Direito à segurança pública no Brasil: avanços e desafios na perspectiva da segurança cidadã
A crescente criminalidade violenta não foi capaz de impedir a consolidação democrática e a legitimação do imaginário de cidadania e direitos que lhe é inerente. Dessa forma, violência e democracia expandiram-se de maneira interligada, complexa e paradoxalPablo Lira
O relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (United Nations Office on Drugs and Crime – UNODC) intitulado “Estudo Global sobre Homicídio”, com base em dados de 2012, destacou o Brasil como um dos países mais violentos do mundo. No contexto da América Latina, região que registrou os mais altos índices de assassinatos, o país apresentou uma taxa de 29 homicídios por 100 mil habitantes, sendo superado somente por Honduras (90,4), Venezuela (53,7), Belize (44,7), El Salvador (41,2), Guatemala (39,9) e Colômbia (30,8). Em situação menos crítica na região estão países como México (21,5), Costa Rica (8,9), Uruguai (7,9), Argentina (5,5) e Chile (3,1).
A taxa de homicídio possibilita a comparação de unidades geográficas (continentes, países, estados etc.) com diferentes magnitudes populacionais, porém essas áreas devem apresentar certo grau de semelhança demográfica. Sua polaridade indica que quanto maior a taxa de homicídio registrada, menor é o grau de segurança da população analisada. Pode ser encarada como um indicador de desenvolvimento, sob o ponto de vista da segurança pública. A Organização Mundial da Saúde (OMS) sinaliza como toleráveis taxas abaixo de 10 homicídios por 100 mil habitantes. A taxa de homicídios brasileira é 3 vezes superior ao referido parâmetro.
Além do destaque do citado indicador, o Brasil computou o maior número absoluto de homicídios do mundo. Foram registrados aproximadamente meio milhão de assassinatos entre as nações pesquisadas pelo UNODC em 2012. Somente o país evidenciou mais de 50 mil homicídios no mesmo ano, representando cerca de 11% do total de mortes relatadas pelo UNODC. Vale lembrar que o Brasil tem menos de 3% da população mundial.
A questão dos homicídios brasileiros não é um problema recente. Os altos níveis dos indicadores de homicídios vêm sendo retratados em diversos estudos e pesquisas de projeção internacional há algumas décadas, o que revela a tendência de aumento dos assassinatos no país a partir da década de 1980, quando nossa taxa de homicídios era de 11,7 mortes por 100 mil habitantes.
Buscando compreender o contexto no qual se observou o início da escalada dos homicídios, não se pode perder de vista alguns marcos históricos que influenciaram o recente desenvolvimento político-institucional, econômico e social do país. Segundo Muniz e Zacchi (2005), por mais que o processo constituinte de 1987/1988 tenha incorporado a declaração e garantias fundamentais e introduzido o paradigma da segurança como preservação da ordem pública e serviço de caráter civil, distinguindo-se das diretrizes de defesa nacional, a característica marcante daquele período foi de permanência das estruturas e práticas institucionais do passado. O arcabouço institucional e legal das agências policiais e as divisões de competências entre elas foram preservadas, assim como também ocorreu com a localização da segurança pública na estrutura do pacto federativo, mantendo assim o desenho dado pelo regime militar em 1969. Complementando essa análise, Muniz e Zacchi (2005) acrescentam que na referida época não foram criadas novas instâncias e novos mecanismos de controle e participação social.
A Constituição de 1988 marca o ápice do movimento de abertura política e redemocratização. Sua promulgação ocorre quando afloravam as reivindicações sociais pela busca da ratificação da garantia dos direitos humanos e da gestão democrática das políticas públicas. Todavia insta salientar que a hermenêutica da Constituição Democrática permitiu se estabelecer uma espécie de dubiedade no que se refere à temática da segurança pública.
No artigo 144 da Constituição de 1988, a segurança pública se insere como “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” (grifo nosso). Por mais de dez anos, de maneira geral, o entendimento sobre o referido artigo se reduziu, unicamente, à compreensão de “Estado”, como unidade da federação, e sua suposta exclusividade na responsabilidade sobre a segurança pública. Concomitantemente, o conteúdo essencial que constrói o artigo 144 foi praticamente negligenciado, como se existisse um grande bloqueio impedindo conceber a segurança pública como “direito e responsabilidade de todos”.
Essa interpretação contribuiu para a construção social reducionista de que a “segurança pública é um problema de polícia”. Tal lógica se perpetuou ao longo da década de 1990, virada do século e até hoje mantém seus resquícios no entendimento popular brasileiro.
As questões relativas à permanência das estruturas e práticas institucionais do passado, bem como a incapacidade de estabelecimento de uma agenda bem definida de ações estruturais e sistêmicas para a segurança pública talvez permitam compreender o aumento da violência, traduzida pelos homicídios, na década de 1990. Peralva (2000) corrobora que o processo de retorno à democracia dos anos subsequentes à década de 1980, ou seja, após o fim do regime ditatorial, ocorreu, paradoxalmente, com uma intensificação sem precedentes da criminalidade violenta.
Nessa lógica, Caldeira (2002) também pondera que contraditoriamente, nas últimas décadas, tanto a violência como a democracia se enraizaram no Brasil sem que uma tenha conseguido ser um freio para a outra. De acordo com esta última autora, as instituições da ordem – a polícia e o sistema judiciário – foram incapazes de garantir à população segurança pública e padrões mínimos de justiça e respeito aos direitos. Em contrapartida, a crescente criminalidade violenta não foi capaz de impedir a consolidação democrática e a legitimação do imaginário de cidadania e direitos que lhe é inerente. Dessa forma, violência e democracia expandiram-se de maneira interligada, complexa e paradoxal.
Cabe ressaltar que a criminalidade violenta encontrou na cidade brasileira, produto dos processos de transição econômica e demográfica da metade do século XX, o seu palco privilegiado. O que permite assumir o caráter predominante da criminalidade violenta urbana. A criminalidade violenta está essencialmente concentrada nas áreas urbanas. Usualmente, sabe-se que violências de todos os aspectos e motivos também ocorrem nas zonas rurais. Entretanto, são nas cidades e metrópoles que os desentendimentos interpessoais aparecem com maior vigor, talvez pela própria estrutura centralizadora e concentradora que o meio urbano apresenta.
No início dos anos 1990, o país ainda vivia um cenário de adversidade macroeconômica, por conta da deterioração do modelo de desenvolvimento, baixo crescimento econômico, instabilidade monetária, hiperinflação e elevação da dívida externa. Em certa medida, essas questões ocupavam quase a totalidade do debate político e da opinião pública. Ao mesmo tempo, problemas sociais, como o aumento das desigualdades, elevação do desemprego e degradação urbana, passavam por um aprofundamento.
Na segunda metade daquela década, a elevação das taxas de homicídios, sobretudo, nas cidades e regiões metropolitanas, contribuiu para que ocorresse uma maior mobilização e pressão por parte da opinião pública frente ao problema da criminalidade violenta. Fatos marcantes, dentre os quais se destacaram o massacre do Carandiru em 1992 em São Paulo, quando mais de cem internos rebelados foram executados em uma operação policial, e as chacinas de Vigário Geral (1993) e da Praça da Candelária (1994) que ocorreram no Rio de Janeiro, influenciaram a formação de uma conscientização por parte da sociedade em relação à gravidade da escalada da violência urbana (MUNIZ; ZACCHI; 2005).
O Estado, em nível federal, começou a planejar e colocar em prática algumas ações importantes sob o ponto de vista de gestão e de instrumentos de suporte ao desenvolvimento de políticas públicas de segurança, a saber, a criação da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) em 1997, a concepção do Plano Nacional de Segurança Pública em 2000 e a constituição do Fundo Nacional de Segurança Pública em 2001.
Nos anos 2000, o modelo de segurança, fundamentado na preservação da ordem pública, serviço de caráter civil e gestão democrática, “direito e responsabilidade de todos”, revelou ser possível. São exemplos disso a Campanha Nacional de Desarmamento de 2003/2004 e a Conferência Nacional de Segurança Pública (CONSEG) de 2009. Esta última favoreceu uma maior participação da sociedade nos debates sobre os princípios e diretrizes orientados pelos seguintes eixos temáticos: Gestão democrática: controle social e externo, integração e federalismo; Financiamento e gestão da política pública de segurança; Valorização profissional e otimização das condições de trabalho; Repressão qualificada da criminalidade; Prevenção social do crime e das violências e construção da cultura de paz; Diretrizes para o sistema penitenciário.
