Democratas deslumbrados com o Vale do Silício
Desde 2008, as desigualdades sociais não pararam de crescer nos Estados Unidos. Isso porque a administração do presidente Barack Obama, apesar de vender a imagem de quem conseguiu reduzir o desemprego, está mais preocupada com o conforto dos inovadores do Vale do Silício do que com a sorte dos trabalhadores pobresThomas Frank
Em seu discurso sobre o estado da União de 2011, o presidente Barack Obama falou com eloquência do fardo suportado pelos trabalhadores do país, os norte-americanos sem diploma que outrora tinham emprego para a vida toda e naquele momento pagavam caro pela conta da desindustrialização: cidades despedaçadas, vidas arruinadas e salários de fome.
Logicamente, naquele instante do discurso, era de esperar que o autor passasse a detalhar o que pretendia fazer para resolver tal desastre – lançar um programa de apoio ao emprego, por exemplo, ou um dispositivo contra a deslocalização (outsourcing). Em vez disso, o presidente explicou aos trabalhadores que nada podia fazer por eles: “Sim, o mundo mudou. A competição por emprego é uma realidade”. O destino que lhes fora infligido resumia-se a isto: uma “realidade”, ou seja, algo a que não seria razoável não se submeter.
Um pouco depois, nesse mesmo discurso, Obama abordou um assunto mais alegre. Estávamos em 2011, a recessão fora tecnicamente superada, então era o momento de o presidente destacar o programa econômico que deveria marcar o fim de seu primeiro mandato na Casa Branca. Podíamos ter apostado: “inovação”, é disso que o povo precisa. “O primeiro passo para conquistar o futuro”, anunciou, “é estimular a inovação norte-americana.” Neste ponto, nenhum traço de fatalismo ou resignação: o que importa é subsidiar generosamente os empresários inovadores, a fim de “multiplicar o sucesso”. Como todo mundo sabe que a capacidade de inovar está ligada à educação, o presidente instou os estudantes a serem mais ambiciosos e os jovens em geral a redobrar seus esforços para entrar na universidade. Um mês após tal discurso, a Casa Branca voltou a bater na mesma tecla: “O futuro crescimento econômico da América e nossa competitividade internacional dependem de nossa capacidade de inovar”, declarou em comunicado. “Para conquistar o futuro, precisamos inovar, educar e construir melhor que o resto do mundo.”1
Menos polêmico que Wall Street
Pouco a pouco, o lugar antes ocupado no imaginário democrata pelas finanças voltava-se para o Vale do Silício, outra indústria “criativa” cujos bilhões de dólares em lucros aspiravam a nada mais que regar campanhas eleitorais. Mudanças na comitiva do chefe de Estado acompanharam essa reorientação. Em 2014, David Plouffe, arquiteto da ofuscante primeira campanha presidencial de Obama, colocou seus talentos de mago da política a serviço do Uber. No mesmo ano, o porta-voz da Casa Branca, Jay Carney, deixou seu cargo para se juntar à Cable News Network (CNN), antes de embarcar em uma florescente carreira na Amazon, que o fez vice-presidente encarregado das relações com os meios de comunicação e os círculos políticos.
Enquanto isso, em Washington, o presidente criava uma unidade federal para otimizar a presença do governo na internet, graças aos técnicos e mercadores do Vale do Silício. Uma iniciativa logo descrita como “a engenhosa startup de Obama” por jornalistas viciados nas novas tecnologias.2 A proximidade da administração norte-americana com o Vale do Silício nunca levantou controvérsias nem remotamente semelhantes àquelas desencadeadas por sua antiga conivência com Wall Street. Como se os mastodontes das novas tecnologias fossem devotados servos da democracia, seja lá o que eles realmente façam. Como se uma aura de despreocupação juvenil coroasse permanentemente as interações entre a Casa Branca e os senhores da internet.
