É nóis por nóis!
Agora que a situação se complica, o coronavírus chega às periferias das grandes cidades, às favelas, ao interior, às regiões mais pobres do país; agora que a morte, o desemprego e a fome batem à porta, de quem essas pessoas podem esperar amparo, proteção, cuidados? A quem elas poderão recorrer?
Quem é que vai cantar a dor que nóis sente?
Quem é que vai sangrar na linha de frente?
Quem é que vai somar, fortalecer a corrente?
Se não for nóis por nóis, quem é que vai ser pela gente?
A286, “Nóis por nóis”
No mundo inteiro, o discurso neoliberal está mudando e reconhecendo a importância do Estado como único agente capaz de atender ao interesse público nesta pandemia, prover a segurança alimentar e os serviços e equipamentos de saúde necessários, e enfrentar o desafio da profunda recessão e desemprego que se anunciam. Os investimentos públicos são considerados essenciais para a retomada das atividades econômicas.
Infelizmente, no Brasil o governo Bolsonaro não investe na saúde – aliás, segura os recursos disponíveis para o enfrentamento da Covid-19 para não repassá-los a governadores de oposição – e continua querendo destruir o Estado e privatizar tudo que é público. Contra o isolamento, o governo federal também não paga ou atrasa o auxílio-pandemia, os R$ 600 por três meses, para forçar os mais pobres a sair para o trabalho. E, para sustentar sua posição contra o isolamento, produz desinformação e fake news, confundindo as pessoas e estimulando a volta à vida normal.
O resultado é o pior possível. Com mais de 25 mil mortes por Covid-19 em maio e uma curva ascendente de contaminação e mortes, o Brasil já é o segundo país, depois dos Estados Unidos, mais afetado pela pandemia. E o desastre será maior no futuro próximo, pois não há nenhum plano para combater a pandemia nem para enfrentar economicamente a recessão e o desemprego. O presidente trocou dois ministros da Saúde nos últimos dois meses e o cargo está vago. Os governos estaduais e municipais fazem o que podem, e é importante que se reconheça isso, mas a concentração da receita nas mãos do governo federal limita suas ações.
As orientações para o combate à epidemia são impossíveis de ser cumpridas. Isolamento? Ficar em casa nas favelas? Como alimentar a família sem trabalhar? Lavar as mãos? Mas não tem água na torneira todos os dias…
De fato, as palavras do governo ignoram a existência e as formas de vida de mais de 80 milhões de brasileiros, a parcela da população que se habilita a receber os R$ 600 de socorro, a parcela que mais precisa de proteção, amparo, cuidados. Paulo Guedes acha que com esses recursos as babás vão passear na Disneylândia. Agora propõe a redução para R$ 200 do socorro pela pandemia se essa doação ultrapassar três meses.
Os brasileiros mais pobres não podem contar com o amparo, a proteção e o acolhimento do governo dos brasileiros. As políticas públicas ou não chegam, ou chegam de maneira insuficiente aos territórios da pobreza. Nunca a chaga da desigualdade foi tão escancarada. Anuncia-se uma tragédia humanitária com a conjugação de crise sanitária, crise alimentar e desemprego, os quais não se resolvem de um dia para o outro.
Lideranças comunitárias nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Manaus e Distrito Federal já identificam a fome e a insegurança alimentar como os principais problemas nas favelas. Sem renda e sem trabalho, falta dinheiro para tudo, inclusive para as máscaras e o material de higiene pessoal. A dificuldade de acesso ao auxílio emergencial, produzida pelo próprio governo, impede milhões de pessoas de ter acesso a essa mínima proteção social. Os que adoecem já não encontram socorro da parte dos equipamentos de saúde pública, que não têm mais capacidade de atender à demanda, sucateados que foram ao longo dos últimos anos.
O medo de que os problemas se agravem também é expresso por essas lideranças comunitárias. Em primeiro lugar, elas temem a expansão do contágio. Por conta da falta de amparo governamental e das políticas de desinformação – de responsabilidade principalmente da Presidência da República e do chamado Gabinete do Ódio, o centro produtor da desinformação –, a adesão às medidas de combate à pandemia é baixa. Em segundo lugar vem a fome. Em terceiro lugar, a falta de acesso a equipamentos de saúde.1
Abandonados à própria sorte, esses territórios da pobreza vão se articulando e enfrentando as condições adversas como sempre fizeram, lançando mão da solidariedade, assumindo responsabilidades e tarefas que deveriam ser políticas públicas, lançando seu apelo aos demais setores da sociedade para que os socorram neste momento.
