Educação básica no contexto das migrações
Como crianças e adolescentes migrantes, incluindo refugiados, vivenciam a educação na região norte do Brasil
Cerca de 12 mil migrantes, grande parte composta por crianças e indígenas, chegam ao Brasil mensalmente pelas cidades de Pacaraima e Boa Vista, Roraima, de acordo com a Operação Acolhida, que atende esse público na fronteira com a Venezuela. Crianças e adolescentes migrantes têm o direito à educação assegurado no Brasil. A Resolução CNE/CEB nº 1, de 13 de novembro de 2020, prevê o direito de matricular crianças e adolescentes migrantes, refugiados, apátridas e requerentes de asilo no sistema público de educação brasileiro. Considerando que o acesso à educação é fundamental para o acesso a outros direitos, minha pesquisa enfoca em como as crianças e adolescentes migrantes, includindo refugiados, vivenciam a educação na região norte do Brasil e a implementação e adaptação da resolução nas escolas do Amazonas, Roraima, Pará e Tocantins.
Embora o direito à educação seja protegido pela Resolução CNE/CEB nº 1 de 2020, ainda não há uma discussão séria sobre as realidades e os desafios enfrentados no contexto da educação básica e das migrações, a nível nacional, e principalmente sobre o contexto da região Norte. A Resolução foi crucial para facilitar o acesso à educação por garantir a matrícula de crianças e adolescentes nas escolas brasileiras na educação básica compulsória e estabelecer que a matrícula não pode ser impedida por falta de documentação. Contudo, existem relatos de que algumas escolas ainda recusam matrícula se as famílias não apresentarem documentação. No Amazonas, a gestora de uma escola relatou que recebe alunos que tiveram matrículas rejeitadas em outras instituições públicas por não apresentarem documentos. Apesar da Resolução, crianças migrantes, inclusive refugiados, enfrentam desigualdades no acesso à educação, na aprendizagem, na permanência na escola e na sobrevivência por causa de fatores como pobreza, falta de moradia adequada, desemprego entre chefes de família, abandono afetivo e trabalho infantil.
Barreiras ao acesso à educação
Kinan*, um menino venezuelano no ensino fundamental, me disse: “tia, estou com sono.” Ele e a mãe estão em situação de rua assim como muitas famílias venezuelanas. É comum observar famílias migrantes venezuelanas cozinhando com lenha e fogo ao relento nas ruas de Pacaraima e Boa Vista. Milhares de pessoas dormem em abrigos apoiados pela Operação Acolhida, ACNUR e outros parceiros. No entanto, observei que durante o dia os abrigos ficam fechados e as pessoas desabrigadas pelas ruas. Em Boa Vista, a gestora de uma escola onde quase 50% dos alunos são imigrantes relatou que tem uma família recém-chegada vinda da Venezuela. Durante a matrícula, perguntaram o endereço deles e o pai disse que ficavam em uma calçada em frente a uma casa. Ele descreveu a casa e deu alguns pontos de referência, caso a gestora precisasse encontrá-los. De acordo com a gestora, o pai acrescentou que se alguém da casa os expulsasse de lá durante o dia, eles procurariam “alguma árvore para ficar embaixo”. Somente nesta escola específica há pelo menos seis famílias em situação de rua.
Aos 9 anos de idade, uma criança venezuelana foi matriculada pela primeira vez em uma instituição de ensino em novembro de 2023. A criança, que estava em situação de rua debaixo de uma ponte com a mãe, ainda não é alfabetizada e nunca tinha frequentado uma escola antes em nenhum país. Crianças migrantes em situação de rua, e mesmo aquelas que dormem em abrigos, têm dificuldade para acessar banhos e roupas limpas todos os dias. Essas instabilidades criam barreiras que dificultam o acesso à educação. Kinan não descansa o suficiente à noite e passa as manhãs com a mãe, pedindo ajuda e trabalhando na sinalização no centro da cidade onde moram. Portanto, embora estude à tarde, Kinan chega à escola muito cansado e costuma dormir durante as aulas. Ele não é o único. Uma professora em Boa Vista explicou que ela e outras professoras deixam os alunos descansarem caso adormeçam no início das aulas, porque elas sabem que algumas crianças não conseguem descansar o suficiente à noite em razão da precariedade das suas condições de vida.
