Dívidas dos estados podem fortalecer a comunicação pública brasileira?
Emissoras públicas estaduais podem ser federalizadas para construção de uma grande rede pública nacional
O Programa de Pleno Pagamento da Dívida dos Estados, o Propag, sancionado em janeiro pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é mais uma aposta dos estados mais devedores para refinanciar seus débitos com a União, com juros baixos e em parcelas a perder de vista, durante 30 anos. São cerca de R$ 800 bilhões em dívidas dos estados, sendo que Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul concentram 90% do valor.
Mas como essa benesse do Congresso e do presidente Lula pode fortalecer um sistema público de comunicação, que tem na Empresa Brasil de Comunicação (EBC) o eixo central desse modelo?

Créditos: Edilson Rodrigues/Agência Senado
O Propag permite que os estados até zerem os juros de suas dívidas, além da correção pela inflação, com o repasse de ativos – como estatais, bens e créditos – ao governo federal. E, nesse bolo, podem ser enquadradas, em tese, as empresas e instituições públicas que cuidam das emissoras de rádio e TV estaduais.
Assim, até a TV Cultura de São Paulo, um dos veículos mais tradicionais do país, poderia se unir à TV Brasil, emissora federal da EBC, para fortalecer o sistema público federal. Isso porque São Paulo, o estado mais rico da federação, tem a maior dívida com a União, cerca de R$ 287 bilhões.
A Rede Minas de Televisão e a Rádio Inconfidência, ambas emissoras associadas à Empresa Mineira de Comunicação (EMC), também poderiam ser federalizadas. A Rede Minas, por exemplo, tem uma rede própria e parceiras que chegam a 600 municípios mineiros. Seria um importante reforço a uma estrutura nacional, já que Minas Gerais é um dos estados que mais devem à União (R$157 bilhões) e os meios de comunicação públicos estaduais vivem uma situação dramática com o desvirtuamento de sua missão pelo governo de Romeu Zema.
Os espólios da TVE do Rio Grande do Sul e da Rádio Cultura de Porto Alegre, já que a antiga Fundação Piratini foi extinta no governo de Ivo Sartori, em 2018, também poderiam ser repassados à União para o fortalecimento do sistema público federal.
Os veículos públicos de outros estados também poderiam ser federalizados no bojo deste programa de pagamento de dívidas e fortalecer o projeto de uma emissora nacional para atender as demandas de informação, cultura, educação e cidadania do povo brasileiro, que foi a ideia de criação da EBC em 2007.
A ideia poderia incluir a TVE, da Bahia, a TVE do Espírito Santo; a TV Ceará; a TVPE, de Recife; a TV e Rádio Educativa e a Rádio Difusora de Alagoas; a TV e Rádio Antares, do Piauí; a TV e Rádio Aperipê, de Sergipe; a Rádio Tabajara, da Paraíba; a Rádio Timbira; do Maranhão; a TV e Rádio Cultura do Pará; a TV e Rádio Encontro das Águas, do Amazonas; a TV Aldeia e a Rádio Difusora, do Acre; a TV Educativa, do Mato Grosso; a Rede Brasil Central, de Goiás; e a TV Paraná Turismo.
Obviamente que cada caso é um caso, em termos de débitos dos entes federados com a União, mas as situações, sobretudo de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Goiás e São Paulo, abrem a oportunidade de uma expansão sem precedentes da radiodifusão pública federal, efetivando uma previsão constitucional sobre o sistema público jamais plenamente alcançada em quase 40 anos de Carta Magna em vigor.
Não seria a primeira vez que a União faria um movimento parecido. Em 1973, por exemplo, um ano após ser criada, a Telebras, criada para planejar, coordenar e integrar as atividades de telecomunicações no país, promovendo a universalização da telefonia, na época, integrou 27 operadoras de telefonia estaduais e a Embratel. Nascia ali o Sistema Telebras, empresa de economia mista vinculada ao Ministério das Comunicações.
Hoje, o governo federal aposta na expansão da rede pública por emissoras educativas vinculadas a Universidades e Institutos Federais. Só que essas instituições sofrem com a falta de recursos para suas atividades fundamentais, imagine criar emissoras públicas sem qualquer financiamento. Esses órgãos da educação inclusive estão proibidos pelo próprio governo, em medida que remanesce da gestão Paulo Guedes, até agora não revogada, de realizar concurso para jornalistas e radialistas, corpo técnico essencial para tocar essas emissoras. E infelizmente, faltam até mecanismos legais para essas emissoras ditas educativas se efetivarem como veículos públicos com alguma autonomia e controle social.
Agora, imagina o potencial se essas emissoras estaduais pudessem se somar de fato à TV Brasil, às Rádios Nacional e MEC, que operam no Distrito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo e Maranhão, para construir, enfim, o sonho de uma BBC Brasileira, com estrutura sólida, unificada e democrática para atender a todo o país?
Lógico que seria preciso garantir uma grande produção local dessas emissoras – que, inclusive, é ignorada pela atual gestão da EBC – a manutenção dos atuais empregos gerados, das estruturas existentes, mantendo sua importância regional.
Também seria fundamental incorporá-las na jurisdição da lei federal que instituiu a Radiodifusão Pública e assegurar autonomia editorial nas programações e, principalmente, participação popular na gestão por meio de mecanismos institucionalizados de conselhos de participação social.
Além de garantir instrumentos de financiamento mais sólidos, que até hoje patinam na EBC, para ter recursos que possam permitir independência desse sistema frente ao modelo comercial e ao controle político por parte dos governos de plantão, como recomendam as melhores experiências de comunicação pública em países de forte tradição democrática, como Reino Unido, França, Japão, Alemanha, Canadá e até nos Estados Unidos.
A oportunidade criada pelo Propag permite uma provocação sobre o projeto necessário para a comunicação pública brasileira. E a criação de uma grande estrutura nacional permite alcançar a luta histórica pela democratização da comunicação brasileira, com recursos, autonomia e participação social para universalizar esse serviço a todas brasileiras e brasileiros.
Gésio Passos é jornalista da EBC, doutorando em Comunicação pela UnB e diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal.
Pedro Rafael Vilela é jornalista da EBC, mestre em Comunicação pela UnB e coordenador geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal.