El Salvador: uma esquerda conciliadora
Inspirado em Lula e Obama, o presidente Mauricio Funes completa agora cem dias de mandato. Com uma herança econômica difícil, ele reafirma que seu governo será de “união nacional” e lança um novo chamado para a construção de um país “menos injusto”, tentando mediar os conflitos entre seu partido e o empresariado
Evidentemente, cem dias não são suficientes para determinar o que fará o novo governo salvadorenho nos próximos cinco anos de seu mandato. Mas talvez sirvam para entender o que ele não quer e o que não pode fazer. Três meses depois da posse do presidente Mauricio Funes, candidato pela Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN, esquerda), tudo parece indicar que o homem que encarna a esperança de mudança naquela parte da América não dispõe de uma ampla margem de manobra para garantir as reformas estruturais prometidas durante sua campanha eleitoral.
Primeiro, porque herda uma situação econômica muito desfavorável. A direitista e neoliberal Aliança Republicana Nacionalista (ARENA), que governou durante os últimos 20 anos, deixou um legado de grande fragilidade financeira a seus sucessores. A arrecadação fiscal não é suficiente para empreender e sustentar políticas sociais significativas – não chega nem a 12% do Produto Interno Bruto e o déficit orçamentário acumulado até 2008 é de quase 7% do PIB. De maneira sistemática, os governos anteriores concederam às grandes empresas do país e à classe média alta isenções e incentivos que agravaram as desigualdades e esvaziaram o caixa do Estado.
Um exemplo: o grupo Poma, principal fortuna do país, obteve uma isenção total de impostos para seus projetos turísticos em uma zona em plena expansão, na parte oriental do país, perto do novo porto da União, construído com cooperação japonesa. El Salvador é também um dos poucos países que não contam com imposto predial. Além disso, em seu afã de reduzir os custos da empresa privada e da classe média, o Estado “arenista” subvencionou vários setores e produtos básicos. O tanque de gás de 20 litros custa aqui menos da metade do que na Nicarágua ou no México. As grandes empresas de transporte público também ganharam ajuda. Vide o preço da água, que é inferior a seu custo. Claro, essas subvenções beneficiam também os mais pobres, mas em primeiro lugar reduzem os custos das empresas.
Resumindo, os governos anteriores intervieram na economia para favorecer e consolidar os bancos, as companhias privadas, as multinacionais e a classe média. Como a esquerda define em poucas palavras: a ARENA e as empresas privadas salvadorenhas impuseram ao país uma concepção patrimonial do Estado.
Por outro lado, a dívida externa afoga as finanças públicas: US$ 10 bilhões a longo prazo. O novo governo terá de reembolsar US$ 1,2 bilhão daqui até 2011.
Finalmente, a recente crise da economia dos Estados Unidos teve consequências dramáticas para o setor exportador salvadorenho que depende, em mais de 50%, do mercado norte-americano. As movimentações do setor diminuíram 13% e o desemprego deve alcançar, em breve, patamares alarmantes.
“Não podemos nem sonhar com desenvolvimento econômico antes de cinco anos. O problema hoje é de sobrevivência econômica, o objetivo é manter pelo menos os níveis de emprego dos últimos anos”, diz Atilio Montalvo, coordenador de assessores do grupo parlamentar da FMLN.
Considerando que o Executivo não conta com uma maioria no Parlamento para votar suas reformas, o que pode fazer o governo de Mauricio Funes nessas circunstâncias adversas para responder à urgente demanda dos pobres e marginalizados do país, que chegam a 48% de uma população de 6,5 milhões de habitantes?
As primeiras medidas tomadas durante estes cem dias manifestam uma real “opção pelos pobres”, mas são como um esparadrapo sobre uma perna ferida. Ainda é muito pouco eliminar, nos hospitais públicos, as cotas que os pacientes precisavam pagar para serem atendidos ou entregar remédios gratuitos. Também não é suficiente dar às crianças mais pobres dois uniformes, um par de sapatos e material para que elas frequentem a escola.
Para implementar sua política, Mauricio Funes enfrenta um obstáculo maior: não controla o Poder Legislativo, dominado pela direita e pelo centro. A aprovação de parte importante dos orçamentos destinados à ação social dependerá da boa vontade de seus adversários. Assim, as novas autoridades se comprometeram a não dar um passo adiante sem acordos ou negociação com a oposição. Esta é a única opção que fica absolutamente clara ao término dos cem primeiros dias de governo.
A população espera que Funes determine e defina seus objetivos. O plano quinquenal que mostrará os objetivos governamentais não será publicado antes de dezembro. Enquanto isso, os ex-guerrilheiros, membros da FMLN, que formam o governo, sustentam um discurso bastante moderado.
Gerson Martínez, ex-dirigente das Forças Populares de Libertação – um dos cinco partidos membros da FMLN durante a guerra civil de 1981 a 1992 –, atualmente ministro de obras públicas, afirmou: “Nosso programa é profundamente social e se o realizamos significaria a interrupção do modelo neoliberal, mas não uma revolução.
É somente o início de um novo modelo capitalista. Este não é um governo socialista nem o presidente apresentou um programa socialista.”
Para Marcos Rodríguez, secretário-adjunto de assuntos estratégicos da presidência, o programa de governo é ainda menos ambicioso: “O objetivo desses cinco anos é criar um Estado moderno onde os pobres tenham voz na institucionalidade”. Sindicatos, comunidades e associações da sociedade civil serão consultados, pela primeira vez em décadas, para detalhar as novas iniciativas governamentais.
Resumindo: trata-se de repensar, reorganizar e ampliar políticas de saúde e educação, de fomento ao desenvolvimento para os pequenos e médios produtores e de obras de infraestruturas, financiando-as com os orçamentos disponíveis e a cooperação internacional, sem ter de modificar os grandes equilíbrios fiscais e afetar a iniciativa privada.
A política do possível
Para me mostrar que esta política do “possível” pode funcionar, o ministro Martínez me leva a Nueva Concepción, no estado de Chalatenango – zona de pequenos pecuaristas, potencialmente rica, mas abandonada pelos governos anteriores. Os interessados reclamam há 20 anos uma ponte que facilitaria a comercialização de sua produção de leite para a capital. A ARENA não se interessou nunca por esse projeto porque a área não conta com nenhuma grande fazenda vinculada ao governo anterior. Parte dos homens com quem me encontro já votava na Frente e todos continuarão apoiando se o projeto for realizado. A história é reveladora da estratégia elaborada por Mauricio Funes e seu homem de confiança, Hato Hasbun, secretário de assuntos estratégicos: “Avançar passo a passo com as pessoas para mudar a correlação de forças. Construir as condições de uma mudança real e torná-la irreversível porque é aceita pela maioria”.
Muitos setores de direita concordam com isso, por enquanto. Ofereceram um período de trégua a Funes porque o governo da mudança comprovou de muitas maneiras que não quer entrar em confronto com a oposição.
Como primeira mostra de boa vontade, a equipe do governo constituído por Mauricio Funes é formada por amplos setores que não são de esquerda.
O governo reservou postos-chave para “Os Amigos de Funes”, uma organização informal que participou e financiou a campanha do futuro presidente, junto com a FMLN. Muitos de seus membros são ex-altos funcionários dos governos anteriores, empresários ou ex-funcionários internacionais. O novo ministro da Fazenda, Juan Ramón Carlos Enriques Cáceres, é ex-presidente da Associação de Banqueiros de El Salvador e antigo diretor de banco. É herdeiro de uma grande família de cafeicultores e seu irmão foi responsável por articular a exportação de café do país, função que exerceu de forma brilhante.
O diretor da Comissão governamental encarregada da produção de eletricidade, a CEL, é membro de uma poderosa família empresarial, o grupo Salumé, proprietária de “Molinos del Salvador”, de franquias de fast-food e de uma distribuidora de produtos de consumo popular. Já era diretor da CEL no mandato do último presidente “arenista”, Antonio Saca, e permaneceu. Durante a campanha eleitoral, seu pai, líder da principal loja maçônica de El Salvador doou US$ 3 milhões e uma casa de campanha para Mauricio Funes. O secretário jurídico da presidência é um economista que assessorou o Scotiabank durante vários anos. O ministro da agricultura trabalhou muitos anos no Banco Mundial. Tudo isso foi visto de maneira muito positiva pela Fusades, o think tank da “grande empresa moderna” e por amplos setores da IP.
Além disso, a maioria das decisões importantes que Funes tomou foram discutidas e acordadas com a oposição de direita e a iniciativa privada:
• a nomeação dos governadores departamentais foi negociada com os partidos de oposição (ARENA, direita; Partido de Conciliación Nacional – PCN -, direita; Partido Democrata Cristão);
• Mauricio Funes desautorizou seu vice-presidente, Salvador Sánchez Ceren, ex-secretário geral da FMLN, quando este decidiu, sob a pressão da rua, aumentar notavelmente a entrega de sementes subvencionadas para os pequenos agricultores;
• o presidente manifestou de maneira clara durante a crise de Honduras que não queria se alinhar com Hugo Chávez. Condenou o golpe de Estado, mas aceitou a mediação costa-riquenha no conflito e nunca responsabilizou os Estados Unidos pelo levante militar. Quando o presidente Manuel Zelaya regressou discretamente a Tegucigalpa em 21 de setembro, Mauricio Funes reconheceu que seus serviços de inteligência tinham detectado que o avião do presidente hondurenho realizara uma escala técnica no aeroporto de Comalapa-San Salvador na noite anterior mas insistiu que não teve nenhum contato pessoal com ele. Enquanto isso, a imprensa salvadorenha revelava que vários dirigentes da FMLN tinham se encontrado com Zelaya no aeroporto. E se é certo que restabeleceu relações diplomáticas com Cuba um dia depois de sua posse, não deixou de esclarecer publicamente, desde então, que seus modelos políticos são Lula, Obama e Monsenhor Romero, o bispo de San Salvador assassinado em 1980 pelos esquadrões da morte. Sua relação com os Estados Unidos, até o momento, é ótima e ninguém duvida que vai manter distância do presidente Chávez e seu modelo de socialismo do século XXI.
• o novo presidente confirmou que o acordo e a negociação com a oposição serão as principais ferramentas de seu governo.
Plano anticrise
Quais são as reais intenções de Mauricio Funes? Todos os analistas e governantes consultados concordam em afirmar que não vão além de construir em El Salvador um marco social-democrata de mercado, um país livre de corrupção e de gestão transparente. Uma nação que acabe com a concepção patrimonial do Estado que favoreceu as empresas privadas por tanto tempo.
Mas em um país tão injusto como El Salvador, alcançar os principais objetivos e orientações do “plano anticrise” poderia constituir uma verdadeira “revolução”.
O governo publicou as grandes linhas deste plano:
• a criação de um banco estatal para o fomento produtivo, de um sistema que facilite o acesso ao crédito para os empresários pequenos e médios, e a distribuição a preços de custo de fertilizantes e insumos agrícolas. Estas medidas têm o objetivo de retomar o desenvolvimento da parte do setor agrícola, abandonado pelos governos anteriores – com exceção das grandes fazendas de café e açúcar;
• a construção de 25 mil casas das quais 5 mil serão financiadas pelo setor bancário;
• a consolidação de um sistema de proteção universal que tende a tirar da pobreza extrema 150 municípios urbanos e rurais (dos 250 em total), investindo em infraestrutura, saúde, educação, pensões para desempregados etc.
A intenção é clara, mas será preciso encontrar soluções para financiar esses projetos.
Curiosamente, na peculiar situação de El Salvador, o melhor aliado de Mauricio Funes poderia ser, a curto prazo, seu adversário de direita. O sistema econômico e social estabelecido pela ARENA e, particularmente por seu último presidente, Saca, esteve tão marcado por abusos e corrupção que uma parte da direita “moderna” está disposta a corrigi-lo. Esta “correção”, dizem vários analistas, na situação particular do país, permitiria em si satisfazer uma parte da população.
As medidas fiscais serão um bom critério para analisar de que tamanho poderia ser a “correção”. O último ministro de Fazenda do governo anterior, Guillermo López Suárez, tinha proposto uma reforma para eliminar privilégios fiscais concedidos às grandes empresas. Em particular, a isenção de impostos para certos projetos (como o caso dos empreendimentos hoteleiros da família Poma perto do porto de La Unión) e as subvenções fiscais aos exportadores. A mencionada reforma foi abortada mesmo tendo o apoio dos setores “ilustrados” da direita.
O novo governo se propôs então a retomar parte da iniciativa. Assim, Mauricio Funes anunciou sua primeira medida fiscal, que entrará em vigor em janeiro de 2010, sem provocar comoção na oposição: o abandono do “drop back”, a modalidade que prevê o reembolso, pelo Estado, dos impostos à exportação pagos pelas grandes empresas.
