É tudo tão comum!
Campanha pela Cultura Viva Comunitária busca destinar legalmente um mínimo de 0,1% do orçamento público para o “fazer cultural” autônomo e protagonista, potencializando os pontos de cultura existentes. Trata-se de uma experiência de lei continental, que se estende da Terra do Fogo ao Rio Grande, unindo 21 naçõesCélio Turino
(Celebração da Fundación Comunidad de Productores em Artes – Compa – em El Alto, Bolívia)
“Uma notícia está chegando lá do exterior / Não deu no rádio, no jornal ou na televisão”
Em minhas centenas de viagens aos pontos de cultura pelo interior do país, sempre cantarolava a música “Notícias do Brasil”, de Milton Nascimento com letra de Fernando Brant. Queria compartilhar este país que eu tinha oportunidade de ver com meus próprios olhos, um Brasil energizado e unido pelos pontos de cultura, com gente criativa e valente, fazendo coisas diferentes na defesa do bem comum. De certa forma, pude contar essas histórias no meu livro Ponto de cultura: o Brasil de baixo para cima, tanto que começo fazendo um diálogo com essa música e a história dos meninos e meninas de Araçuaí (Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais) e o presente que deram à sua cidade: um cinema.
Agora, há mais de um ano e meio fora do Ministério da Cultura, relembro a música e apenas faço uma mudança na letra, trocando “interior” por “exterior”. A vida tem me levado para fora do Brasil e desde março tenho recebido incontáveis convites para conferências e cursos em outros países, sobretudo na América Latina, mas também na Europa. No período em que estava trabalhando no Ministério da Cultura, evitei as viagens oficiais ao exterior, pois tinha consciência de que, naquele momento, minhas responsabilidades estavam em dar conta de meu trabalho para o povo brasileiro, atendendo aos milhares de entidades culturais comunitárias do país, e assim o fiz. Agora, sem responsabilidades de governo, posso sair difundindo não mais um programa governamental, mas teoria, conceitos e experiências que podem e devem ser compartilhados. Com isso, já estamos realizando uma campanha continental pela Cultura Viva Comunitária, que busca destinar legalmente um mínimo de 0,1% do orçamento público para o “fazer cultural” autônomo e protagonista, potencializando os pontos de cultura existentes em cada país. Essa é uma experiência de lei continental, que se estende da Terra do Fogo ao Rio Grande (o rio seco que separa o México do estado norte-americano do Texas), unindo 21 nações.
Uma primeira percepção com essas viagens: é tudo tão comum! Eu nos vejo quando estou na Guatemala, com a Caja Lúdica, fundada por um casal de colombianos de Medellín. Neles encontro os tantos casais que diariamente levam adiante seus pontos de cultura no Brasil (entre os muitos pontos de cultura que conheci, aqui e no exterior, sempre encontro a presença dedicada e cúmplice de casais). Na verdade, a Caja Lúdicada Guatemala atua como um pontão de cultura, articulando, capacitando e difundindo pontos de cultura por todo o país e mesmo entre seus vizinhos da América Central. São cinquenta pessoas em trabalho diário, vivendo da caixa lúdica, sendo remuneradas por ela (não muito, pois sabemos o quanto é dura a vida de quem opta por trabalhar em uma perspectiva do bem comum, mas suficiente para uma vida digna e feliz).
A iniciativa dessilencia um povo silenciado pelos genocídios recentes (a guerra civil que assolou o país até o final do século XX fez mais de 50 mil desaparecidos e 200 mil mortos em genocídio, de uma população com pouco mais de 14 milhões de habitantes) e passados (a Guatemala está no centro da civilização maia), retomando a medicina tradicional dos maias, seus ritos e histórias; mobilizando jovens e difundindo a cultura de paz no país com o segundo maior índice de homicídios do mundo (setenta assassinatos para cada 100 mil habitantes; no Brasil, a taxa é de 22 por 100 mil); recuperando brincadeiras infantis; e ocupando as ruas e praças com teatro, dança e música. Na Guatemala, eles não contam com uma política pública como o Cultura Viva e obtêm recursos financeiros por meio de acordos de colaboração internacional, mas querem que o Estado assuma sua responsabilidade reconhecendo a cultura como um direito humano inalienável.
Em agosto de 2011, participei de uma comparsa (passeata festiva) nas ruas da Cidade da Guatemala, a capital; éramos mais de quinhentos manifestantes, gente em perna de pau (lá descobri que a perna de pau era usada pelos maias há milênios), com roupas diferentes, máscaras e muito sorriso no rosto. O que queriam e querem? Pontos de cultura como base e a cultura viva como alavanca para o desenvolvimento sustentável.
Identidade na diversidade
Em outro extremo da América, a Argentina, nova manifestação em novembro de 2010: El pueblo hace cultura. Igualmente, mais de quinhentas pessoas nas ruas. Grupos de Teatro do Oprimido se apresentando “en las calles” (com sotaque bem portenho, em que dois eles formam gê). As avenidas largas de Buenos Aires foram palco de uma linda manifestação com tambores e caminhões artísticos do Calderón Timbal(outro pontão de cultura que preenche com arte a periferia da Grande Buenos Aires). Juntos, saímos do Congresso Nacional e fomos até a Casa Rosada (palácio presidencial), concentrando-nos na histórica Plaza de Mayo e provando que Crear vale la pena!(mais um ponto de cultura). E, para lavar a festa, uma chuva de verão, com direito a sol e arco-íris. Na Argentina, já há edital do governo para seleção de pontos de cultura e projeto de lei no Congresso.
Mais ao norte, no Peru, novas manifestações pela Cultura Viva por una nueva Lima. O governo da capital peruana já está aplicando o programa como estratégia para o desenvolvimento local, e o Ministério da Cultura, após a vitória do presidente Ollanta Humalla, definiu os pontos de cultura como prioridade; há até um sloganno site do ministério: “Punto de cultura, la identidad en la diversidad!”. Tudo começou com uma moça peruana que esteve na Teia de Fortaleza e que leva o nome de pomba: Paloma. Hoje são tantas as pessoas engajadas nas terras incas que nem é possível contá-las. Tudo em tão pouco tempo, e já voam como a cultura viva que se espalha pelo mundo.
Atravessando os Andes e regressando à América Central: Costa Rica. Pura vida! É assim que eles definem a vida por lá, um país de gente corajosa, que há sessenta anos decidiu viver sem forças armadas e priorizar o investimento em cultura e educação. Um país pequeno, com um povo feliz e educado; eles se autodefinem como “ticos”, pois têm o hábito de se referir a tudo no diminutivo. O ministro da Cultura é um músico entre o erudito, o tradicional e o jazz e há anos sai recolhendo ritmos e sons da cultura popular da América Central, depois compõe em coisas novas com a orquestra da Papaya, pura mistura, como a realizada a partir dos prêmios do Interações Estéticas do Cultura Viva. Há redes de cultura no interior do país, na montanha, no litoral, entre vulcões, na capital; surpreendam-se! Em San José (a capital, com 1,5 milhão de habitantes), há vinte teatros com programação regular, de quarta a domingo; e no primeiro Encontro Nacional pela Cultura Viva Comunitária reuniram mais de cem entidades de todo o país. Todos querem ser ponto de cultura; ou melhor: PunTicos de cultura.
Mais ao norte: México. Um país-continente como o Brasil. A terra das cores vibrantes, das mil culturas, das pirâmides e da sabedoria ancestral ameríndia. O ponto de encontro foi a Cidade do México, enorme, e para lá foi gente de todo o país. Na fronteira com os Estados Unidos, uma cidade assolada pelos cartéis do tráfico de drogas e a superexploração da mão de obra em fábricas maquiadoras de produtos importados, Ciudad Juárez, combate o genocídio de mulheres com biblioteca comunitária e ações de leitura e gênero; mais um ponto de cultura que já é. Há outros, na periferia da capital, nos estados de Oaxaca, Chiapas, falando em espanhol ou em idiomas indígenas. Há também um enorme interesse das universidades mexicanas por toda a experiência brasileira. Na Faculdade de Economia da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), a conferência foi “Economia viva e economia criativa?”; na IberoAmericana, sobre cultura digital; e na Universidade do Distrito Federal, sobre cultura e direitos humanos. Pura troca em que fui acompanhado por um ponto de cultura do Brasil, o Vídeo nas Aldeias.
Unindo as partes desta América diversa e ensolarada, a Colômbia. Uma surpresa! Eu próprio, acostumado a combater estereótipos e preconceitos, me surpreendi com aquele país. Um povo tão gentil e amável. Como podem viver em meio a tanta violência? Narcotraficantes, contras, guerrilheiros. Como é possível? Em sua cultura ancestral, vi uma das mais delicadas metalurgias, só trabalhos em ouro, com imagens de flores, pássaros, macacos, nenhuma arma, nenhuma cena de violência. Enquanto visitava essa bela ourivesaria no Museu do Ouro de Bogotá, comparava-a com a cultura grega, romana ou dos demais povos europeus ou asiáticos e me lembrava das imagens de guerra e destruição, das armas e batalhas aterradoras. Com a arte dos primeiros habitantes do El Dorado (os conquistadores espanhóis supunham que a cidade de ouro estava no território da atual Colômbia) só vi beleza e paz. Para eles, os pontos de cultura têm um significado: “desesconder” a Colômbia ancestral e religar o presente com a paz. Em Bogotá, há toda uma articulação da prefeitura municipal pela cultura viva; em Cali, mais de cem grupos defendem os conceitos da cultura viva (autonomia, protagonismo e empoderamento social) e, em Medellín, um dos mais instigantes laboratórios de tecnologias sociais no mundo. Uma cidade que se reinventa pela cultura (5% do orçamento público vai para a Pasta da Cultura), que faz lindas bibliotecas em meio a favelas, que estabelece um compromisso cidadão e trata bem seu povo; assim estão superando as marcas do narcotráfico e das desigualdades. Mas faltava um ponto a aproximar ainda mais governo e povo, um ponto de potência que só se encontra nas comunidades ativas. Quem fez esse ponto e alavanca foi um ponto de cultura que já é, Nuestra Gente, uma casa comunitária em meio à favela, com Jorge Blandon e tantos amigos gentis.
Nuestros hermanos, em todos os países, gente comum a todas as outras que conheci em cada viagem pelo interior do Brasil e agora por nuestraAmérica.
Célio Turino é historiador, escritor e gestor de políticas públicas, foi idealizador e gestor do porgrama Cultura Viva e dos pontos de cultura, tendo exercido diversas funções públicas, entre elas secretário de Cultura e Turismo em Campinas/SP (1990 -92), diretor de Esporte e Lazer em São Paulo/SP (2001-2004) e secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura (2004 – 2010). Autor dos livros Na trilha de Macunaíma: ócio e trabalho na cidade (Senac, 2005) e Ponto de Cultura: o Brasil de baixo para cima (Anita Garibaldi, 2009) entre outros.