Do neoliberalismo ao New Deal Verde
É fundamental resgatar o papel do Estado na implementação de uma política de desenvolvimento sustentável baseada nos princípios de uma economia verde, de um New Deal Verde
O presidente Joe Biden ignorou o neoliberalismo ao propor investimento estatal na infraestrutura e tecnologia da ordem de 2,3 trilhões de dólares, equivalente a um pouco mais do PIB brasileiro. Esse investimento vai diminuir por pressão contrária dos Republicanos, mas, mesmo assim, recupera a tradição econômica de Roosevelt após a crise de 1929 bem como a do importante legado teórico de Keynes.
Essa decisão de Biden foi surpreendente e mostrou o esgotamento da doutrina neoliberal dominante que finge ignorar a necessidade das intervenções governamentais para a sobrevivência do capitalismo de “mercado livre”. O princípio básico da economia neoliberal é que o capitalismo de livre mercado é a única estrutura eficaz para proporcionar bem-estar econômico geral. Nessa visão, apenas os mercados livres podem aumentar a produtividade e os padrões de vida, além de proporcionar liberdade individual e resultados sociais justos. Grandes gastos do governo e regulamentações pesadas seriam menos eficazes.
Os últimos anos testemunharam uma notável retomada do papel do Estado na economia, levando alguns a declarar que o conjunto de reformas de política econômica de livre mercado amplamente conhecido como Consenso de Washington chegou ao fim.
Popularizado pela primeira vez pelo presidente dos EUA Ronald Reagan e pela primeira-ministra do Reino Unido Margaret Thatcher na década de 1980, as políticas do Consenso de Washington ofereciam um conjunto de diretrizes para os países em desenvolvimento, muitos dos quais lutavam com dívidas e inflação altas na época.
Essas reformas de mercado livre incluíram a liberalização comercial e financeira, privatização, desregulamentação, a remoção de controles de capital, austeridade fiscal (corte de gastos públicos) a fim de atingir metas rígidas para manter a inflação baixa e déficits fiscais baixos, a adoção de bancos centrais independentes e desregulamentar as restrições ao investimento estrangeiro, entre outros. Em termos gerais, as políticas buscavam reverter o papel do Estado na economia e fortalecer o mercado. Na década de 1980, a adoção dessas políticas tornou-se condição obrigatória para os países em desenvolvimento endividados receberem novos empréstimos do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial; na década de 1990, as políticas serviram de base para a adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC). Desde então, essas políticas se tornaram a pedra angular dos currículos em departamentos de economia das Universidades em todo o mundo.
Além de diminuir a importância do papel do Estado no desenvolvimento, uma das mudanças profundas introduzidas com o Consenso de Washington foi derrubar a antiga noção anterior de que os países em desenvolvimento precisavam adotar estratégias de desenvolvimento econômico nacional de longo prazo para alcançar a transformação estrutural, ou seja, mudar suas economias baseadas em commodities primárias para uma economia baseada mais na produção industrial.
Essa visão neoliberal dominou a formulação de políticas econômicas nos Estados Unidos e em todo o Ocidente nos últimos quarenta anos. A famosa frase de Margaret Thatcher de que “não há alternativa” ao neoliberalismo foi um marco para superar, após a Segunda Guerra Mundial, o domínio do keynesianismo que via as intervenções governamentais em larga escala como necessárias para a estabilidade e um grau razoável de justiça sob o capitalismo. Essa supremacia neoliberal foi sustentada pelo forte apoio da esmagadora maioria dos economistas profissionais, com destaque para o ganhador do Prêmio Nobel Milton Friedman.
Na realidade, o neoliberalismo dependeu de um grande apoio do Estado durante toda a sua existência. A economia neoliberal global poderia ter entrado em colapso várias vezes, como a Grande Depressão dos anos 1930, se não fossem as intervenções governamentais massivas, bem como ações do Banco Central para sustentar instituições financeiras e mercados à beira da ruína. As intervenções estatais não apenas resgataram o capitalismo neoliberal durante os períodos de crise, mas também, como resultado, reforçaram as tendências mais malignas do neoliberalismo. Em 1978, pouco antes da ascensão do neoliberalismo, os CEOs das 350 maiores corporações dos EUA ganhavam 33 vezes mais que a média dos trabalhadores do setor privado. Em 2019, estavam ganhando 366 vezes mais do que o trabalhador médio.
Em outras palavras, sob o neoliberalismo, o salário dos grandes CEOs corporativos dos EUA aumentou mais de dez vezes em relação ao trabalhador americano médio. É interessante ressaltar essa curiosa combinação entre desprezo teórico pelo Estado ao lado da confiança prática nele. Ou seja, filé mignon para a elite econômica e osso duro para os demais.
A pandemia da Covid-19 e o lockdown ilustraram bem como o neoliberalismo funciona na prática. Durante a pandemia, o emprego e a atividade econômica geral em todo o mundo caíram vertiginosamente, à medida que grandes setores da economia global foram forçados à retração. De acordo com o Fundo Monetário Internacional, a atividade econômica geral (PIB) contraiu 3,5 por cento em 2020 em um “colapso severo. . . que teve impactos adversos agudos sobre as mulheres, os jovens, os pobres e os empregados informais”.
Mas durante o mesmo período, os mercados globais dispararam. Nos Estados Unidos, quase 50% de toda a força de trabalho pediu seguro-desemprego entre março de 2020 e fevereiro de 2021. No entanto, no mesmo período, os preços das ações de Wall Street subiu 46%, um dos maiores aumentos de um ano já registrados. Além disso, esse aumento não refletiu simplesmente a recuperação do mercado de ações dos EUA da pandemia e do lockdown. Todos esses ganhos são o resultado de intervenções governamentais em grande escala que tiveram por objetivo impulsionar os mercados financeiros e ajudar os ricos.
Diante desse quadro, a única alternativa possível é reinventar e atualizar o modelo de governo forte que prevaleceu logo após a Segunda Guerra Mundial, antes do surgimento do neoliberalismo. Na verdade, foi para evitar a repetição do desastre dos anos 1930 que John Keynes, outros economistas e Franklin Roosevelt lideraram o movimento para construir versões alternativas do capitalismo. Essa ideia se tornou o New Deal nos Estados Unidos e a Social-Democracia na Europa Ocidental, com diferentes configurações específicas nas várias economias avançadas do pós-Segunda Guerra Mundial.
Regulamentações extensas dos mercados financeiros, propriedade pública de instituições financeiras significativas e altos níveis de investimento público eram características plenas do New Deal e da socialdemocracia. Políticas de apoio ao setor privado não desapareceram, mas os mercados financeiros eram mais estáveis e as recessões mais superficiais durante esse período, em que o ganhos do crescimento foram compartilhados de forma mais ampla. Mas as disparidades de renda, riqueza e oportunidades permaneceram altas, junto com as malefícios sociais do racismo, machismo, destruição ambiental. O aquecimento global estava começando a ganhar força nesse período, embora poucas pessoas notassem na época. Não obstante, o New Deal e a Social Democracia produziram versões muito mais igualitárias de capitalismo do que o regime neoliberal que sucedeu a esses modelos.
Nos Estados Unidos, o programa clássico do New Deal foi reformulado e atualizado, passando a chamar-se New Deal Verde. Trata-se de um programa estatal de investimento para superar o sistema existente de energia, baseado em combustíveis fósseis, que está destruindo o planeta e substituí-lo por um sistema de energia limpa que pode nos levar à estabilização do clima. Este projeto de investimento em toda a economia irá gerar milhões de empregos envolvidos direta e indiretamente na criação de uma nova infraestrutura de energia. Isso, por sua vez, abrirá oportunidades para reviver a organização sindical que pode gerar empregos de maior qualidade e melhores padrões de vida, destinados a mulheres, negros e os segmentos da população excluídos dos mercados de trabalho nos EUA por gerações.
A recente proposta de investimento estatal do governo Biden é um passo importante para promover esse programa. Foi projetada precisamente para construir uma economia de energia limpa enquanto expande boas oportunidades de emprego. Como vimos diversas vezes na decisões econômicas sob o neoliberalismo, nunca faltaram recursos financeiros disponíveis para resgatar um sistema comprovadamente injusto e instável, bem como ecologicamente calamitoso. Não deve ser difícil encontrar os recursos financeiros para montar um New Deal verde e global de sucesso para a próxima geração.
