Descobrindo um passado que atravessa o presente
A herança do passado autoritário da ditadura militar ainda não foi superada no país e na UFSC. Impedida a prestação de contas a esse passado, ele permanece atravessando o presente e obstruindo o futuro
Na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a história da ditadura militar dizia: não houve fatos marcantes de repressão; reinava paz e cordialidade nas relações entre administração, professores e estudantes; e, graças a esse quase-consenso e ao protagonismo do primeiro reitor, João David Ferreira Lima, que permaneceu 10 anos no cargo, a universidade foi pioneira na Reforma Universitária.
A narrativa foi destrinchada a partir de depoimentos e fontes primárias nos trabalhos da Comissão Memória e Verdade (CMV-UFSC), criada pelo Conselho Universitário, dando continuidade aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em dezembro de 2014. Seu relatório final foi aprovado nesse Conselho, em setembro de 2018.
Fundada em dezembro de 1960, a Universidade de Santa Catarina (USC, à época; UFSC a partir de agosto de 1965) era pequena, com poucos cursos e estudantes. Reunidos em torno da União Catarinense de Estudantes (UCE), eles tinham grande protagonismo, atuando, “sempre com a ideia de fazer alguma coisa para o Brasil”[2], nas campanhas de alfabetização Paulo Freire, nos Centros Populares de Cultura (CPC) e na colaboração com os movimentos sociais.
Após o golpe de 1o de abril de 1964, inaugurou-se uma onda de prisões, demissões e inclusive manifestações de apoio a este. No Estado de Santa Catarina, centenas foram presos nos primeiros dias. No dia 3 de abril, os livros da livraria Anita Garibaldi, considerados marxistas, foram queimados no centro da capital, Florianópolis, num grande auto da fé, encabeçado por professores da USC.
No dia 9, a junta militar decretou o Ato Institucional No 1 (AI-1), suspendendo por seis meses, mediante “investigação sumária”, as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade, podendo haver demissão ou dispensa, aposentadoria, transferência, “desde que tenham atentado contra a segurança do País, o regime democrático e a probidade da administração”. No mesmo dia, o exército invadiu a Universidade de Brasília (UnB) do reitor Anísio Teixeira, ponta de lança da implantação da Reforma Universitária pensada pré-1964 em conjunto com Darcy Ribeiro com o objetivo de “cuidar das causas do atraso do Brasil”.
Passeatas e manifestações de apoio à “revolução”, assim denominada por seus apoiadores, foram organizadas em todo o país. Uma Marcha da Família com Deus pela Liberdade ocorreu em Florianópolis, no dia 17, organizada pela Campanha da Mulher pela Democracia, presidida por uma professora da USC e com discursos de vários professores.
Universidade ‘modelo’
Os primeiros meses depois do golpe são muito representativos da história da USC e mostram a colaboração com o regime de parte dos dirigentes. Apenas o diretor Henrique Stodieck resistiu ao golpe e as suas primeiras medidas, fechando a Faculdade de Direito durante uma semana.
O reitor João David Ferreira Lima (que dá nome ao campus) assumiu o lado da “revolução”, com respaldo ideológico para punir e denunciar estudantes, professores e servidores. No dia 23, o Conselho Universitário cassou o mandato do presidente da Federação dos Estudantes (Francisco Mastela), preso com líderes estudantis, e nomeou uma comissão para analisar a cassação de outros membros, a pedido do reitor. O Conselho também aprovou, por unanimidade, votos de apoio à “revolução”. No dia 27, a USC recebeu o embaixador dos EUA, Lincoln Gordon, um dos articuladores do golpe com setores militares brasileiros.
Em outras universidades, o cenário era diferente. Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o reitor Aluísio Pimenta assumiu atitude de resistência passiva, por entender que o trabalho de repressão, típico da polícia, não lhe competia. Na USC, por sua vez, foi constituída por portaria do reitor, uma Comissão de Inquérito visando atender as demandas do AI-1.
Durante 45 dias, a Comissão promoveu uma intensa varredura sobre professores, estudantes e funcionários, à caça de elementos considerados subversivos. Embasado nos 98 depoimentos colhidos, o relatório final sugeriu vários enquadramentos na Lei de Segurança Nacional e foi encaminhado, em junho de 1964, à Comissão de Investigação da Assembleia Legislativa e aos Inquéritos Policiais Militares (IPMs). Esse trabalho se desenvolveu na mais estreita relação com os setores militares, Marinha e Exercito, e a Secretaria de Segurança, com ampla troca de informações entre eles. A cumplicidade das autoridades da USC com o regime militar se revela ainda em textos nos jornais, discursos inflamados no rádio, eventos comemorativos, formaturas e na Semana da Marinha, por parte do reitor que acabou sendo homenageado pela Marinha, em 1965.
A Lei Suplicy, de 9 de novembro de 1964, atribuiu poderes à administração universitária da USC para fiscalizar as entidades estudantis, censurar discursos de formatura e trotes, vigiar a distribuição de panfletos e jornais, cassar membros do Diretório Central durante a greve sobre a gestão do R.U. e controlar participação nas eleições (tornadas obrigatórias). Em 1965, a Tropa de Choque da Delegacia de Ordem Política e Social se apossou das urnas e prendeu estudantes nas eleições livres do CAXIIF, proibidas pela Secretaria de Segurança, mas autorizadas pelo diretor da Faculdade de Direito.
O quadro estava posto para a UFSC se tornar um modelo. O consultor estadunidense da Reforma Universitária no Brasil, Rudolph Atcon, afirmou em relatório, “ter encontrado em Florianópolis a solução administrativa para as universidades brasileiras”. E concluiu: “Em outras palavras, já é a base de um sistema, que operaria numa universidade tipo empresa privada”. Uma vultosa verba governamental, obtida com apoio dele, permitiu o oferecimento de um Curso de Treinamento e Aperfeiçoamento em Administração Universitária para dirigentes de outras universidades do Brasil e da América Latina. Assim foram os primeiros tempos após o golpe.
Como ter saudades?
Em 1968, movimentos sociais, greves operárias e estudantis recrudesceram apesar da repressão em todo o país. Em Florianópolis, uma forte greve estudantil associou reivindicações sobre a moradia estudantil, contra a Reforma Universitária e pela democratização do país.
Para garrotear o crescimento da contestação ao regime, foi promulgado o AI-5, que suspendeu o habeas corpus e autorizou decretar recesso do Congresso, intervenção e estado de sítio, além de suspender direitos individuais e políticos. O decreto-lei 477, de fevereiro de 1969, definiu infrações disciplinares nas universidades, punições de demissão de professores e funcionários e expulsão de estudantes, valendo para todas as instituições do país.
AI-5 e decreto 477 deram asas às operações de repressão. Listas mensais de estudantes expulsos foram distribuídas pelo MEC, estudantes foram proibidos de participar de eleições, outros foram presos por panfletagem. Prisões arbitrárias e ilegais, humilhações e torturas de presos, desaparecimentos e “suicídios”, perseguições políticas acabaram sendo o lote constante no início dos anos 1970. “A calma e a paz”, como bradada nesses últimos tempos, em particular durante a campanha eleitoral de 2018, se deram a troca do “cale-se” das prisões e dos cemitérios. Como ter saudades?
A partir de 1970, as Assessorias Especiais de Segurança e Informações (AESIs, posteriormente chamadas de ASIs), parte das Divisões de Segurança e Informação (DSI) dos Ministérios Civis, foram os organismos de base da colheita de informações sobre fatos e pessoas consideradas perigosas para o regime, nas instituições subordinadas aos ministérios. O Serviço Nacional de Informações (SNI), criado em 1964, coordenou nacionalmente essas operações. Em Santa Catarina, o governador Antônio Carlos Konder Reis criou a Comunidade Regional de Segurança Interna, com as AESIs dessas instituições no Estado.
Na UFSC, a AESI, criada em fevereiro de 1972, passou a integrar a Estrutura Básica da Reitoria, ao mesmo título que o Gabinete do Reitor e a Procuradoria Geral. Segundo Álvaro Reinaldo de Souza, ex-pró-reitor e ex-procurador da universidade, as informações eram obtidas “por delações nos meios docente, discente (infiltrados profissionais) e de servidores”.
A assessoria da UFSC gerou muito material enviado ao DSI do MEC e aos órgãos de informações militares[3]. Embora as ASIs tivessem sido oficialmente extintas em 1985, no final do período de ditadura, a ASI continuou estranhamente seu trabalho na UFSC, enviando relatórios até 1992. No início dos anos 1980, muito material foi voluntariamente destruído, queimado pelo ex-procurador citado, com aprovação do então reitor, ou jogado no lixo como a pasta intitulada “Assuntos Sigilosos – 1965-1966”, recuperada por um servidor e entregue posteriormente à Comissão.
O controle das atividades dos estudantes recebia ainda nesses tempos aval e apoio da Sub-Reitoria de Assistência e Orientação aos Estudantes, que exercia um controle autoritário e uma pressão constante sobre os alunos e seus diretórios acadêmicos, monitorando movimentações políticas, verbas estudantis, eventos culturais, entre outros. Livros a serem impressos na Imprensa Universitária foram recolhidos, revistas acadêmicas, jornais estudantis e murais foram censurados pela administração.
O controle ideológico das mentes era elemento indispensável para a continuidade do regime. Em setembro de 1969 foi criada a disciplina de Educação Moral e Cívica (EMC), obrigatória nas escolas. Na universidade, passou a se chamar Estudos de Problemas Brasileiros (EPB). Seus objetivos, segundo o decreto que a instituiu, era disseminar “valores tradicionais e conservadores, como defesa da nacionalidade, da pátria, seus símbolos e tradições, seus vultos históricos, assim como a preservação da moral e religiosidade cristãs (incluindo a família)”.
