Ditadura e militarização do ensino
Ante os projetos de forças obscurantistas que confundem educação com militarização, vale recordar os descaminhos de experiências em que escolas públicas brasileiras foram, durante a ditadura instaurada em 1964, submetidas às lógicas do regime militar
Em regimes autoritários, a dominação se exerce tanto pelo terror – quando a violência física é o principal meio utilizado para reprimir as críticas – quanto pela ideologia, quando é grande a discrepância entre o que os dominantes dizem oficialmente e o que fazem de fato. Neste segundo caso, as justificativas oficiais dos poderosos para seus atos não são confirmadas pela realidade, tornando perigosa toda tentativa de checar a veracidade do que dizem os porta-vozes do poder. As críticas endereçadas aos que ocupam o poder costumam ser, neste caso, enfrentadas de dois modos: os poderosos afirmam repetidamente a ordem estabelecida por meio de eventos simbólicos como rituais, cerimônias, desfiles, concessão de condecorações, comemorações etc.; e quando isso não se mostra suficiente, apelam à violência direta.[1] Sabe-se que, na experiência histórica dos autoritarismos realmente existentes, esses dois sistemas são correntemente combinados.
Examinemos um caso de recurso a práticas simbólicas, ocorrido no Brasil após a edição do AI-5, no contexto de um aguçamento da violência repressiva do regime de exceção instaurado em 1964. No Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, o diretor-geral – então nomeado pelos militares – promoveu, nos anos de 1970 e 1973, dois concursos de redação, cartazes e hinos destinados a premiar alunos cujos trabalhos se mostrassem afinados com a ideologia golpista. Assim dizia uma Portaria do Diretor em 31 de março de 1970: “Considerando que deve ser despertado entre a juventude o interesse de analisar os benefícios proporcionados ao País pela Revolução de 31 de março de 1964; Considerando que, no transcurso do sexto aniversário da Revolução de 31 de março de 1964 é oportuno e salutar induzir os jovens alunos à elaboração de trabalhos sobre a Revolução de 1964, RESOLVE instituir entre os membros do corpo discente um concurso, cujo prêmio principal consistirá numa viagem de ida e volta a Manaus, com todas as despesas pagas aos autores dos melhores trabalhos sobre a ‘Revolução de 31 de março de 1964 e seus benefícios’”.[2] A Comissão Julgadora foi composta por cinco membros, dos quais um, pertencente às Forças Armadas, designado pelo ministro do Exército. No concurso de 1973, representantes das três armas foram incluídos no júri. Ao todo, nos dois concursos, foram premiados os trabalhos de 77 alunos, tendo as redações sido publicadas na íntegra em dois volumes editados pelo próprio Colégio.[3] Além do prêmio de viagem a Manaus – “para conhecer as ações militares na selva” –, um dos concursos previu recompensa em dinheiro.
Os textos das redações premiadas e publicadas, além de reproduções de peças da propaganda oficial enaltecendo a “segurança nacional” e as grandes obras do governo, traziam vários indícios da distância entre a pregação do regime e a prova dos fatos, a saber, por exemplo, que “a popularidade crescente do Governo Médici já observada por alguns analistas da imprensa internacional, (sic) emana não apenas da recuperação do prestígio do Poder executivo ou da dignidade restabelecida da figura presidencial, mas do próprio processo de reeducação do povo”; que “estaríamos envolvidos por um caos total, se não fosse a redentora Revolução de Março de 1964, que veio por fim a um longo período de práticas demagógicas, subversivas e subservientes, pois insãiradas (sic), muita vez, por nações tradicionalmente inimigas das democracias.”; que é “extraordinária no Brasil de hoje a união que sentimos em todas as classes, imbuídas do mesmo ideal (…) as divergências foram totalmente sanadas; hoje o ideal de um é o de todos, independente de cor, credo, posição…”[4] Entre os hinos (segundo as normas do concurso, “a melodia podia ser marcha ou canção, porém de cunho épico”),[5] encontrava-se uma imperial “Saudação musical ao Almirante Rademaker” (“Seja Benvindo Augusto Vice-Presidente…”) ao lado da metáfora ao mesmo tempo terna e brutal de uma “Menina Revolução” (“Tudo ia muito mal até que a menina acabou com o carnaval…).[6] Explique-se: o golpismo era apresentado como uma doce menina; o objeto do golpe, a festa popular.
Por meio de entrevistas realizadas quarenta anos depois com onze dentre os alunos premiados nos referidos concursos,[7] foi possível recolher alguns elementos da “microssociologia” daquela experiência. São diversas as justificativas dos entrevistados para sua participação naqueles certames: alguns alegam terem deles participado por razões utilitárias (“Eu queria era ir pra Amazônia!”; ou, “a Zona Franca na época era um negócio interessante do ponto de vista de comprar calça jeans”), sem – então como hoje – acreditarem na justeza do regime que enalteciam em suas redações; outros alegam terem participando dos concursos por terem acreditado então na justeza do regime, embora avaliem hoje terem sido, à época, iludidos ou terem se enganado; poucos alegam terem deles participado por, então como hoje, acreditarem na justeza do regime de exceção. Mas – eis uma pista para a presença do, para muitos surpreendente, desapreço contemporâneo à democracia – eles existem.
