Devemos temer ou limitar a liberdade de expressão e de imprensa no cenário atual?
Existem sim limitações a estas liberdades, seja como um Direito Humano internacional ou como um Direito Fundamental positivado no país. Mas enquanto a liberdade de imprensa demanda regulação mais rigorosa devido às responsabilidades da prática jornalística, não dá para discutir a fundo a liberdade de expressão se não for caso a caso. Com isso não fica “liberada” a barbárie discursiva, só não se “adianta o carro na frente dos bois” ao se estabelecer censuras prévias.
Os tempos são de recrudescimento das disputas políticas e de ameaças a retrocessos no pensamento e nas instituições democráticas.
Em um contexto altamente midiatizado destas tensões, vemos ressurgir quase diariamente nas esferas pública e política, questões e problemas que são potencializados principalmente pela estrutura e modelo de comunicação implantados no país, assim como pela ampla popularização do acesso ao universo digital e a exponencial propagação de conteúdo através das redes sociais.
Não tem sido raro a tônica do discurso e de algumas ações ultrapassarem limites éticos razoavelmente acordados e aceitos e atingirem o patamar de incontestável agressão à dignidade humana. Para além das agressivas manifestações individuais no ambiente virtual, a violência discursiva somada a um comportamento intolerante à diversidade tem tomado corpo e ganhado espaço na vida social do país.
Cada vez mais vemos figuras públicas prescindindo do decoro e sem pudor algum propagando discursos de ódio, fazendo coro com uma preocupante audiência em sintonia com sua intolerância. Algumas destas manifestações podem inclusive ser tipificadas criminalmente de acordo com o código penal, o que não é o caso a ser aprofundado nesta análise, e sim a permissividade e liberdade com que se tem feito esses discursos públicos na contramão do que é defendido como respeito à dignidade nas cartas internacionais de Direitos Humanos e na Constituição.
Na mesma linha do que poderíamos caracterizar como abuso da liberdade de expressão estão as chamadas fake news, notícias deliberadamente falsas e propagadas geralmente com interesses políticos, tendo como uma de suas consequências derivativas a destruição de reputações, agressão à honra e obtenção de apoio ou de rejeição para determinada causa de maneira ardilosa e sem escrúpulos. O alcance desta modalidade de produção e difusão de conteúdo tem sido realmente assustador.
Outro ponto preocupante tem sido o ativismo indevido de agentes públicos em consórcio com a grande mídia ao se publicizar seletivamente conteúdos sigilosos e espetacularizar processos judiciais. Garantias básicas como o amplo direito à defesa, presunção de inocência, não exposição pública vexatória e sigilo telefônico foram violadas como expediente em famosos casos recentes no país sob o manto de um alegado direito intocável da liberdade de expressão e de imprensa.
Estas questões dentro da crítica conjuntura têm nos colocado diante de uma situação em que somos política e moralmente instados a revisar e refletir muitos pretensos consensos e nos posicionar.
Os dois direitos mencionados acima são posicionados centralmente nas democracias modernas desde seu surgimento e têm acompanhado o desenvolvimento destas em diferentes períodos. Muito já se afirmou que sua presença, prevalência ou ausência se caracterizam como um termômetro da saúde democrática. Temas com escala e abrangência diferentes e que muitas vezes acabam equivocadamente confundidos como um só, já que a liberdade de expressão é maior que a liberdade de imprensa e pode englobá-la em seu alcance, podendo mesmo ser efetivada e materializada por esta última, mas não só por ela, fato é que estas duas referidas conquistas estão postas à prova em seu exercício pleno e supostamente incontido.
Na esteira destas observações introdutórias, cabe-nos perguntar de maneira aberta e franca, sem a pretensão de assumir uma postura de isenção e ao mesmo tempo reconhecendo receios próprios de quem acredita que os direitos devem avançar e não retroceder, se existem ou deveriam existir limitações claras e objetivas às liberdades de expressão e de imprensa. O que dizem os documentos internacionais e a Constituição sobre isso? Existem limites para estas liberdades? Devemos temê-las? O que podemos fazer no atual contexto histórico?
Abaixo seguem algumas interpretações sobre estas questões.
