Editor do Wikileaks: ‘o jornalismo está sob grave ameaça’
Kristinn Hrafnsson se reúne com Lula e outros líderes da América Latina em busca de apoio político no caso da extradição de Julian Assange
Em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, o islandês Kristinn Hrafnsson, editor-chefe do Wikileaks, defende que a retirada de acusações do governo americano contra o jornalista Julian Assange é a única coisa que pode garantir a liberdade de imprensa, em um momento em que o jornalismo se vê sob grave ameaça.
Hrafnsson se reuniu na última terça-feira (29) com o presidente-eleito Luiz Inácio Lula da Silva, com o objetivo de buscar apoio para o caso de Assange, detido na prisão de alta segurança de Belmarsh, em Londres, desde 2019. Em junho deste ano, o governo britânico aprovou a extradição do jornalista para os Estados Unidos, onde enfrenta acusações embasadas na Lei de Espionagem, que podem ocasionar 175 anos de prisão, abrindo um precedente que coloca em risco a atuação de jornalistas no mundo inteiro.
Le Monde Diplomatique Brasil: Que ameaça a extradição de Assange para os Estados Unidos representa para a democracia e a liberdade de imprensa?
Kristinn Hrafnsson: Representa uma ameaça grave. Todas as grandes organizações de direitos humanos reconhecem essa ameaça, porque conta do precedente que está sendo aberto. Se Julian for extraditado e a acusação contra ele for à Suprema Corte dos Estados Unidos, é de que nenhum jornalista em qualquer lugar do mundo está seguro.
Agora, porque esta é uma perseguição política por natureza, estamos apelando fortemente aos líderes políticos do mundo para enviar um sinal aos Estados Unidos de que isso é inaceitável, que o governo Biden deve retirar as acusações e libertar Julian Assange. Há muito em jogo, e os Estados Unidos precisam agir de acordo com seus próprios princípios, seja o da Primeira Emenda da constituição ou da Liberdade de Imprensa. Eles não podem ser vistos como uma nação confiável se atacarem a liberdade de imprensa em escala global com essa ação contra Julian Assange.
O que vocês desejam realizar conversando com líderes na América Latina nesta viagem?
Nossa passagem pela América Latina tem como objetivo chamar a atenção de líderes políticos, mas também de organizações de direitos humanos e legisladores para o caso de Assange. Esse é um apelo muito amplo, mas quando falamos de liberdade de expressão e liberdade de imprensa todos entendem que devem participar, mesmo que seu objetivo principal seja lutar pelo meio ambiente, pela igualdade de gênero ou qualquer outro tema, porque se você não pode falar sobre eles, é o fim da batalha.
O objetivo é chamar a atenção dos líderes da região para pedir-lhes que exortem o governo Biden a retirar as acusações. Trata-se da tentativa de impor isso em uma frente política, porque não há como lidar com o caso como se fosse uma questão meramente legal. Vimos isso nos tribunais de Londres e não há justiça a ser feita lá na minha opinião. Observei todos os procedimentos nos tribunais de Londres no caso de extradição e concluo que temos que movê-lo para onde as decisões são tomadas.
Um preso político em uma perseguição política representa um problema que só é resolvido por meios políticos, e esse é o trabalho do governo Biden. É ele quem deve dar esse passo e voltar a posição do governo Obama, não sentar com o legado de Donald Trump em seu colo, porque foi Trump quem deu esse passo decisivo na acusação contra Julian Assange, quando o governo Obama havia decidido não fazê-lo por causa das graves implicações da Liberdade de Imprensa e da Primeira Emenda da Constituição. É uma missão urgente e o tempo está se esgotando.
Embora Trump tenha perdido as eleições, Assange ainda está sob ameaça pelo governo americano, já que o próprio Biden o chamou de terrorista no passado. Vocês esperavam uma atitude diferente dele como democrata? Há mais espaço para negociar do que houve com Trump nos últimos anos?
Há duas questões nesse contexto. Você se refere a uma declaração do então vice-presidente Biden no momento acalorado de 2010, quando o Wikileaks expunha os segredos dos Estados Unidos. Isso fez com que muitos falassem duramente sobre Assange, Biden incluso, mas também vimos pessoas, nos últimos 12 anos, que reconsideraram suas posições ao verem a implicação que essa perseguição está tendo atualmente.
Enfatizo o fato de que, hoje (28) marca o aniversário de 12 anos do Cablegate – quando o WikiLeaks divulgou telegramas classificados enviados ao Departamento de Estado dos EUA. Naquela ocasião, nossos cinco parceiros de mídia originais, que eram Le Monde, El País, Der Spiegel, The Guardian e New York Times, emitiram uma declaração editorial conjunta pedindo a retirada das acusações contra Julian Assange. Eles já haviam se unido ao nosso lado.
O segundo ponto que quero fazer é sobre algo que talvez não tenha recebido muita atenção: algumas semanas atrás, o Procurador-Geral dos Estados Unidos, Merrick Garland, emitiu novas diretrizes de imprensa ao Departamento de Justiça sobre como lidar com o mídia, implicando uma importante reviravolta da posição anterior que foi demarcada sob Donald Trump. O documento implica no reconhecimento da importância de que jornalistas possam trabalhar com segurança de fontes e de denunciantes.
Muitos apontaram que essas novas diretrizes sinalizam que o caso de Julian Assange nunca deveria ter sido levado adiante. Portanto, a movimentação do governo Biden neste momento é esta: Donald Trump foi longe demais em sua administração do caso Assange. Isso sinaliza que a liberdade de imprensa é imprescindível, e retirar as acusações contra Julian é a única coisa que a garante.
Como está Assange no momento? Há notícias de que sua saúde está piorando. Como isso muda as ações que você vem organizando por sua liberdade?
Isso apenas intensifica a urgência. Estamos falando de uma avaliação médica feita há dois anos pelos mais ilustres profissionais do Reino Unido, apresentada aos tribunais e nem sequer contestada pelos juízes. Eles concordaram com a avaliação de que o caso contra Julian representa uma grande ameaça à sua vida. Sua saúde mental e física piorou a ponto de ele correr o risco de tirar sua própria vida, e é claro que as coisas não melhoraram desde então. Ele ainda está preso em uma masmorra nojenta no sudeste de Londres. O único jornalista preso político na Europa Ocidental, esse é o vergonhoso legado do Reino Unido neste momento.
Ele passou a maior parte dos últimos 12 anos sem liberdade, em prisão domiciliar para começar, por sete anos em uma pequena embaixada sem acesso à luz solar ou a um jardim, e agora três anos e meio em uma Prisão de Segurança Máxima em Londres, entre terroristas e assassinos. Estamos falando de um intelectual, um jornalista e um editor. É absolutamente inaceitável e sua saúde está em estado grave, o que aumenta a urgência de acabar com isso.
Qual é o legado de Assange e do Wikileaks e como isso muda se ele for extraditado?
O legado do Wikileaks é impecável. Ele provou ser um serviço enorme ao jornalismo do século XXI, inspirando e ampliando novas abordagens. Produzimos mais histórias premiadas do que as grandes organizações de mídia poderiam sonhar, então o legado está aí. É um legado de simplesmente fornecer a verdade, como os jornalistas devem fazer.
A reação ao julgamento de Assange, por outro lado, conta uma história ainda maior: os últimos 10 anos que passamos neste processo de perseguição revela a verdade sobre a intensa luta encampada contra o jornalismo honesto, contra a liberdade de imprensa, contra qualquer um que ameace os interesses dos impérios.
Como você avalia o atual momento de liberdade de imprensa no mundo?
Estamos vivendo um momento muito precário para a liberdade de imprensa. O jornalismo está sob grave ameaça em muitas frentes, especialmente quando você considera que nos últimos anos passamos por tempos de Covid e de guerra, o que pressiona os jornalistas a fazerem seu trabalho corretamente. Temos inclusive pressão interna, dos militares e dos serviços de inteligência que usam a desinformação como arma.
Legalmente, os desafios também estão se acumulando. O jornalismo está ameaçado em muitas partes do mundo e não está melhorando. Por causa desses desafios, acredito que é muito importante dar um passo na direção certa e criar um divisor de águas na resistência. Esse passo é a libertação de Julian Assange e posso garantir que ele, como intelectual, pode participar de uma discussão poderosa sobre para onde ir a partir daqui no que diz respeito à segurança dos interesses da imprensa em todo o mundo.
Carolina Azevedo faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.