Em 2007, o governo federal instituiu o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), que conjugava ações, como o Projeto de Jovens em Território Vulnerável (Protejo) e o Projeto Mulheres da Paz, com foco na prevenção, controle e repressão da criminalidade urbana violenta, estabelecendo políticas sociais e ações de proteção às vítimas. A seleção das localidades atendidas pelo Pronasci, chamadas de “territórios da paz”, obedeceu critérios da estatística e análise criminal que evidenciavam esses espaços como mais vulneráveis às violências letais.
Apesar de favorecerem a recente transformação do paradigma de segurança pública do país, experiências positivas como o Pronasci ainda sucumbem frente ao problema da descontinuidade das políticas públicas. A população brasileira e em especial os moradores dos “territórios da paz” observaram na transição do governo federal, pós-eleições de 2010, o esvaziamento do Pronasci.
Por mais que algumas dessas iniciativas não surtissem efeitos imediatos, ou até mesmo sofressem com a descontinuidade e o desmantelamento, como observado no caso do Pronasci, elas foram relevantes para possibilitar o estabelecimento de uma estrutura necessária para a formação de uma cultura gerencial no campo da segurança pública, que se desdobrou no nível das unidades da federação (SILVEIRA NETO et al., 2010).
O caso de São Paulo é um exemplo que se destaca. Este estado vem registrando sucessivas reduções nas suas taxas anuais de homicídios desde 1999, quando ocorreram 44 assassinatos por 100 mil habitantes. Em 2005 essa taxa foi de 21,6 homicídios por grupo de 100 mil habitantes. No ano de 2013, tal indicador chegou a 13,5 assassinatos por 100 mil habitantes. Por mais que ainda não exista consenso sobre as causas da redução dos homicídios de São Paulo, os seguintes fatores são apontados como explicações parciais para entender a redução percebida em São Paulo: aumento do número de homicidas focalizados pelo Plano de Combate aos Homicídios, fortalecimento das agências policiais, introdução de projetos de tecnologia e inteligência policial (Infocrim e Fotocrim). Autores como Mello e Schneider (2007) ponderam que algumas dessas ações podem ter contribuído para a efetivação da queda dos homicídios paulistas, todavia existem variáveis explicativas que acabam não sendo consideradas pelo discurso institucional e pelas perspectivas das organizações policiais e penitenciárias, como por exemplo, a redução natural no número de jovens na faixa etária de risco dos homicídios (15-24 anos) que foi comprovada empiricamente por meio de uma investigação de econometria.
A experiência de promoção da Integração da Gestão em Segurança Pública (Igesp), modelo introduzido pelo governo de Minas em 2005, cuja inspiração remetia à estrutura de gestão do sistema Estatística Comparada Computadorizada (Compstat) da polícia de Nova York dos anos 1990, foi outro exemplo de política de segurança que alcançou destaque nacional. O Igesp foi combinado com outra importante iniciativa mineira, o Fica Vivo, que se caracterizou como um programa de prevenção de mortes violentas na vertente de ações sociais inclusivas. Apesar desses casesterem sido divulgados, ao longo da última década, em várias partes do Brasil como exemplos de boas práticas de intervenção estratégica policial e de prevenção social, insta salientar que de 2000 (11,8) até 2010 (18,6) Minas Gerais registrou um aumento de 57,6% na taxa de homicídio, sendo o único estado do Sudeste a apresentar crescimento do referido indicador nos últimos anos.
De todo modo, as experiências que foram iniciadas e/ou desenvolvidas em São Paulo e Minas Gerais no breve início do XXI, que em certa medida tomaram como referência os casesinternacionais de segurança públicas (por exemplo, Nova York e Bogotá), acabaram por influenciar outras unidades da federação. Nessa lógica, na segunda metade dos anos 2000 foram observadas iniciativas relevantes no campo da segurança pública em outros estados, como, por exemplo, em Pernambuco, Rio de Janeiro, Paraná e Espírito Santo.
As experiências de políticas públicas, programas e/ou projetos que vêm alcançando resultados na redução dos homicídios, nessas unidades da federação e outros estados, não estão isentas de críticas, vide as declarações feitas, às vésperas das Olimpíadas, pelo prefeito do Rio de Janeiro em relação ao “trabalho horrível” prestado pelo governo daquele estado. Em entrevista concedida à CNN em 4 de julho de 2016, o prefeito declarou que “o estado é completamente falho em seu trabalho de garantir a segurança da população”. Para além dessa polêmica declaração, cabe registrar o abismo que existe entre os investimentos e estratégias colocadas em prática pela perspectiva policial das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e a perspectiva de prevenção primária da UPP Social.
De todo modo, as experiências dos estados aqui citados, dentre eles o Rio de Janeiro, alcançaram destaque em nível nacional. Em comum, tais casesforam concebidos e aplicados por meio de um modelo de gestão. Esta última característica é um indicativo do processo de consolidação da administração pública contemporânea, que deve ser orientada pelos princípios e diretrizes (descentralização, flexibilização, meritocracia, transparência, accountability, eficiência-eficácia, dentre outros) do paradigma gerencial (BRESSER-PEREIRA, 2001).
A segurança pública é uma das temáticas mais complexas da contemporaneidade, instiga e desafia pesquisadores, profissionais do campo e áreas afins, gestores públicos e privados, governantes, políticos, lideranças comunitárias e grupos sociais. Como se sabe, não existe uma causa única que explique o fenômeno multifacetado da violência, sobretudo, a sua face mais grave, os crimes de homicídios. O desenvolvimento de estratégias para alcançar a efetiva redução dos índices criminais, a partir do modelo gerencial das políticas públicas, perpassa uma maior – integração – desses atores e da sociedade nas instâncias institucionais, religiosas e familiares. É por isso que o artigo 144 da Constituição Federal remete ao “direito e responsabilidade de todos”.
Em tempos de crise, é fundamental convergir e integrar as estratégias que viabilizam o direito à segurança pública, para que assim, o direito à cidade possa ser ampliado em uma de suas perspectivas essenciais. Cabe às políticas públicas, programas e projetos de segurança pública e áreas correlatas, nos níveis federal, estadual e municipal, focalizar a cidade e suas instâncias (forma, função, estrutura e processo) como objeto de transformação da ordem urbana. Assim, o direito à cidade tende a ser concebido e colocado em práticapara além de um simples direito de visita ou retorno às cidades tradicionais, conforme pondera Henri Lefebvre (1969), passando a ser democraticamente construído e vivido pela sociedade por meio da segurança cidadã.
*Pablo Lira é pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles, pesquisador do IJSN/ES, professor do mestrado em Segurança Pública da UVV/ES e professor do PNUD/ONU nos cursos de Segurança Cidadã. E-mail: [email protected].
O direito à cidade em tempos de crise
A série “O direito à cidade em tempos de crise” é uma parceria do Le Monde Diplomatique Brasil com o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) Observatório das Metrópoles. A série tem como objetivo suscitar a reflexão e monitorar os avanços e conquistas na afirmação do direito à cidade no Brasil, denunciar retrocessos e apontar tendências para o futuro das cidades brasileiras.
A cidade transformou-se, em pleno século XXI, no palco principal das lutas políticas e sociais. A reprodução da vida, individual e coletiva, biológica e social, depende cada vez mais da qualidade do meio urbano construído que se expressa na forma social que chamamos de cidade, mas que também se expressa na sociedade urbana global.
Ao mesmo tempo, a atual crise do capitalismo tornou a cidade uma nova fronteira de escoamento do capital sobre acumulado e financeirizado. Estes dois movimentos tornaram a cidade palco e objeto das lutas contemporâneas de classes, opondo a razão da reprodução da vida à razão da reprodução do capital. Esta contradição global está também cada vez mais presente no Brasil.
Com efeito, ingressamos na sociedade urbana com legado de cidades historicamente precárias, nas quais estão presente dois projetos antagônicos em disputa. De um lado, o representado pelos ideais, princípios e mecanismos da reforma urbana que obteve alguns avanços na afirmação do direito à cidade, no período 2003-2013. De outro lado, o projeto representado pela ideologia neoliberal que, em nome do empreendedorismo urbano, tem incentivado a adoção de políticas urbanas habilitadoras das forças mercantilizadoras do solo urbano, da moradia, privatização dos serviços coletivos, entre outros.
Mas qual desses projeto irá predominar diante do atual quadro de crise político-econômica de longa duração no país? Se caso a saída para a crise for conservadora e ultra liberal, isso representará um provável retrocesso das conquistas do direito à cidade no Brasil. E é esse um dos principais campos em disputa.