A questão da economia verde está no centro da agenda política em todo o mundo. A destruição da biodiversidade e as mudanças climáticas provocadas principalmente pela emissão de gases de efeito estufa provenientes do uso de combustíveis fósseis (petróleo, gás, carvão) ameaça a possibilidade de vida humana pela destruição dos recursos naturais do planeta. A sustentabilidade socioambiental será questão de vida ou morte em futuro próximo. As catástrofes que tendem cada vez a mais a ocorrer pelas mudanças climáticas – secas, inundações, furacões, terremotos etc – vão produzir impactos relevantes como, por exemplo, queda drástica na produção agrícola, prejudicando sobretudo as populações pobres.
O Gráfico abaixo mostra os setores econômicos que geram CO2 e o que acontece com o CO2 na atmosfera, atualmente.
Produção de eletricidade: 25%.
Agricultura: 24%.
Indústrias: 21%.
Transportes: 14%.
Residências, prédios: 6%.
Outros: 10%.
Quando o CO2 chega na atmosfera, a vegetação, florestas e solos absorvem 24% do CO2 emitido. Os oceanos absorvem 17%. E os 59% restantes ficam acumulados na atmosfera!
A Agência Internacional de Energia (AIE), em relatório divulgado em 18 de maio último, propõe um cenário de “emissões líquidas zero” em 2050 e o fim de investimentos em novas instalações de gás e petróleo para descarbonizar o setor de energia e limitar o aquecimento global.
Limitar o aquecimento global a 1,5 ° C acima dos níveis pré-industriais seria uma tarefa hercúlea, envolvendo mudanças rápidas e dramáticas no funcionamento dos governos, indústrias e sociedades. A humanidade tem uma janela limitada para evitar os piores efeitos das mudanças climáticas, de acordo com o relatório do clima do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).
O mundo teria que reduzir suas emissões de carbono em pelo menos 49% dos níveis de 2017 até 2030 e, em seguida, atingir a neutralidade de carbono até 2050 para cumprir essa meta, de acordo com o último relatório do IPCC. O mundo está a caminho de cerca de 3 graus de aquecimento até o final do século, se não houver grandes reduções nas emissões de gases de efeito estufa. Pode ultrapassar 1,5 ° C em algum momento entre 2030 e 2052 se o aquecimento global continuar no seu ritmo atual.
Os cientistas têm “alta confiança” de que 1,5 ° C de aquecimento resultaria em um número maior de ondas de calor severas em terra, especialmente nos trópicos, diz o relatório, com forte impactos na economia e modo de vida. O risco de um clima tão severo seria ainda maior em um mundo de 2 ° C. Dois graus de aquecimento podem destruir ecossistemas em cerca de 13% da área terrestre do mundo, aumentando o risco de extinção de muitos insetos, plantas e animais. Sem uma ação agressiva, o mundo poderia se tornar um lugar quase impossível para a maioria das pessoas viver. Manter o aquecimento em 1,5 ° C reduziria esse risco pela metade. Mas, dado que os atuais compromissos nacionais sobre as emissões de gases de efeito estufa ficam bem aquém das metas estabelecidas no Acordo de Paris sobre o clima, muitos cientistas argumentaram que ficar abaixo da meta de 2 ° C é virtualmente impossível.
Enquanto isso, novas tecnologias já estão sendo pesquisadas, como produção de aço zero carbono, ou o hidrogênio renovável como combustível. Em cerca de 10 anos, no máximo, a grande maioria dos carros serão elétricos. Calcula-se que em 50 anos, aproximadamente, a dependência dos combustíveis fósseis será reduzida substancialmente. Não se trata apenas de transição ecológica, no sentido de superar o combustível fóssil em favor das energias renováveis. Ocorrerão grandes mudanças não apenas tecnológicas, mas também importantes mudanças culturais de comportamento, no consumo e no estilo de vida.
Já iniciamos esse grande processo histórico de transformação ecológica. É o único caminho possível para garantir a sobrevivência da humanidade no planeta. O instrumento necessário para dar os próximos passos em direção a essa transformação ecológica é resgatar o papel do Estado na implementação de uma política de desenvolvimento sustentável baseada nos princípios de uma economia verde, de um New Deal Verde. Trata-se de uma questão de decisão política em que está em jogo o destino da humanidade.
Liszt Vieira é professor universitário, sociólogo, e político brasileiro ligado ao movimento ambientalista. É formado em direito e estudante de ciências sociais, quando da edição do Ato Institucional Número Cinco (AI-5), em dezembro de 1968.