É a demanda, Paulo Guedes!
O coronavírus, como um tsunami, vem atingindo um país após o outro. Ainda não há vacina que impeça sua transmissão, tampouco remédios comprovadamente eficazes para o tratamento da Covid-19. Felizmente, temos no gasto público uma poderosa ferramenta para enfrentar a pandemia e seus efeitos econômicos devastadores
Em razão do confinamento de grande parte da população, o consumo agregado caiu drasticamente, aqui e no resto do mundo: nos Estados Unidos, por exemplo, os pedidos de seguro-desemprego já ultrapassam os 22 milhões. Com exceção de itens essenciais, quase nada é consumido pelas famílias. As empresas, já afetadas pela impossibilidade de contar com seus trabalhadores e pela desorganização das cadeias produtivas, passaram a sofrer também com a queda brutal de suas receitas. Caso demitam funcionários, o ciclo se retroalimentará, pois as famílias afetadas cortarão gastos, o que afetará novamente empresas, numa verdadeira “bola de neve”.
A solução óbvia para reverter o ciclo recessivo é expandir o gasto líquido do governo. E será preciso ir muito além de medidas anunciadas pelo governo, como a antecipação de rendas de aposentados e a oferta de crédito mais barato às pessoas físicas e jurídicas. Essas medidas não têm efeitos permanentes: no caso da antecipação de benefícios, o estímulo de hoje será desfeito amanhã, quando os valores antecipados deixarem de ser recebidos; já no caso do crédito barato, o estímulo será desfeito quando as amortizações e os juros devidos começarem a ser pagos. Mesmo o auxílio de R$ 600 prestado aos desempregados e aos trabalhadores informais, que é fundamental e urgente, será insuficiente, tanto do ponto de vista macroeconômico como para a sobrevivência digna dos próprios trabalhadores.
Com o país ameaçado pela depressão econômica, será preciso que o governo federal dê um forte apoio à renda e ao emprego, subsidiando as folhas de pagamento das empresas e transferindo um volume maior de recursos diretamente à população. Deverá também prover uma ajuda financeira generosa aos governadores e prefeitos para que combatam a pandemia e enfrentem a depressão em seus estados e municípios (isenção de impostos, postergação de pagamento de tarifas públicas, tudo deveria ser financiado pelo governo federal). Ao governo também caberá resguardar a produção de bens essenciais e garantir recursos financeiros e materiais para testes de diagnóstico em massa, produção de materiais de proteção aos trabalhadores das atividades essenciais, pesquisas sobre o vírus, construção de hospitais para isolamento de doentes e tudo mais que especialistas considerarem fundamental para proteger a população. Para evitar o desabastecimento de itens essenciais, o governo provavelmente terá de apoiar a reconversão de parte da estrutura produtiva, racionar o consumo, ou importar bens e serviços.
Aumento de gastos
Para atender às necessidades apontadas, precisaremos que o governo federal gaste muito mais do que vinha gastando. Mas de onde virá esse dinheiro? O Estado brasileiro não estava falido?
Recentemente, ouvimos do ministro Paulo Guedes a mais clara admissão de que não existe qualquer motivo, além de regras fiscais autoimpostas, para que o governo deixe de realizar o gasto líquido necessário para enfrentar a pandemia e evitar a depressão. O decreto de estado de calamidade pública deu condição jurídica para que o governo crie “espaço fiscal” e possa gastar mais. Tal condição jurídica foi confirmada pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, ao suspender a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal nos artigos que exigem comprovação de fonte tributária para a realização do gasto e foi complementada pela aprovação da PEC 10/2020, que explicita formalmente o Banco Central como fonte dos recursos para gastos do governo.
A verdade é que a dívida interna do governo brasileiro, em reais, não é nem nunca foi insustentável. O que limita o gasto são regras fiscais arbitrárias e disfuncionais – meta de resultado primário pouco flexível, congelamento dos gastos primários e restrição à suplementação de créditos ao governo – e a obsessão de governantes, economistas e comentaristas com o equilíbrio fiscal.
O conjunto de regras fiscais vigentes no Brasil – que está sendo suspenso à medida que a crise se agrava – tenta impor ao Estado comportamento similar ao de uma empresa/família ameaçada de falência. Embora seja prudente que agentes privados cortem gastos quando suas receitas diminuem e a incerteza aumenta, o mesmo não vale para o governo. Na verdade, o funcionamento saudável de uma economia capitalista exige que os governos gastem mais em situações de crise, justamente para compensar a queda do gasto privado.
Emitir dinheiro
A lição da pandemia é que, como sempre disseram muitos economistas heterodoxos, nossas autoridades econômicas podem sempre emitir dinheiro para assegurar resultados econômicos e sociais desejáveis. Sempre que houver desemprego, a autoridade fiscal pode gastar mais para sustentar a demanda agregada. E isso quer dizer, inclusive, que ela poderia tê-lo feito muito antes da crise do coronavírus. Por sua vez, a autoridade monetária pode e deve criar liquidez sem limites – mas impondo contrapartidas – para estabilizar o sistema financeiro.
A crise de 2008, por exemplo, mostrou isso. A propósito, não é preciso se preocupar com uma eventual perda de controle sobre os juros: o nosso Banco Central, como faz todo banco central de país emissor de moeda soberana, controla os juros referenciais, independentemente do déficit ou do tamanho da dívida pública. Foi por isso que, recentemente, o Copom reduziu a taxa de juros de curto prazo, mesmo com o anúncio de elevação do endividamento público.
Quando entendemos que o aumento do gasto público pode ser sempre viabilizado pela emissão de moeda, torna-se óbvio que não existe limite financeiro à sua capacidade de realizar pagamentos. Em vez de impor restrições arbitrárias, como tetos para a dívida pública, ou metas rígidas de resultados fiscais, devem-se considerar os limites que de fato existem: o inflacionário (dado pela capacidade de produção) e o externo (de capacidade de importação) da economia. Ou seja, afirmar que é possível e necessário que um governo central gaste sem limites financeiros não é o mesmo que dizer que ele deva gastar ilimitadamente, ou irresponsavelmente.
Os eventos das últimas semanas escancaram a realidade sobre o funcionamento da economia para todos, inclusive para o ministro Guedes. Se nossos governantes agirem com responsabilidade, cobrirão as necessidades prementes do momento, e o dinheiro necessário para o enfrentamento da pandemia, assim como da depressão econômica que se aproxima, virá de onde sempre veio: da emissão de moeda. Não é preciso, como dizem alguns, arrecadar mais impostos. Também não é necessário – e fazer isso seria dar um tiro no pé – vender reservas internacionais para financiar investimentos em reais do governo.
É verdade que, durante os próximos meses, a dívida do governo brasileiro deverá aumentar significativamente, tanto porque será necessário compensar a queda da demanda privada como porque a arrecadação cairá muito. Mas precisamos lembrar: a dívida não é e nem nunca foi um problema. É apenas a consequência controlável da ação governamental de apoio às pessoas e à economia, que poderá salvar nossas vidas e as das gerações futuras.
Simone Deos é professora do Instituto de Economia da Unicamp; Renata Lins é doutoranda do Instituto de Economia da UFRJ; Kaio Pimentel é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ; Fabiano Dalto é professor do Departamento de Economia da UFPR; e Daniel Negreiros Conceição é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ.