O relevante depoimento de Cuca e a sensata avaliação de Milly Lacombe
Qualquer pesquisador ou qualquer ator jurídico que tenha passado pelo sistema de justiça criminal e penitenciário logo chega à racional conclusão de que o direito penal não serve para aquilo a que oficialmente se propõe
Em sua estreia no Athletico Paranaense, Cuca, o técnico, preparou um discurso para além do futebol. Ele reconheceu erros e prometeu atitudes, referindo-se à condenação por ato sexual com menor e coação, anulada pelo Tribunal Regional de Berna-Mittelland, na Suíça, no começo deste ano. Milly Lacombe, jornalista e comentarista, diante desse discurso, defendeu que a punição criminal não deveria ser a única via de combate à violência, uma vez que o fundamental seria o alcance de uma consciência do ato pelo seu autor, implicando em luta contra o machismo.

Trabalhei por mais de uma década como juiz da execução penal. Antes disso, como juiz criminal, julguei milhares de casos, condenando e absolvendo pessoas acusadas de todo tipo de crime, de furtos e roubos a sequestros e latrocínios. Também julguei muitos crimes contra a dignidade sexual e presidi júris que tratavam dos crimes dolosos contra a vida. Até hoje, continuo com dúvidas sobre o fenômeno da violência e mantenho os estudos a respeito.
Faço essa anotação não no intuito de fortalecer argumentos, mas para esclarecer o local de onde falo e o que já testemunhei ao longo de minha trajetória. E começo afirmando: Milly Lacombe não poderia estar mais certa.
Qualquer pesquisador ou qualquer ator jurídico que tenha passado pelo sistema de justiça criminal e penitenciário logo chega à racional conclusão de que o direito penal não serve para aquilo a que oficialmente se propõe, prevenção e redução da violência por meio de penas ou ameaças de penas.
Para a criminologia crítica, a qual me filio, a criminalização de uma pessoa é escolha do Estado, pois é o Estado que diz que determinado ato é crime e que define o que é passível de punição. Só para se ter uma ideia, como a lei em geral é feita por quem tem, contra quem não tem, em uma sociedade que privilegia a propriedade no lugar da dignidade, delitos contra o patrimônio costumam ter penas maiores que delitos contra a pessoa. O roubo de uma aliança, a mão armada, tem pena mínima de 5 anos e 4 meses de reclusão. No entanto, cortar o dedo de uma pessoa, para impingir dor nela, sem se preocupar em levar o anel, caracteriza-se como lesão corporal, cuja pena é de um pouco mais de um ano. Ou seja, em um Estado neoliberal, que segue a cartilha estadunidense, aquela da teoria da janela dos vidros quebrados, da tolerância zero, certamente a população destinatária do Leviatã é a que menos tem e a que não se encaixa nos padrões elitistas eurocêntricos, qual seja, a negra, periférica e vulnerabilizada. É a chamada necropolítica.
Basta frequentar salas de audiências criminais ou entrar em alguma prisão para se constatar empiricamente essa realidade. O direito penal tem um alvo selecionado, cuja cor é preta e a conta bancária é inexistente. E o suplício que se aplica nesses corpos aprisionados remonta às senzalas, indo muito além do que a lei ou a sentença determinaram. Sofrer de dor sem atendimento médico, de fome, de sede, de frio ou calor não está previsto na lei, muito menos um juiz condena alguém a uma pena com essas condições, mas é o que acontece dentro dos muros da prisão. Lá, vive-se ainda no pré-iluminismo, no máximo no século XVIII.
Dia desses tive a oportunidade de visitar a Prisão de Guerra do Castelo de Edimburgo, na Escócia. Como aquela prisão foi recriada e montada para visitantes, não senti que estivesse em um cárcere. Entretanto, lendo mensagens gravadas no percurso, percebi o horror que aquelas paredes por séculos presenciaram. Um dos escritos retratava as celas como sendo “em sua maioria, buracos miseráveis, adequados apenas para receber os piores malfeitores… escuros, longos e estreitos, capazes de admitir pouca luz e ar” (relato das condições da prisão, 1799). Como se vê, o Brasil continua se assemelhando, da pior forma possível, ao horror daquela época.
Em síntese, não há como fugir da inevitável conclusão de que não será pelo direito penal, muito menos pelas degradantes prisões que sempre existiram e, enquanto houver presos, sempre existirão, que se superará a violência.
Então chegamos ao objeto deste breve texto. Como ficam os crimes contra a dignidade sexual e os delitos graves contra a vida, dentre eles o feminicídio? Também são produto da escolha estatal de definir o autor do ato como criminoso para impingir-lhe dor?
Pois bem, antes dessa pergunta, outra deve ser feita: como prevenir e evitar crimes dessa natureza?
A resposta não é simples, mas podemos ter alguns sinais elucidativos. Tratar da violência de gênero e sexual exclusivamente com o direito penal é normaliza-la, é torná-la parte do nosso dia a dia. E não podemos achar normal tamanha violência, não podemos ficar no encalço dela, como se fosse coisa do destino a sua ocorrência. Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente, já disse o filósofo e educador Jiddu Krishnamurti.
A maneira de reduzir crimes dessa natureza é pela educação, por programas e planos de Estado sérios e concretos que contribuam para uma formação ética e humanista das pessoas. Quanto mais os jovens aprenderem sobre igualdade entre homens e mulheres, sobre respeito à orientação sexual e identidade de gênero, menos violência nessa seara ocorrerá.
Por outro lado, sabe-se que o homem é humano, demasiadamente humano (Nietzsche), e que por isso é falho. Mesmo em uma sociedade ideal, cuja cidadania alcança a todos e a igualdade de oportunidades é universalisada, continuam acontecendo atos de violência contra a pessoa, em número muito menor, mas ainda assim continuam, dentre eles o estupro e o feminicídio.
Agora sim a pergunta correta: nos casos de violência sexual e contra a vida, fruto do machismo, qual a resposta que o Estado deve dar? Aí é que está, Milly Lacombe já respondeu! Disse ela: “Essa sanha punitivista também não me agrada. Se me dissessem assim: o Daniel Alves vai ficar um ano preso, mas ele vai sair de lá amplamente reformado. Ele vai sair de lá com toda a consciência do que ele fez, ele vai se implicar na luta. Eu preferiria isso do que ele vai ficar trinta anos preso e ele vai sair de lá se achando um injustiçado”.
Em minhas andanças pelos corredores do cárcere sempre encontrei presos condenados por crimes contra a dignidade sexual e por feminicídio, cujas penas alcançavam 15, 20, 25, 30 anos. Frequentemente, aqueles que tinham cumprido vários anos presos e que por isso caminhavam para o fim da pena, próximos que estavam da progressão de regime ou do livramento condicional, ao me encontrar, contavam dos seus sonhos quando da liberdade, da procura de um lar, constituição de família, diziam que fariam isso e aquilo e que buscariam viver bem, afinal, “a pena pelo seu erro estaria paga”. Com meus botões eu pensava: e a dor das vítimas? Será que essa pena acabaria? Provavelmente não, em muitos casos ela seria eterna.
O que quero dizer com isso não é que a pena de quem comete crime dessa natureza deva ser perpétua, longe disso, pois além de penas de caráter perpétuo não serem permitidas pela Constituição, sou contra a prisão, sou contra o direito penal como fonte de segurança pública, sou praticamente abolicionista – digo “praticamente” porque a Constituição e as nossas leis não são abolicionistas e portanto, penas devem ser aplicadas.
Quando menciono assim que as vítimas pagam um preço alto e permanente pelo ato sofrido, é para consequentemente observar que o condenado pelo crime precisa ser sensibilizado da dor que causou, dos efeitos da sua atitude, deve se colocar no lugar do outro, de forma que introjete em sua consciência que, mesmo não podendo reparar integralmente o dano causado, pode ao menos viver sem repetir esse dano, sem reincidir. Aliás, a Justiça Restaurativa trabalha bem essa questão, a de trazer sensibilização ao autor do fato, diante de uma vítima que precisa ser amparada e acolhida. E mais, a própria Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) estabelece já no seu primeiro artigo que o objetivo da execução penal é efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e, veja, proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado.
Enfim, talvez o importante depoimento público do Cuca, aliado à sensata declaração da Milly Lacombe, contribuam para uma discussão mais ética e – por que não dizer? – serena sobre aquilo que afeta tanto a nossa dignidade, a nossa felicidade, a nossa vida.
João Marcos Buch é autor e desembargador substituto.