O pacto fiscal que promete negociar o governo com a empresa privada e a direita não implicará ruptura, mas em um país tão desigual, poderia permitir arrecadar somas significativas mediante o combate à esquiva e à evasão fiscal praticada pelos bancos e pelas multinacionais, mediante a racionalização dos subsídios à eletricidade, gás liquefeito, transporte e água. Mas não contemplará nem um aumento de imposto sobre a renda das empresas, nem una taxa predial ou sobre a mais-valia dos terrenos beneficiados pela construção de infraestruturas públicas.
Todas medidas consideradas como básicas por qualquer analista de tendência social-democrata.
Nessas condições, a realização dos principais objetivos do novo governo dependerá da cooperação internacional e de grandes empréstimos do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Não resta outra saída a não ser se endividar mais. El Salvador vai precisar de US$ 1,5 bilhão para os próximos cinco anos. Discretamente, certos ministérios começaram a renegociar a dívida externa e as conversas com o BM e o BID se intensificam. O BM, ao que parece, já se comprometeu com US$ 250 milhões.
Além disso, será preciso engenhosidade do presidente e capacidade para atrair a ajuda dos grandes países da América Latina. Mauricio Funes mantém uma relação próxima com Lula. Está casado com Wanda Pignatto, uma brasileira que representou o Partido dos Trabalhadores (PT) em El Salvador antes de se converter em adida cultural do Brasil no país. Durante a campanha eleitoral e depois de assumir o poder, visitou várias vezes o mandatário brasileiro. De sua última viagem a Brasília e São Paulo, no começo de setembro, trouxe boas notícias para casa: o Brasil outorgará um crédito de US$ 800 milhões para desenvolver o sistema de transporte local. E os dois países estão estudando a instalação, em El Salvador, de várias empresas brasileiras que, por sua vez, poderiam exportar para os Estados Unidos no marco do Tratado de Livre Comércio existente entre as duas nações. Tudo isto deveria se traduzir em mais emprego e mais ingressos fiscais para o país.
A relação de Mauricio Funes com a Venezuela de Hugo Chávez é mais tensa. O novo governo não tem a menor intenção de se integrar à ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas), apesar de a direção da FMLN manter excelentes relações com o mandatário. Mas tampouco quer renunciar à ajuda venezuelana, comprovada pela experiência da Albapetróleos – uma empresa constituída por 20 municípios dirigidos pela FMLN e associada à Petrocaribe que importa e vende em El Salvador gasolina venezuelana a um preço inferior ao do mercado. Dispõe de 40 postos de gasolina em todo país e, no final de 2009, abastecerá 15% da demanda. Mauricio Funes anunciou que El Salvador integrará a Petrocaribe, mas somente como observador.
Funes conseguirá convencer a população e uma parte da FMLN de que a mudança está na ordem do dia? E quais serão as reações da FMLN e de suas bases frente a esta política tão comedida?
Os principais dirigentes da Frente continuam apoiando publicamente o governo, enfatizando que suas grandes orientações correspondem ao programa de campanha. Mas é inegável que começou uma tensa disputa entre o partido e o governo – algo que a imprensa de direita, dominante no país, não deixa de lembrar todo dia. Embora o programa de governo proposto pela FMLN durante a campanha não entre em contradição com os planos elaborados pelos estrategistas do presidente, a direção da FMLN – seu secretário-geral que veio da guerrilha e certos setores qualificados de “chavistas” em particular – manifestaram de mil e uma maneiras que a relação com o presidente não é totalmente harmônica. Tanto que importantes prefeitos de esquerda declararam que a FMLN não é “o partido do governo”. Os pontos de fricção, até o momento, se limitam à maneira de governar do novo presidente. Sua insistência em que cada passo deve acontecer no marco de um permanente acordo com a oposição de direita começa a criar enfrentamentos sérios.
Por exemplo, no momento de nomear governadores – os representantes do Executivo nos 14 departamentos do país – o presidente não aceitou nomear vários governadores propostos pela Frente. Durante a campanha, a FMLN tinha chegado a um acordo com Funes, que em caso de vitória o partido assumiria responsabilidades locais em todo o território para poder vigiar e se contrapor às iniciativas da direita que até hoje controla comandos regionais na polícia, na justiça, educação e saúde. Mas Funes não se ateve ao combinado.