Vencedores do mundo moderno
Hoje, a prosperidade sem precedentes do Vale do Silício é a demonstração última do mérito da classe liberal progressista. A sociedade pós-industrial foi capaz de valorizar os mais educados, os criadores, engenheiros e cientistas; pôde cobri-los de recompensas econômicas inimagináveis. A história deu seu veredicto, elevando o setor das novas tecnologias muito acima de todos os outros e, junto com ele, os democratas, posicionados há um bom tempo entre os vencedores do mundo moderno.
Quando os democratas cantam seus louvores, é apenas questão de tempo até o momento de se referirem ao Google. Em L’Audace d’espérer [A audácia da esperança], publicado em 2006, Obama conta com entusiasmo sua peregrinação à sede da empresa, quando era senador.3 Uma vez presidente, ele continuou a mencionar o Google em metade de seus discursos sobre o estado da União. Os funcionários da empresa subiram ao pódio dos três doadores mais generosos para sua campanha de 2012. E Eric Schmidt, ex-chief executive officer (CEO) e atual presidente do Conselho de Supervisão do Google, forjou para si um lugar de destaque nos anais do social-liberalismo moderno. Integrou, por exemplo, o Transition Economic Advisory Board (Teab) do presidente e desfilou na tribuna com Obama e seus principais assessores econômicos três dias após a vitória nas eleições de 2008. Durante a campanha de 2012, foi Schmidt que aconselhou o candidato democrata em sua estratégia relacionada aos dados de massa. E, em 2015, quem vemos novamente à frente de uma “startup de tecnologia política”, concebida para proporcionar à candidata Hillary Clinton a nata da nata em matéria de segmentação de eleitores? Schmidt, é claro.4 O 138º homem mais rico do mundo – segundo a Forbes – é o bilionário favorito da centro-esquerda norte-americana.
Convidado em 2014 para o festival de mídias interativas South by Southwest, Schmidt deu-se ao luxo de lamentar a desigualdade abissal que há em cidades como San Francisco, onde o custo de vida ultrapassa cada vez mais os recursos da maioria da população. Sem surpresa, a solução que ele recomendou não foi reduzir a desigualdade, mas “criar mais startups de crescimento rápido”, sendo a inovação o único remédio para todos os males. Todos, insistiu, devem comprometer-se por “mais educação, mais imigração, mais formação de capital, mais espaços criativos, mais espaços autorizados pela regulamentação a serem desregulamentados, de modo que as startups possam efetivamente ali prosperar e nós possamos vencer”.
Já Plouffe, o lendário ex-diretor de campanha de Obama, agora se dedica a vender o aplicativo Uber da mesma forma como em outros tempos vendeu o campeão democrata: como uma solução para a recessão. “Ainda há muita gente que não sente os efeitos da recuperação econômica, muita gente em busca de trabalho”, declamou em 2015, durante um discurso em uma incubadora de empresas, em Washington. Por permitir a qualquer um ganhar a vida dirigindo seu próprio carro, o Uber “traz um benefício cada vez mais importante diante do desafio da estagnação dos salários e do subemprego”.5
Um dos piores modelos de exploração
Na realidade, porém, diversas inovações empresariais unanimemente celebradas não passam de instrumentos concebidos para contornar as regras econômicas e sociais de nossas sociedades. O Uber é o exemplo mais óbvio disso: a maior parte de seus ganhos não vem de seu know-how em matéria de locação de veículos com motorista, mas da maneira como ele escapa da regulamentação local e nacional aplicada à indústria do táxi, sobretudo no que se refere a segurança e seguro – assim como a Airbnb autoriza prestadores e clientes a ignorarem as leis que regem a hotelaria convencional, e a Amazon permite que a maioria de seus consumidores evite o imposto sobre consumo. O gigante das vendas on-line, aliás, explora sua posição dominante no mercado do livro nos Estados Unidos para ditar condições aos editores e infligir represálias àqueles que se recusam a acatar suas regras. O impecável Google age de maneira idêntica com os anunciantes, o que lhe rendeu, em 2012, um inquérito da Comissão Federal do Comércio (FTC), a qual considerou que suas práticas trazem um “prejuízo real aos consumidores e à inovação no mercado de busca e publicidade on-line”. Mas até hoje nem a Amazon nem o Google tiveram de pagar nenhuma multa.