Tais valores correspondiam plenamente àqueles defendidos pelos militares e seus grupos de apoio. Os defensores da “Escola Sem Partido” de hoje são filhos diletos da “Comissão Nacional de Moral e Civismo (CNMC), composta de nove membros de “ilibado caráter e valor cultural” para assessorar o MEC na aprovação dos currículos e do material utilizado. Dois professores da UFSC, respectivamente general e coronel, eram autores de três livros utilizados em várias universidades e escolas de todo o país a partir de 1971.
A “Política Nacional de Segurança e Desenvolvimento”, doutrina do regime militar, precisava se consolidar nos órgãos públicos a partir da formação de quadros. Vários professores e servidores da UFSC seguiram cursos na Escola Superior de Guerra (ESG). Eram escolhidos principalmente entre os que já tinham postos na administração universitária ou com potencial para assumi-los posteriormente.
‘Apesar de você’
Apesar da situação de vigilância, controle ideológico, censura, violência e repressão, a resistência do movimento estudantil foi presente durante a ditadura. Sua reorganização e o surgimento de um movimento docente combativo caracterizaram o final dos anos 1970. A reorganização dos movimentos sociais, as manifestações contra a carestia, as lutas para a democratização e sobretudo pela anistia “ampla, geral e irrestrita”, as greves operárias do início dos anos 1980 e a Campanha pela Direitas de 1984 foram elementos que levaram ao fim do regime autoritário – fim que começou a ser negociado na Lei de Anistia, em 1979. Esta, incompleta e parcial, excluía a investigação e responsabilidade dos agentes públicos que participaram de tortura e assassinatos.
A democratização se concretizou com atraso, após a frustração da Campanha das Diretas Já! e com uma constituinte negociada com avanços em algumas questões e recuos em outros, em particular sobre o papel dos militares na Constituição.
Alega-se que a ditadura no Brasil foi menos violenta que no Chile ou na Argentina, tendo apenas casos isolados e desviantes. Mas, em 2010, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República divulgou que, durante a ditadura, 20 mil brasileiros foram submetidos à tortura, 434 foram mortos ou desaparecidos, 800 presos políticos e 7 mil exilados. Falta ainda contabilizar os índios exterminados, conforme relatório da Comissão chefiada pelo procurador da Justiça Militar, Jader de Figueiredo Correia, a pedido do ministro do interior em 1967.
A violência da ditadura não se mede na quantidade de mortos/desaparecidos/presos/torturados, mas em todos os aspectos que sustentaram a opressão e o profundo desrespeito aos direitos humanos que dominaram este período, para um ou para milhares. Liberados em maio de 2018, documentos da CIA confirmaram que a repressão foi uma política de Estado, com participação direta dos generais-presidentes Médici, Geisel, Figueiredo, no comando dessa política de “execuções sumárias” dos “inimigos do regime”.
E a morte provocada pela ditadura no Brasil não foi somente física. Foi a tentativa de morte da inteligência e da cultura, comprometidas com o desenvolvimento social e cultural, como acontece nos regimes autoritários. Retirou-se o direito de um país pensar e discutir seu futuro. Essa tentativa, presente em graus diferentes durante todo o período e em todo o país, foi menos visível, mais lenta e insidiosa. O relatório da Comissão tentou mostrar um reflexo disto no microcosmo UFSC.
Os depoimentos e documentos encontrados pela Comissão da UFSC confirmaram que vários estudantes, professores e servidores foram vítimas de privação de liberdades e violações dos direitos humanos. E que demissões, não-contratações e perseguições internas políticas e até pessoais foram comuns. Fatos revelados e comprovados pela documentação mostram o papel de espionagem, denúncia, censura e controle ideológico, às vezes assumidos pela própria administração da UFSC.
A herança desse passado autoritário ainda não foi superada no país e na UFSC. Impedida a prestação de contas a esse passado, ele permanece atravessando o presente e obstruindo o futuro. Arbítrio, truculência e violência continuam presentes na história recente da UFSC, a despeito da Autonomia Universitária garantida pela Constituição, em pelo menos duas oportunidades: o chamado Levante do Bosque, de 25 de março de 2014, com a intervenção violenta da tropa de choque da PM a pedido da PF para uma operação que recolheu alguns gramas de maconha; e a Operação Ouvidos Moucos, de 14 de setembro de 2017, com a intervenção envolvendo 105 policiais federais para prender o reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo e alguns professores e servidores, durante investigação sobre suposto desvio de recursos. Destaca-se ainda que, nessas duas oportunidades, a Comunidade Universitária ficou dividida sobre a necessidade de tais intervenções, cisão que se interrompeu brutalmente no dia 2 de outubro, após o choque do suicídio do reitor.
O resgate da memória apresentado pelas Comissões da Memória e Verdade, entre elas a da UFSC, não contém nenhuma mágoa ou desejo de vingança. É uma contribuição à história das pessoas e das instituições, e um contraponto sólido ao esquecimento do passado para que os seus erros possam ser conhecidos, compreendidos e, assim, não repetidos.
*Por Jean-Marie Farines, coordenador da Comissão Memória e Verdade da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) [1]