DUDH, Pacto de San José e Constituição de 1988
Começando a incursão pelo que existe de baliza para o tema, encontramos no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) a seguinte redação:
Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
Bem, a DUDH é um documento de 1948, um período que vivia ainda a intensidade traumática do pós-guerra, foi redigido em um processo permeado por disputas políticas e tensões de um mundo que se encontrava declaradamente dividido e que, ponto a ponto, cada parte buscava imprimir sua perspectiva sobre os direitos ali defendidos. Neste tema específico, e de uma forma geral na maior parte da Declaração, prevaleceu a tradição liberal com a força das garantias individuais e civis, algo que só seria mais fortemente contrabalanceado com os Pactos de 1966 e subsequentes encontros e conferências da Organização das Nações Unidas e seus distintos organismos.
Como pode ser visto no artigo em questão, o foco beneficiário do direito é o indivíduo, fica declarado que a liberdade de expressão e opinião deve ser resguardada para cada pessoa sem interferência, uma mensagem direcionada às possíveis pressões coletivas e tentações opressoras dos ocupantes do poder e da máquina monumental do Estado.
É inquestionável a importância deste artigo, mas ele deixa lacunas relativas a possíveis abusos que culminem na violação de outros direitos, tanto de outros indivíduos quanto coletivos, e consequentemente da noção advogada de dignidade humana, além da impressão de ter sido formulado sem a preocupação de se inter-relacionar com o amplo rol de direitos coexistentes, algo melhor trabalhado e declarado na chamada Conferência de Viena em 1993 (universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos) e demais encontros dos organismos da ONU.
Cabe destacar a limitação da noção vaga e abstrata do direito de “receber e transmitir” informações, o que não necessariamente coincide com o estabelecimento de uma forma digna e dialógica de comunicação, como nos lembra a tradição freireana, sem qualquer referência à desigual correlação de forças entre os indivíduos, minorias e pequenos grupos diante dos grandes conglomerados privados ou estatais de mídia (e em 1948 eles já eram bastante presentes).
Já a Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, é mais detalhada no que diz respeito a algumas restrições à liberdade de expressão, apresentando alguns aparentes dilemas ou mesmo contradições.
Em seu artigo 13, que versa sobre esse tema, apresenta em seu primeiro inciso uma redação muito próxima do artigo 19 da DUDH, mas avança em possibilidades de restrições a partir do segundo inciso, que diz que “o exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores”, ou seja, advoga-se o recurso de responsabilização, devendo se estabelecer consequências por possíveis abusos da liberdade de expressão, como aponta o restante do texto ao afirmar que “devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar: a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas”.
O inciso 3o deste mesmo artigo afirma:
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.
Interessante observar o alcance deste tipo de documento quando há vontade e interesse para tal. Foi recorrendo a este artigo do Pacto de San José da Costa Rica como base referencial que o Supremo Tribunal Federal julgou em 2009 como inconstitucional a exigência do diploma de jornalismo e registro profissional no Ministério do Trabalho como condição para o exercício da profissão de jornalista, por compreender que isso poderia ferir a liberdade de imprensa e contrariar o direito à livre manifestação do pensamento.
A aparente contradição e dilema apontados acima no texto emergem no inciso 4 desta Convenção, quando diz que a “lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2”. É dizer em outros contornos que o documento não aprova censura prévia mas, se houver lei que zele pela moral pública e pela proteção de crianças e adolescentes, abre-se a exceção.
O problema surge quando essa suposta exceção ameaça ganhar amplitude por disputas político-ideológicas e age na vida social por convicções de agentes públicos ou grupos de influência na esfera pública, como vimos no período recente, para fixarmos um exemplo no Brasil, nas polêmicas envolvendo performances e exposições artísticas acusadas de pedofilia.
E pra finalizar o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos em diálogo com nossa atual conjuntura política conflituosa no país, temos a indicação no inciso 5o que a “lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”.
Esta parece ser uma declaração evocada apenas por conveniência pela magistratura brasileira em suas decisões, visto que os dias correntes no Brasil demandam um cuidado especial neste ponto, em especial pela crescente hostilidade e pelo resultado do racismo estrutural instituído no país que tem culminado em um verdadeiro extermínio de uma parte específica da sociedade nacional, a população negra, que ainda sofre com manifestações de ódio e discriminação, como ficou patente no caso do recente assassinato da vereadora carioca Marielle Franco.
E finalmente a abordagem presente na Constituição Federal de 1988 para a questão. Na parte que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, reza o seguinte trecho no artigo 5 – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”:
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
Note-se que a parte que trata da liberdade de expressão e que vem no artigo 5 quando se inicia o Título II, o dos Direitos e Garantias Fundamentais, e que o Título I, que se inicia com o artigo 1 e que trata dos Princípios Fundamentais, atuam de maneira complementar, mas que há uma primazia nos princípios e fundamentos da República Federativa do Brasil ao deixar claro que se tem como objetivo assegurar, dentre outras coisas, a cidadania (inciso II), a dignidade da pessoa humana (III) e o pluralismo político (V). Então em tese aquele direito, ou qualquer outro, não podem ou não deveriam desrespeitar ou agredir estes fundamentos. Isso pode ser compreendido como uma restrição, qual seja, a de que não se pode lançar mão da liberdade de pensamento e expressão com o fim de violar estes princípios.
Outra restrição já está dada na própria redação do inciso IV do artigo 5, a de que é vedado o anonimato. Aqui temos outro dilema e desafio, visto que o anonimato possibilita situações distintas e mesmo antagônicas, como é o caso de denúncias anônimas (públicas ou judicializadas) que buscam resguardar vidas ameaçadas ou publicizar questões que envolvem riscos a outrem, e por outro lado o anonimato, com destaque aos meios digitais, que tem servido para o exercício desmedido de injúria e ofensas, além de garantir que indivíduos e grupos produzam e propaguem notícias falsas com objetivos escusos sem confrontar as consequências por estes atos.
O inciso IX, que objetiva condenar a censura prévia e que busca garantir a não necessidade de licença para as atividades intelectual, artística, científica e de comunicação, precisa ser observado com um olhar mais atento nesta última categoria, em especial articulando a leitura com os artigos 220 e 221 do mesmo texto constitucional. Antes, porém, não podemos saltar o inciso XII do artigo que estamos abordando, por se tratar de trecho de acontecimento já levantado nesta análise.
A Constituição descreve neste inciso o direito e a garantia à privacidade e o resguardo sigiloso de comunicações como uma forma de evitar a exposição imprópria e assegurar a devida defesa legal e salvaguarda da honra dos cidadãos e cidadãs, estando sob investigação judicial ou não. A ressalva se dá quando, através de ordem judicial e amparado por lei, é permitida a quebra deste sigilo para finalidade de investigação criminal ou instrução processual penal. A quebra desta regra pode se constituir um abuso de autoridade, como ficou demonstrado no notório caso que foi potencializado pelo ativismo de um agente público com grande visibilidade na mídia que, ao promover ação fora de sua competência na divulgação de gravação telefônica dos ex-presidentes Dilma Rousseff, que se encontrava ainda no cargo, e Lula, transformou em espetáculo ao tornar público um diálogo privado que deveria constar no referido processo judicial que estava instaurado.
Isso nos chama a atenção para o outro ponto das questões levantadas aqui, que é a liberdade de imprensa e sua responsabilidade social. Aqui é importante reforçar mais uma vez a distinção entre liberdade de imprensa e liberdade de expressão. Os meios de comunicação são indubitavelmente importantes nas sociedades democráticas em que vivemos e cumprem funções primordiais de socialização de informações e estabelecimento de debates na esfera pública, mas não estão autorizados a tergiversar o conjunto de leis, regras e contratos sociais que amalgamam nossa sociedade. Não podem promover ações e discursos deliberadamente inconstitucionais se valendo do argumento da liberdade de expressão. Como foi apontado acima, existem outros princípios e fundamentos que precisam ser assegurados.
Mesmo com o advento da internet e a proliferação polifônica de fontes neste mundo altamente conectado, a grande mídia e seus agentes ainda ostentam grande poder de influência e formação de opinião pública sobre determinados temas e agendas. Com o lastro social do jornalismo, as informações veiculadas pelos grandes meios de comunicação ganham peso de “verdade” e graças ao seu grande alcance e estrutura vertical e unidirecional, as notícias atingem escalas quase sempre incontornáveis e sem direito a problematizações ou questionamentos com a mesma proporção e equivalência.
E precisamos lembrar o perfil histórico e estrutural pouco democrático e plural do sistema de mídia implantado no país. Isso vale como um alerta antes de qualquer defesa abstrata e descolada da realidade nacional em prol da irrestrita e incontrolável liberdade de imprensa e expressão para os grandes meios de comunicação.
Já abordei esta questão em outras oportunidades e aqui resgato um trecho de minha pesquisa no mestrado[1], onde pude afirmar que “constata-se a consolidação no país de um sistema midiático historicamente caracterizado como oligopólico, vertical, com um modelo de exploração predominantemente comercial e concentrado nas mãos de poucos grupos empresariais ou famílias. Esta realidade efetivou-se a partir de estreitos vínculos políticos com os governos e poderes instituídos, recorrendo-se a práticas como o coronelismo eletrônico e a propriedade cruzada dos meios, produzindo um modelo de comunicação no país praticamente inacessível, pouco plural, imbricado em articulações políticas e com muitos traços autoritários, insistente e estrategicamente tratados sob signos democráticos de legitimação”.
Diante desta realidade midiática nacional, soa como inocência ou cinismo afirmar que apenas o “controle remoto” pode e deve regular os meios de comunicação, como se houvesse correlação de forças equiparáveis entre o meio midiático privado empresarial e as minorias e demais grupos excluídos da população, como os povos indígenas e a população periférica negra.
Essa abordagem nos remete aos já anunciados artigos 220 e 221 da Constituição, que versam sobre a Comunicação Social. O artigo 220 apresenta a seguinte redação – “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. E seguem os seguintes parágrafos (selecionados):
1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
5º Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.
6º A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade.
Como pode ser visto, o parágrafo quinto já aponta o quanto “letra morta” pode ser este artigo, e que o simples apontamento na Constituição não gera ou garante a efetivação de nenhuma política ou arranjo estrutural que assegure situações de Justiça, no caso, no campo da Comunicação Social.
Esse e outros pontos nos conduzem à reflexão do que vem a ser a Constituição. Muitas vezes nos esquecemos que o texto constituinte é fruto de processos e disputas inscritas no tempo e que ainda estão postas. A Constituição não é um monolito, é antes reflexo de um arranjo político e temporal, e não custa lembrar que a de 1988 é a sétima do Brasil. O que ficou inscrito a partir da última constituinte é fruto de negociações e acordos possíveis em meio a muitas pressões de diferentes forças e interesses políticos. Isso não tira seu valor e validade, apenas desvela o que está em jogo e que o processo democrático é algo vivo e não obstante desigual em sua efetiva participação, já que os partidários do pensamento hegemônico e do poder econômico acabam por imprimir mais seus desejos que os grupos hipo-representados na democracia representativa vigente.
Já em relação ao segundo parágrafo do artigo 220, o que não é dito é mais importante do que está ali afirmado para a análise aqui empreendida. Quando se diz que é vedada toda e qualquer censura política e ideológica no âmbito da Comunicação Social, não fica claro que ela é estruturalmente aceita e efetivada, pois como já foi dito, algumas poucas famílias e grupos controlam os grandes meios de comunicação no país e compartilham sem muitas contradições perspectivas ideológicas semelhantes. Então não é difícil imaginar quais leituras serão privilegiadas em um ambiente quase sem controle governamental. Sobressai a visão do “patrão” e dos investidores em detrimento da pluralidade.
Isso nos remete ao último trecho analisado aqui, o artigo 221, que ao tratar do conteúdo esperado nas concessões públicas de rádio e TV, aponta que a “produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios”:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
Estes incisos foram destacados como apontamento de que existe delineamento constitucional sobre o que se espera prioritariamente como resultado das concessões públicas de rádio e TV. Assim, cobranças que caminhem neste sentido não deveriam ser encaradas como desejo ou instauração de censura, como foi o caso da queda de braço travada pela mídia e setores conservadores nacionais contrários aos pontos que defendiam uma efetiva promoção e respeito aos Direitos Humanos nos meios de comunicação no Programa Nacional de Direitos Humanos em sua terceira edição (PNDH 3). No caso, venceu a mídia, que conseguiu neutralizar ou suprimir propostas que relacionavam respeito aos DH como condição para outorga e renovação das concessões, além de outras ações programáticas, usando como fundamentação a liberdade de expressão.
Alguns apontamentos sobre estas liberdades, direitos e o cenário atual
Vimos acima o que dois importantes documentos internacionais relativos aos Direitos Humanos abordam em seus respectivos artigos sobre o tema da liberdade de expressão. No Pacto de San José da Costa Rica emerge a questão da imprensa, sendo que esse acordo internacional serviu como referência inclusive para decisão do STF sobre o livre exercício da prática jornalística sem a necessidade de diploma no país.
Também passamos pelos artigos 5, 220 e 221 da Constituição Federal, articulando quando foi necessário com a parte dos princípios fundamentais. Nestas passagens do texto constitucional brasileiro pudemos observar o que está escrito em relação aos direitos e garantias fundamentais no que tange à questão da liberdade de expressão, de imprensa, o que é apontado como papel e responsabilidade da Comunicação Social e possíveis interpretações de dilemas e contradições.
Agora resta buscar responder as demais questões levantadas no início deste texto.
Sobre se existem ou deveriam existir limitações claras e objetivas às liberdades de expressão e de imprensa, a resposta precisa ser cuidadosa. A princípio pode-se afirmar que existem sim limitações a estas liberdades, seja como um Direito Humano internacional ou como um Direito Fundamental positivado no país, pegando emprestado esta categorização de Fábio Konder Comparato. Lembrando que não se pode confundir os dois direitos, sendo que a liberdade de imprensa demanda regulação mais rigorosa e criteriosa devido às responsabilidades da prática jornalística, do exercício da imprensa como um todo e a influência econômica neste campo.
Sobre a liberdade de expressão, não há como reconhecer uma restrição clara e objetiva com efeito erga omnes sem cair em uma castradora e improdutiva abstração. Claro que existem regras que asseguram garantias, princípios e fundamentos, mas não dá pra ir a fundo nisso se não for caso a caso, analisar a questão concreta. Com isso não fica “liberada” a barbárie discursiva, só não se “adianta o carro na frente dos bois” ao se estabelecer censuras prévias.
Isso desloca a responsabilidade para outros campos complementares a uma formação cidadã, como a educação em Direitos Humanos e disciplinas que potencializem leituras críticas da sociedade e suas partes constituintes, como a mídia[2].
Não devemos temer a liberdade de expressão, mas enfrentar as questões que ela traz à tona com o zelo e profundidade demandada. Se manifestações fascistas ou racistas se proliferam, o maior problema não é o fato delas serem pronunciadas com certa permissividade, mas antes o seu núcleo de formulação e propagação, a sua possibilidade política, psicológica, econômica e social de ser gerada e expandida. Obviamente devemos combater injúrias racistas assim como agressões machistas e intolerantes, com o cuidado constante de não nos deixarmos seduzir pelo jogo infinito da judicialização, e não só enfrentando estas mazelas em sua etapa de pronúncia ou verbalização pública, mas no enfrentamento estrutural das causas, no combate ao racismo e machismo imbricados estruturalmente em nossa sociedade.
Se a correlação de forças não é favorável e os Direitos Humanos estão sob constante ataque na atual conjuntura, não é com outro erro que a situação será remediada e resolvida, podendo inclusive se agravar com uma provável apropriação conservadora da pauta de possíveis restrições à liberdade de expressão, o que a História nos mostra o quão terrível pode ser.
Sobre os conteúdos intencionalmente falsos, as famigeradas e propaladas fake news, precisamos enfrentar enquanto sociedade tanto no campo jurídico, tecnológico quanto na geração qualificada de conteúdos outros e sua difusão pelos meios disponíveis. Só responsabilizar legalmente os geradores destes conteúdos não basta, já que uma parte considerável da população que compartilha este material provavelmente continuará fazendo-o. Precisamos de novos pactos, novas bases de diálogo e construção de acordos para uma formação humanizadora. Como já pincelado acima, só a positivação de regras não resolve, essa disputa se dá fortemente também na esfera cultural e na transformação da estrutura econômica que perpetua desigualdades.
O atual cenário político e social é assustador em sua agressividade e polarização, mas isso não pode arrefecer a luta por garantia de conquistas históricas ou a possibilidade de avanços. No campo da liberdade de imprensa / direito à comunicação, precisamos retomar urgentemente as pautas encampadas e construídas coletivamente no PNDH 3, retomar fôlego em campanhas como a do Projeto de Lei da Mídia Democrática, intensificar ações e processos no sentido de democratizar a comunicação no país e proliferar iniciativas tanto de formação crítica em mídia livre, quanto de organização de grupos e coletivos em contextos participativos, plurais e populares.
Por fim, deixo aberta a questão sobre nossos limites às agressões perpetradas em ambientes de muita hostilidade, agressividade pública e mesmo extermínio de nossos melhores quadros. Tentei lançar luz sobre alguns pontos pretendidos, mas não me arrisco a ousar apontar respostas a estes limites, pois eles variam muito em contextos distintos, como o da vida em favelas e bairros de classe média, e o das respostas em espaços universitários ou em chãos de fábrica ou da construção civil.
Qualquer discussão sobre liberdades e direitos só tem sentido se for para assegurar garantias, construir possibilidades de avanços ou servir de esperança de dias melhores para todos e todas.
*Diego Mendonça é educador popular e mestre em Direitos Humanos pela UnB