Outra grande declamadora de belos discursos sobre a inovação, a indústria farmacêutica oferece uma variação sobre o mesmo tema. Ela não se cansa de reivindicar o direito de exercer todos os poderes que lhe derem na telha para vender seus produtos – sem isso, argumenta, não será capaz de inovar. Não há inovação sem monopólio; qualquer disputa da mais ínfima de suas prerrogativas a obrigaria a fechar as fábricas.
Eis o insólito nome escolhido pela Amazon para designar seu estoque de empregos precários ocasionais: “Turco Mecânico”.6 Quando uma tarefa não pode ser feita por computadores, ela é confiada a um exército de reservistas que recebe uns trocados. Não haveria melhor introdução à “economia de compartilhamento”, assim chamada porque o trabalhador utiliza seu próprio carro, sua própria moradia e seu próprio computador, para benefício do empregador.7 Essa economia tem sido uma das mais abundantes fontes de emprego dos anos Obama. O sucesso da fórmula está na facilidade com que qualquer um pode registrar-se junto a uma empresa supostamente “de compartilhamento” e tornar-se agradecidamente explorado, como um temporário, enquanto um simples software garante sua relação com o cliente e o empregador. Isso faz qualquer negócio tornar-se o mais digital, inovador e lucrativo possível. Em todos os outros aspectos, porém, trata-se de um dos modelos de exploração de mão de obra mais prejudiciais e assimétricos das últimas décadas. No caso do Uber, os custos e riscos associados à atividade – obrigação de contratar seguro, possuir um veículo, considerar a possibilidade de licença por doença e a perspectiva de aposentadoria etc. – ficam todos a cargo do trabalhador, enquanto o “inovador” californiano que concebeu o software fica com a parte do leão dos ganhos assim gerados. É o “cada um por si” erigido à categoria de estratégia nacional de emprego.
O CEO de uma empresa de financiamento coletivo chamada Crowd Flower apresenta nos seguintes termos a receita milagrosa: “Antes da internet, seria difícil encontrar alguém que trabalhasse para você por dez minutos e pudesse ser demitido passado esse tempo. Mas, graças à tecnologia, agora é possível encontrar essa pessoa, pagar-lhe uma pequena quantia e livrar-se dela quando não precisar mais”.8 Não é de admirar que o CEO que pronunciou tais palavras – um jovem cavalheiro chamado Lukas Biewald – seja doador de Obama.
Se nenhuma das inovações mencionadas é particularmente louvável, convém acrescentar que nenhuma delas era inevitável. O governo poderia facilmente evitar, ou pelo menos minimizar, a forma como evoluíram. Tudo foi feito com a anuência do poder político federal ou dos estados, ou mesmo dentro dele. E quando o Ministério da Justiça descobriu, em 2010, um plano dedicado a limitar os salários dos trabalhadores das novas tecnologias, reagiu mais ou menos da mesma forma como em 2008, diante dos banqueiros que eram “grandes demais para serem presos”: iniciou um processo civil, até arrancar das empresas envolvidas… a promessa de não recomeçarem em um prazo de cinco anos.9
Aqueles com quem não nos aborrecemos
Para muitos democratas, não há por que contrariar os “inovadores”. Eles não dirigem indústrias limpas e virtuosas, indústrias do conhecimento, inclusive instaladas principalmente em estados que apoiam o partido? Esses empresários representam a classe instruída, a classe criativa. Eles são o futuro, ou seja, aqueles com quem não nos aborrecemos.
Como observa Robert Reich, essas mudanças constituem “o ponto culminante de um processo iniciado há trinta anos, quando as grandes empresas começaram a transformar empregados de tempo integral em temporários, terceirizados, independentes e consultores”.10 Trata-se de um legado, não de inovação. Elas não reverteram a tendência das últimas décadas: elas a aceleraram.