Famílias que vivem em extrema pobreza têm dificuldade em priorizar a educação porque devem se esforçar para sobreviver todos os dias. Muitos jovens faltam ou abandonam a escola pois precisam trabalhar. Em Belém e Manaus, em vez de estudar, muitas crianças e adolescentes Warao precisam fazer “coleta” nas ruas, pedindo dinheiro, vendendo artesanato e outros produtos para contribuir com a sobrevivência de suas famílias. Até mesmo àqueles que frequentam escolas regularmente são negados o direito de aprender em seu nível mais básico: ler, compreender e escrever eficazmente por causa de fatores estruturais e desigualdades socioeconômicas.
Subfinanciamento e despreparo do sistema educacional
A Resolução CNE/CEB nº 1 de 2020 foi um passo essencial na proteção do direito à educação no contexto das migrações no Brasil. Contudo, é necessário que haja medidas que garantam que todas as escolas sigam a norma de forma consistente. Apesar de ainda sofrerem com estruturas físicas inadequadas e recursos limitados, as escolas públicas oferecem mais do que educação aos seus alunos: comunidade, assistência odontológica, vacinação e café da manhã, além da merenda escolar. Converso diariamente com professores que pagam com o seu próprio salário material escolar para as crianças e insumos para apoiar suas práticas pedagógicas. Em uma escola de Boa Vista, os professores organizaram-se para doar roupas e calçados a crianças recém-chegadas da Venezuela.
Ademais, uma educação que corresponda às necessidades das crianças migrantes que chegam com práticas linguísticas, culturais e vivências diversas não é garantida. Dependendo do ano, mais de 50% dos alunos matriculados em qualquer escola pública de Boa Vista e Pacaraima podem ser falantes de espanhol, warao e criolo; e muitos entre eles, mesmo tendo idade suficiente, ainda não foram alfabetizados em sua primeira língua. Considerando que a matrícula não pode ser impedida como determina a resolução, algumas salas de aula podem ter mais de trinta alunos, a maioria ainda aprendendo comunicação básica em português, e um educador que fala e entende apenas português. Professores e gestores escolares que participam do estudo indicaram que a barreira linguística, falta de recursos e apoio adicional na escola e dentro da sala de aula são algumas das maiores dificuldades que eles enfrentam para desempenharem suas funções adequadamente. A maioria dos professores que ensina crianças migrantes não tem experiência ou especialização anterior relevante e, ao mesmo tempo, recebe apoio mínimo na formação ou desenvolvimento profissional.
Para que as escolas coloquem em prática a Resolução CNE/CEB nº 1 de 2020 de forma adequada e oportuna mais políticas nacionais e municipais são necessárias para garantir que o direito à educação possa ser efetivado para além da matrícula. Os profissionais da educação precisam de apoio tanto para ensinar português a falantes de outras línguas, como para atender às necessidades de uma comunidade estudantil diversificada. O Ministério da Educação deve desenvolver e adotar políticas nacionais que apoiem as escolas e os educadores com medidas para diversificar a oferta escolar e investir na estrutura física das escolas a fim de acomodar um número cada vez maior de alunos migrantes.
A Resolução, embora limitada, tenta promover a inclusão escolar. No entanto, é urgente que as autoridades levem a sério a questão das crianças migrantes em situação de rua, principalmente em Pacaraima e Boa Vista. As políticas públicas precisam abordar as migrações internacionais como realidade permanente, não apenas como uma situação de emergência ou humanitária de natureza temporária, mas a longo prazo. O acesso à educação está relacionado ao acesso a outros direitos fundamentais. Portanto, crianças e suas famílias precisam de apoio para acessar seus direitos, o que inclui priorizar o bem-estar das crianças, ouvi-las e colocar suas necessidades no centro das políticas de educação e migração.
Jáfia Naftali Câmara, brasileira do Tocantins, migrante e pesquisadora no Centre for Lebanese Studies (CLS), Líbano e University of Cambridge, Inglaterra, é doutora em educação pela University of Bristol com uma tese intitulada “Refugee Youth and Education: Aspirations and Obstacles in England” [Juventude refugiada e educação: aspirações e obstáculos na Inglaterra], mestra em Ensino de Inglês para Falantes de Outras Línguas pela New York University e bacharel em Literatura Inglesa, Crítica e Teoria pela University of California, Davis.
*Kinan é um pseudônimo.