E o que vemos surgir em meio à crise é uma extraordinária rede de solidariedade que se baseia nas organizações existentes, que tomam todo tipo de iniciativa para cuidar de seus pares, para cuidar do território que habitam com os recursos que podem mobilizar. E, ao se organizarem para essas tarefas, conquistam a adesão e a solidariedade de outros setores da sociedade, como pessoas e entidades das classes médias, empresas e igrejas.
As iniciativas são muitas: monitorar a saúde dos moradores da favela e criar um posto de atendimento de saúde e casas de isolamento em seu território (Paraisópolis, São Paulo); desinfetar regularmente as ruas da comunidade (Favela Santa Marta, Rio de Janeiro); produzir e distribuir máscaras e material de higiene; produzir vinhetas educativas e informação, combatendo as fake news (Rádio Comunitária Cabana, Ananindeua-PA); organizar campanhas educativas (projeto Saúde e Alegria, Rádio Rural de Santarém-PA); coletar fundos e distribuir cestas de alimentos para as famílias com fome; ajudar no cadastramento para ter acesso ao auxílio-pandemia do governo; cobrar dos governantes o atendimento emergencial de suas necessidades.
A importância dessas iniciativas de solidariedade é enorme. Sem elas, a tragédia certamente seria maior. E aqui podemos avaliar a importância das organizações da sociedade civil. São elas que, articuladas em redes, pressionam os poderes públicos para o atendimento das necessidades dos mais pobres, organizam o trabalho voluntário e oferecem apoio e acolhimento aos mais necessitados.
São associações de moradores, sindicatos, órgãos de imprensa independentes, rádios comunitárias, igrejas, grêmios estudantis, escolas de samba, torcidas de futebol, coletivos informais de cultura, associações profissionais, ONGs, universidades, enfim, uma infinidade de formas de organização que criam coletivos e permitem ações conjuntas.
A base dessa solidariedade é uma ética humanista, de cooperação, de valores que se afirmam como fundamentos da convivência plural e democrática, que afirmam o respeito à diferença, a dignidade e o bem-estar de todos como meta comum da sociedade. Mesmo a doutrina liberal defende que o Estado deve prover condições dignas de vida para todo cidadão e considera a democracia a melhor forma de regulação dos conflitos e das diferenças sociais. São as organizações independentes, a força da sociedade civil articulada e os movimentos sociais que garantem a democracia e o quanto esta inclui os mais pobres e distribui a riqueza produzida.
Não é de hoje – pode-se dizer mesmo que tem mais de dez anos – que está sendo orquestrada uma campanha de enfraquecimento e mesmo de destruição das formas de organização e representação da sociedade civil. Tudo isso pelo medo de que a esquerda ganhe outra vez as eleições e para manter os privilégios e os interesses das elites econômicas e financeiras, que veem como ameaça ao seu controle da sociedade as pressões por direitos e pela redistribuição da riqueza feitas pelos que estão privados de seus direitos.
A situação dos sindicatos, com suas fontes de recursos cortadas por decisões do governo; o corte do financiamento das ONGs por fundos públicos; o corte do orçamento das universidades públicas; a perseguição aos setores sociais de resistência democrática e à imprensa opositora; o ataque e criminalização dos partidos de esquerda; a destruição das reputações de lideranças da oposição; a perseguição física e o assassinato de lideranças de movimentos sociais – tudo isso tem como propósito o enfraquecimento e a destruição da sociedade civil e das representações coletivas. O indivíduo, sozinho, isolado, se vê impotente diante do poder autoritário.
Mesmo com toda essa onda de destruição, vemos uma sociedade civil vibrante, que não se rendeu a esse poder autoritário. Ainda não temos condições de avaliar em nível nacional a extensão dessas redes de solidariedade que se constroem na crise, mas é um grande movimento. A questão que se coloca é se elas podem ir além dessa dimensão do auxílio humanitário. Em alguns casos é possível dizer que sim, quando elas pressionam o poder público para que este atenda a suas necessidades. Podem até promover panelaços, mas têm seus limites. Elas formulam demandas, não disputam políticas públicas.