O apoio dos próprios pais, por vezes, pesava: “Meu pai advogava para os militares e eu pedi a ele para me ajudar, me dar algumas ideias. Nós escrevemos o trabalho e ele corrigiu”. A própria realização do concurso tornou-se matéria para a propaganda governamental. Conforme conta um ex-aluno: “a premiação foi feita aqui no Rio de Janeiro, no Palácio do Governo do Estado, pelo Presidente Médici – e eu me lembro que saí na capa do jornal ao lado dele, o cumprimentando. Fui entrevistado por um jornalista e embaixo saiu a seguinte frase ‘ele é muito simpático’, dita por mim. É lógico; conhecer o Presidente da República com 14 anos de idade… fiquei muito empolgado”. A viagem de vinte premiados a Manaus não deixou, porém, de oferecer, aos estudantes, algumas provas de realidade: os alunos foram, por exemplo, informados durante o voo que um outro avião, com escala prevista em Manaus, havia sido desviado para Cuba por oponentes ao regime militar. Durante uma das palestras dirigidas ao grupo sobre os “feitos do regime na selva”, um oficial, desgostoso com a experiência militar amazônica, confidenciou ao grupo de estudantes que “não via a hora de retornar ao seu lar”.
Contudo, a capacidade daqueles jovens de questionarem o material de propaganda era, de fato, limitada. “A cada ano que a Revolução fazia aniversário era uma enxurrada de material na própria imprensa” – lembra um estudante cuja redação foi premiada. “Existia um volume enorme de informações, e foi mais ou menos em cima daquilo que eu me baseei. Eu me prendi a relatar o que aconteceu de uma forma que era um histórico; eu peguei as informações do que estava antes, do que aconteceu.” Apesar dessa crença na veracidade da retórica oficial, esse mesmo entrevistado reconhece que não teria sido possível alguém participar do concurso escrevendo que o país vivia então uma ditadura: “Quem não concordasse, não iria se expor dessa forma, escrevendo para criticar. Não teria chance de ganhar e ainda atrairia sobre si olhos indesejáveis”. Outra concorrente premiada diz que “a mãe de uma amiga que trabalhava no Ministério do Exército arrancou um cartaz da parede, me deu e eu o anexei no trabalho”. Essa experiência não a impediu de, nos dias de hoje, acreditar que “tudo era muito confuso; sem levar em conta as opiniões do povo brasileiro, que não tinha direito de defender uma educação onde o aluno deve questionar o professor, colocar suas ideias, pois não devemos aceitar tudo que é imposto. É importante termos nossas ideias e poder defendê-las”. Como completa outra informante, por serem muito jovens, alguns estudantes não teriam sido capazes de relacionar a iniciativa do concurso com a natureza do regime de exceção que vivia então o Brasil: “acredito que teríamos uma visão mais crítica desses concursos e de seu real objetivo se na época tivéssemos mais idade”.
Assim, a “espontânea colaboração” – termos utilizados pelo Diretor nomeado para a instituição pelo regime militar – pela qual os estudantes daquele Colégio teriam afirmado que “a mocidade não permitiria que aventureiros e bolchevistas internacionais concretizassem o seu macabro propósito de desmoralizá-la”[8] integrava uma espécie de pedagogia da desinformação e da desinteligência, que visava transformar a educação em um rito destinado a inibir a crítica e a difundir o entendimento de que “aqui não se fazem perguntas”. Ou seja, todo o oposto da educação crítica onde toda interrogação sobre o modo de existência da sociedade, em lugar de ser inibida, é estimulada, tendo por base a fundamentação lógica e a experiência empírica.
Henri Acselrad é professor do IPPUR/UFRJ e pesquisador do CNPq.
[1] Luc Boltanski, “Sociologia da crítica, instituições e o novo modo de dominação gestionária”, in Sociologia & Antropologia vol. 03, n. 6, julho-novembro de 2013, pp. 447-448.
[2] Colégio Pedro II, A Revolução de 1964 julgada pelos estudantes de 1970, Rio de Janeiro, 1970, p. 13.
[3] Colégio Pedro II, A Revolução de 1964 julgada pelos estudantes de 1970, Rio de Janeiro, 1970; Colégio Pedro II, A Revolução e a juventude, Rio de Janeiro, 1973.
[4] Colégio Pedro II, A Revolução e a juventude, Rio de Janeiro, 1973, pp. 33, 47 e 68.
[5] Colégio Pedro II, A Revolução e a juventude, Rio de Janeiro, 1973, p. 22.
[6] Colégio Pedro II, A Revolução e a juventude, Rio de Janeiro, 1973, pp. 323 e 303.
[7] As entrevistas foram concedidas à antropóloga Iara Ferraz, no contexto da pesquisa que deu lugar ao livro Sinais de Fumaça na Cidade: uma sociologia da clandestinidade na luta contra a ditadura no Brasil (Henri Acselrad, ed. Lamparina, RJ, 2015).
[8] Colégio Pedro II, A Revolução e a juventude, Rio de Janeiro, 1973, p.11