agora é o projeto SACSP (http://sacsp.mamulti.com), que integra a um mapa dados sobre o Serviço de Atendimento ao Cidadão de São Paulo.
O SACSP usa dados do site oficial da prefeitura e produz análises instantâneas. Seu sucesso gerou inicialmente reações negativas dentro da empresa municipal de processamento de dados. Logo, no entanto, o desenvolvedor responsável pela plataforma foi chamado para uma conversa e deve ser financiado pela própria empresa para continuar oferecendo esse serviço – que, entre outros méritos, permite ao cidadão ver que não está denunciando sozinho.
IV
Uma nova pausa se faz necessária para digressão.
O exemplo de Obama sempre é lembrado quando o assunto é democracia digital. O atual presidente estadunidense inovou? Sim, sem dúvida. Além do repaginado site da Casa Branca, já lançou outros dois importantes projetos de internet. Entre eles, o Data.gov (http://www.data.gov). Nesse site, o governo torna públicos os dados em formatos livres, que permitem aos cidadãos produzir cruzamentos e gerar novas informações de seu interesse.
Estranho, porém, é a intelectualidade brasileira não ter despertado nem compreendido a liderança de nosso país na era digital. Os estrangeiros já enxergam isso. Prova é a recente entrevista de Alexandre Mathias com Clay Shirky, em O Estado de S.Paulo. Shirky, escritor de Here comes everybody, é um dos autores mais comemorados dos Estados Unidos.
Na conversa com Mathias, ele destaca o papel central do Brasil na incorporação dos valores emergentes da cultura digital. Não fala de técnica, mas de política.
“O Brasil é o primeiro país a se alinhar inteiramente a um modelo de compartilhamento como forma de progresso econômico, cultural e social. E isso aparece em diferentes níveis, desde o mais baixo – como a cultura do funk de favela, que pressupõe o compartilhamento em sua essência – até o mais alto, com o presidente Lula dizendo que prefere soluções open source para os problemas do país. Há outros países que estão se desenvolvendo desta forma, mas nenhum outro está tão à frente quanto o Brasil”, diz Shirky.
O Brasil tem hoje uma das mais vibrantes e bem-sucedidas comunidades de software livre do planeta. Desde o início do governo Lula, ela exerce enorme influência nas políticas, consolidando valores da ideologia hacker no coração de Brasília.
Outro lado dessa mesma moeda é a sociedade brasileira. Os números mostram que o país é pioneiro na adoção de redes de relacionamento on-line, como Orkut, Facebook e Twitter – cujo segundo idioma mais utilizado é o português. É por meio dessas plataformas que a cultura digital se desenvolve, o que levou um dos pioneiros militantes da liberdade na rede, John Perry Barlow, criador da Eletronic Frontier Foundation, a dizer que o Brasil é “a sociedade em rede ideal”.
Obama chegou em 2008. Em 2005 o site do Ministério da Cultura já licenciava seus conteúdos em Creative Commons e em 2006, todos os conteúdos produzidos pela Radiobras, a empresa pública de comunicação, passaram a ser distribuídos por meio dessa licença.
No livro CulturaDigital.BR, o qual organizei com Sérgio Cohn, discutimos esse pioneirismo brasileiro com pensadores de diferentes colorações ideológicas e especialidades. Entre eles, o sociólogo Laymert Garcia dos Santos, autor do livro Politizar as Novas Tecnologias.
“O meu maior problema com o Brasil é que existe uma riqueza enorme e há um déficit de pensamento sobre o potencial dessa cultura nessa nova configuração que a gente vive e, sobretudo, no novo papel que esse país assume nessa redistribuição geopolítica pós-derretimento dos mercados”, afirma dos Santos. “A chamada inteligência brasileira, com raras exceções, ainda não percebeu a mudança evidente que está ocorrendo, nem as possibilidades que estão se abrindo – e isso eu acho gravíssimo do ponto de vista da política. A diferença com relação ao primeiro mundo vai ser a possibilidade de engatar com a cultura daqui, junto com essa tecnologia, fazendo uma outra coisa, que não aquilo que o centro, digamos, que o mundo euro-americano fez”.
Se a intelectualidade brasileira não percebe as mudanças, a classe dirigente parece começar a se deslocar nesse sentido, mesmo que vagarosamente.
Atualmente, três processos em cursos mostram-se determinantes para o que viremos a ser:
1) a política pública para universalizar o acesso à banda larga, que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva promete como ato final de seu governo;
2) a revisão da lei de direitos autorais, incorporando direitos dos usuários, hoje o principal campo de conflito entre a cultura que emerge das redes interconectadas e a velha indústria da intermediação do século XX;
3) a construção de um marco civil, um marco de direitos, dos usuários de internet, proposto pelo Ministério da Justiça.
Esses três elementos articulados resultam em uma conjuntura que pode levar o Brasil a apresentar respostas às mudanças sociais em curso no planeta em uma velocidade incomparável à de outras nações.
Fim
da pausa.
V
Muitos dos projetos de democracia digital, inclusive os citados acima, baseiam-se em um nível de interatividade ainda bastante primitivo. São mecanismos simples de deliberação, em que o cidadão pode escolher entre uma ou outra opção. Ou seja, votar.
Esse é o caso do orçamento público digital de Belo Horizonte (MG). Iniciativa pioneira, o OPDigital da capital mineira permitiu aos cidadãos escolherem uma obra para ser executada pela prefeitura. Foi um plebiscito virtual inédito no mundo.
A proposta do Fórum da Cultura Digital Brasileira, que teve início em junho de 2009 e segue em desenvolvimento é de outra natureza. O que se pretende com esse processo é aprofundar a interatividade e chegar a um instrumento colaborativo de construção de políticas públicas.
O Estado brasileiro, redemocratizado, tem se valido de uma série de mecanismos para garantir que a voz da sociedade se faça diretamente representar no processo de construção das políticas de transformação do país. Dentre tais mecanismos, destacam-se as Conferências Nacionais, realizadas de forma a respeitar o Pacto Federativo (com etapas municipais, estaduais e federal) e servindo como elemento estruturante de políticas setoriais.
Em sua maioria, as conferências estão atreladas a um conselho que é responsável por garantir a implantação das diretrizes traçadas pela sociedade e pela fiscalização das políticas que venham a ser propostas e desenvolvidas.
Além de conferências, outros mecanismos de participação são as consultas públicas (presenciais e virtuais), as audiências públicas, os seminários e os fóruns.
Os fóruns são espaços de discussão, articulação, cooperação e planejamento coletivo, geralmente de caráter consultivo em relação ao poder público, e têm por objetivo reunir diferentes atores de um ou mais segmentos sociais, podendo ser de caráter permanente ou temporário.
O Fórum da Cultura Digital Brasileira se insere nesse rol de iniciativas de participação social, mas se difere de todas elas por utilizar de forma radical a internet em sua metodologia.
Na verdade, o fórum é todo estruturado sobre a plataforma CulturaDigital.BR (www.culturadigital.br), um site de rede social que já conta, em dezembro de 2009, com mais de 3.200 participantes, 160 grupos de discussão e cerca de 300 blogs ativos.
Nessa rede, os cidadãos debatem, de forma aberta e horizontal, questões da era digital.
Em novembro, durante o seminário internacional do Fórum, que tornou presenciais encontros que já vinham ocorrendo no mundo virtual, documentos com diretrizes para políticas de cultura digital foram produzidos e entregues ao Ministro da Cultura, Juca Ferreira.
Em seguida, eles foram devolvidos à plataforma e seguem em discussão.
Para este ano, uma série de novas iniciativas estão sendo elaboradas, entre elas a proposta de criação de uma governança colaborativa para a Cultura Digital, com a constituição de um conselho baseado na rede social CulturaDigital.Br, o qual terá também acento no Conselho Nacional de Políticas Culturais.
Passados os primeiros meses de experiência, é possível afirmar que a principal característica do Fórum da Cultura Digital Brasileira – e isso estava previsto desde o início – é ele ser um espaço de expansão e não de síntese.
Os impactos da tecnologia digital são gigantescos e pouco compreendidos. Há, portanto, a necessidade de encontrar quem são os interlocutores aptos e dispostos a pensar políticas para essa era de transição, sabendo que não estarão em um movimento que tem começo, meio e fim.
*Rodrigo Savazoni é jornalista, realizador multimídia e pesquisador da cultura digital. Foi um dos criadores da Casa da Cultura Digital/SP e da rede CulturaDigital.Br. Mestre pela Universidade Federal do ABC, é autor de “Os Novos Bárbaros – A aventura política do Fora do Eixo”, entre outros livros. Foi Chefe de Gabinete da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo (2013-2014)