As ruas, que são o espaço público por excelência para as grandes manifestações, estão interditadas pela pandemia. Mesmo as grandes manifestações, como as de junho de 2013, mudam muito pouco o comportamento das instituições democráticas, desde sempre controladas pelos poderes econômicos. A situação atual é de agravamento da crise, com a fome, o desemprego e o desespero tomando conta da cena. O aumento da tensão social prenuncia momentos de ruptura. O sofrimento é geral e crescente.
São poucos os espaços de decisão de que o cidadão participa. Muito do que foi construído no passado, como os conselhos e conferências de políticas, já foi destruído. Por onde então vai se expressar toda essa energia de inconformismo e revolta? Na negação das instituições políticas que sustentam esse estado de coisas. Os partidos políticos e o Parlamento estão entre as instituições mais depreciadas pela opinião pública. Mas é bom frisar que essa avaliação é sobre nossa democracia e os atuais partidos políticos. A ampla maioria dos brasileiros prefere a democracia como forma de governo e reconhece a importância dos partidos políticos, sem os quais a democracia não existe.
Segundo pesquisa Datafolha divulgada em janeiro deste ano, a defesa da democracia conta com a maioria (62%). Mas é importante observar a tendência. O apoio à democracia caiu sete pontos percentuais de 2018 para 2019, e o número de indiferentes aumentou de 13% para 22%. Os que defendem a ditadura permaneceram com os 12%.2 O que se apresenta como demanda é uma nova forma de democracia e novos partidos políticos; os pesquisados não querem mais do mesmo.
O desafio é politizar essas redes de solidariedade e construir as pontes dessas organizações que operam nos territórios e articulam o protesto social com o mundo da política. A Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo são expressão desse esforço. Elas agregam diferentes movimentos sociais, toda uma ampla rede de entidades, e se mobilizam em defesa dos interesses comuns, das demandas sociais e da democracia. A criação das frentes carrega o sentido da politização do social, isto é, da explicitação do conflito e do debate de que há alternativas para enfrentar a crise sem que todo seu peso recaia unicamente sobre os trabalhadores.

No entanto, a politização do social feita por essas frentes, pela imprensa contra-hegemônica e pela intelectualidade que se alinha à defesa da democracia não é suficiente para enfrentar o poder instituído. Na democracia que temos, as eleições e os partidos políticos continuam essenciais. Por essa razão, esse movimento de solidariedade entre os mais pobres, e que convoca amplos setores da sociedade a apoiá-lo, precisa se encontrar com a coalizão de partidos que pede o impeachment de Bolsonaro. E isso é uma responsabilidade dos partidos. O primeiro passo é o afastamento do presidente. O segundo é disputar com essa coalizão as eleições municipais. O terceiro é instaurar um novo processo constituinte para recuperar direitos e criar um novo sistema político.
Essa é a proposta de criação de uma frente antifascista para enfrentar o surgimento de um novo capitalismo bárbaro, com novas formas autoritárias de governança, centrada na sociedade do controle, na censura, no fim das liberdades.
“Toda proposta política é sempre uma fórmula para tentar articular de um modo específico vontades diversas. São as práticas que apontam no sentido do questionamento da dominação capitalista que alimentam a formulação de uma alternativa política. Nós lutamos por uma transformação social pela qual a população se assenhore dos seus meios de vida. E é pela constituição de um novo sujeito político capaz de ser portador de uma vontade coletiva de transformação social que esse processo pode se dar”.3
A proposta da Frente Antifascista é importantíssima, mas não pode dar conta das mudanças profundas que nossa sociedade requer. Nenhum dos partidos da Frente Antifascista se engaja em lutas por mudanças estruturais. As lições deste momento de crise em que todo o custo recai sobre os trabalhadores ensinam, mais uma vez, que ninguém vai defender todos aqueles que vivem do próprio trabalho. Ou eles se organizam, se articulam e se constituem como sujeitos políticos, ou serão submetidos a novas e mais perversas formas de dominação. A autonomia nunca foi tão importante para constituir um poder capaz de pressionar por mudanças.
Silvio Caccia Bava é diretor do Le Monde Diplomatique Brasil.
1 Pesquisa realizada pela USP, articulada com a Rede de Pesquisa Solidária, com 72 lideranças comunitárias nas cidades mencionadas. Publicada pela Folha de S.Paulo (25 maio 2020).
2 Datafolha divulgada em 1º de janeiro de 2020 e publicada por El País em 12 de janeiro de 2020.
3 Eder Sader, “Autonomia popular e vontade política”, Desvios, n.2, 1983.