E agora, as estrelas!
Se o poder se encontra enfraquecido pela utilização da violência, ele pode se reforçar graças à ameaça – mais ou menos discreta – de coerção física. Em plena Guerra Fria, as estrelas ofereceram, por um tempo, um novo cenário às promessas mundiais de aniquilação.
Ninguém esperava realmente de Ronald Reagan que, na sua carreira anterior de ator de cinema e de governador da Califórnia, tivesse tido a oportunidade de dominar as complexas tecnologias laser de raios X, das armas de energia dirigida e da física dos feixes de partículas. No entanto, em 23 de março de 1983, o então presidente norte-americano lançava a Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE), ou “Guerra nas Estrelas”: “A tecnologia atual atinge tal grau de sofisticação que podemos razoavelmente começar a trabalhar para tornar as armas [nucleares] impotentes e obsoletas”, anunciava. A avaliação que Reagan fazia do estado da arte dessas tecnologias esotéricas contradizia as opiniões dos especialistas de sua gestão, mas os altos funcionários e os reaganianos leais se converteram então em massa aos olhos do presidente: “Ainda felizes que ele não tenha se pronunciado em favor da flogística ou decretado que a Terra era plana”, consolava-se um observador.1
O sonho de Reagan não era novo. Os Estados Unidos tinham trabalhado durante décadas em programas de mísseis antibalísticos (Anti-Ballistic Missile, ABM). Em 1967, a gestão Lyndon Johnson havia decidido colocar em ação o sistema Sentinel. Essa decisão provocou duras controvérsias que culminaram no tratado ABM, assinado em 1972 pelos Estados Unidos e pela União Soviética, que limitava estritamente as implantações de mísseis antibalísticos a ponto de torná-losestrategicamente insignificantes.
Nos Estados Unidos, os meios políticos e os interessados pelas questões de controle dos armamentos entenderam que a defesa por meio de ABMsnão era operacional nem desejável e que, se fosse introduzida de maneira consequente, desestabilizaria o sistema existente chamado “destruição mútua garantida” (Mutual Assured Destruction, MAD, que significa “louco”, em inglês). De fato, permitiria a um dos lados imaginar um primeiro ataque destruidor, na medida em que este se sentiria protegido de uma resposta limitada graças à sua defesa ainda mais eficiente, uma vez que a capacidade de represálias vindas do adversário teria sido seriamente danificada.
Sonho impossível
Reagan afirmou que a ideia da IDE veio a ele sem que seus colaboradores o tenham influenciado. Somos tentados a acreditar nele, pois, depois do discurso de 23 de março de 1983, praticamente todos – com a exceção notável do secretário de Defesa, Caspar Weinberger – admitiram publicamente a impossibilidade de concretizar o sonho presidencial. Richard DeLauer, então adjunto do secretário de Defesa para a pesquisa, afirmou diante de uma comissão do Congresso que “não há nenhum meio de impedir um inimigo de romper suas defesas se ele está decidido a lançar mão de tudo para consegui-lo”. Todos os estudos sérios, públicos ou privados, sobre os sistemas de defesa espacial corroboram essa conclusão.2
Se nenhuma das personalidades do primeiro escalão do governo se levantou contra a IDE nem contra os US$ 26 bilhões solicitados para financiar o programa, ninguém tampouco – exceto Weinberger – retomou para si a realização de seu objetivo: um mundo livre da ameaça das armas nucleares. Já que os oficiais do Pentágono e de outros ministérios não acreditavam mais nos projetos visionários de Reagan, podemos nos perguntar por que eles apoiavam tão vigorosamente as pesquisas da IDE.
A resposta é simplesmente porque elas contribuíam para o aperfeiçoamento dos sistemas antimísseis proibidos pelo tratado ABM de 1972. E isso apesar de o presidente ter afirmado que a IDE “não é nem deve ser entendida como um sistema a mais para proteger os depósitos dos mísseis”.3 No entanto, o The New York Timesreportava que “os cientistas responsáveis pelas pesquisas governamentais para a construção de um escudo defensivo no espaço afirmam que os objetivos imediatos foram seriamente revistos para baixo: não se trata mais de colocar em ação uma defesa do país impenetrável, mas proteger seu arsenal nuclear baseado no solo. Eles dizem que essa mudança reflete a ideia de que, por enquanto, uma defesa impenetrável é irrealizável, mas continua sendo o objetivo a longo prazo”.4O próprio general James Abrahamson defendeu sua missão argumentando que ela “reforçará a dissuasão” mais do que eliminará a necessidade. Daí a distinção, estabelecida pelo senador Sam Nunn, entre o que os norte-americanos são convidados a financiar e a destinação exata de seus dólares.
Solução intermediária
Para tentar escapar dessa contradição, os responsáveis oficiais, e principalmente Fred Iklé, subsecretário da Defesa, evocaram “versões intermediárias da defesa antimísseis (BMD) que, sem fornecer a proteção de um sistema completo com diversas camadas, poderia, no entanto, oferecer outras possibilidades úteis”.5 Podemos ter uma ideia do sistema de defesa em que eles pensavam por meio da leitura de um artigo publicado na The New York Times Magazinepor três defensores da IDE: Zbigniew Brzezinski, ex-conselheiro de Segurança Nacional de James Carter, Robert Jastrow, professor de Física da Darmouth, e Max Kampelman, principal negociador nas discussões de Genebra sobre o desarmamento. O artigo descreve um sistema de três camadas: intercepções na fase de propulsão, um sistema de alerta por satélite e uma defesa “terminal”. Segundo os autores, o sistema teria 90% de eficiência, poderia ser construído nos anos 1990 a um custo de cerca de US$ 80 bilhões e “daria a maior parte de sua credibilidade ao nosso sistema de dissuasão baseado na terra”.6
Sua ideia-chave é que o sistema de dissuasão dos Estados Unidos já ganhara “credibilidade”. Podemos então nos perguntar por que os soviéticos não agarraram a oportunidade antes que Reagan estivesse em condições de colocar em ação o maior programa militar jamais visto em tempos de paz e suprimisse, assim, a vantagem estratégica da qual Moscou deveria dispor. Os defensores da BMD não explicaram também por que os Estados Unidos não enfrentavam essa ameaça simplesmente transferindo para o fundo do mar a fração vulnerável de seu sistema de dissuasão, quer dizer, os mísseis baseados na terra. De fato, a maneira mais simples de resolver o problema da vulnerabilidade dos mísseis seria aceitar negociar com os soviéticos um tratado de proibição completa dos testes. No entanto, o governo Reagan, a imprensa e todos os especialistas das questões estratégicas em Washington resolveram considerar um escárnio a oferta soviética de negociar tal tratado.
Por que uma solução tão simples enfrentava sarcasmos tão sofisticados? Se não pudesse mais testar novas armas nucleares, o Pentágono já não estaria em condições de distribuir bilhões de dólares às empresas de armamentos. Os créditos destinados aos grupos de reflexão dos generais de Washington chegariam ao fim. Para essas pessoas, a “Guerra nas Estrelas” não era simplesmente uma hipótese que exigia estudos suplementares, mas um verdadeiro alimento que oferecia possibilidades ilimitadas de criação de empregos, organização de seminários, aparições na televisão.
Promessas exageradas
O sonho presidencial de “um povo livre, confiante de que sua segurança não repousa na ameaça de represálias norte-americanas imediatas para dissuadir um ataque soviético”, parecia viável, pois se assentava nos dólares desembolsados pelo contribuinte norte-americano e em certo apoio do Congresso. Mas esses fundos eram em seguida utilizados para outros fins. George H. Miller, que dirigia o programa de pesquisa sobre a defesa no laboratório Lawrence Livermore, na Califórnia, declarou-se “alarmado pela amplitude dos exageros e promessas e pela recusa de tomar esse programa pelo que ele realmente é: um programa de pesquisa no qual diversas questões permanecem ainda sem resposta”.7
Reagan prometeu ao Congresso e ao povo norte-americano um sistema que colocaria fim à dependência dos Estados Unidos da dissuasão nuclear, que os libertaria da ameaça de uma guerra atômica e que, por isso, criaria uma atmosfera de confiança e de boa vontade entre os Dois Grandes. Uma atmosfera que contradizia cada minuto de cada dia da história das relações entre Washington e Moscou… Sem dúvida, os sucessores de Reagan se perguntariam um dia como uma democracia que dispunha, para guiá-la, de uma classe política instruída e experimentada poderia ter sido vítima de tão gigantesco embuste.