A nomeação do fiscal geral da República gerou outro enfrentamento. Mauricio Funes insistiu em mediar a disputa entre candidatos da Arena e da Frente para este posto enquanto mantinha na função, como interino, o fiscal nomeado pelo presidente anterior. Como consequência, a designação do funcionário demorou quase quatro meses, o que agradou a muitos setores de direita e, claro, irritou a esquerda.
O projeto da nova represa hidrelétrica de Chaparral – aprovado pelo governo anterior – também alimenta as frustrações das bases da FMLN. Centenas de agricultores pobres que serão afetados pela obra reivindicam uma compensação superior à prevista pelo plano de indenização atual, que consigam comprar novas terras. Ficaram concentrados durante três dias em frente à sede da Presidência, em San Salvador. O governante se negou a recebê-los. Antes de se retirarem, pintaram uma parede na frente da casa de governo: “Funes, você se esqueceu dos pobres!”
Além disso, muitos debates de fundo foram postergados pela campanha eleitoral e podem ressurgir rapidamente fazendo-se com que o partido se enfrente com o governo. Antes de escolher Mauricio Funes como candidato, a FMLN defendia a desdolarização da economia do país – o governo anterior abandonou o colón como moeda nacional em 2001 – e uma reforma fiscal de fato. Também pedia que a concessão do principal porto de El Salvador – La Unión – construído com cooperação japonesa, seja atribuída a uma empresa mista controlada pelo Estado.
Reclamava a renegociação do Acordo de Livre Comércio com os Estados Unidos. Sobre todos esses pontos, as discrepâncias entre Executivo e parte da FMLN parecem, a longo prazo, insuperáveis.
Por enquanto, apesar de Mauricio Funes e a direção da FMLN não formarem uma equipe unida, os atritos entre a presidência e o partido são negociáveis na medida em que um dos homens de confiança do presidente, Hato Hasbun, o secretário de assuntos estratégicos da Presidência, é também membro da comissão política da FMLN e mantém uma interlocução aceitável com a direção de seu partido.
Possivelmente, o maior desafio do presidente a curto prazo seja não cumprir as promessas de campanhas feitas aos pobres. A situação, em matéria de segurança pública, é insustentável e tanto a direita como seus próprios eleitores exigem resultados rápidos em sua resolução. O assassinato de Christian Poveda, fotógrafo e documentalista franco-espanhol, no dia 2 de setembro, por supostos membros da Mara 181 jogou uma crua e renovada luz sobre o problema das gangues que se encastelaram nos bairros populares da grande San Salvador e nas principais cidades do país. O cotidiano dos salvadorenhos se tornou um pesadelo. Aos 8 ou 12 assassinatos diários – indíce alto para um país de 6,5 milhões de habitantes –, é preciso somar a prática sistemática de extorsão contra artesãos, pequenos comerciantes, vendedores ambulantes, transportistas, produtores agrícolas. Os “mareros” e os grupos criminosos comuns fustigam a população sem diferença de classe. Não passa um dia sem que um encanador ou uma empregada doméstica tenham de pagar “o lucro” exigido pela delinquência. Em todo o país, os pequenos agricultores e pecuaristas andam armados e se dizem prontos para organizar milícias privadas se o governo “não restabelecer a lei”.
A secretaria de assuntos estratégicos e de segurança da Presidência estuda um novo plano de luta contra o crime que abandonaria a estratégia de “mão dura” contra as maras, implementada pelo último presidente “arenista”. Descartariam os grandes operativos contra os bairros controlados pelas gangues e apostaria em combatê-las com mais trabalho de inteligência e intervenções cirúrgicas contra os líderes dessas organizações, além de medidas contra a miséria e a exclusão.
Mauricio Funes terá também de enfrentar a ameaça do narcotráfico e da corrupção, no momento muito menos evidente aqui do que na Guatemala ou no México, mas ainda assim preocupante. Apareceram, nos últimos anos, grupos de narcotraficantes muito estruturados, abrigados por comandos intermediários da Polícia Nacional Civil e da Promotoria. Dois deputados do direitista Partido de Conciliación Nacional foram considerados culpados por lavagem de dinheiro e o proprietário da maior agência de segurança privada do país, alto dirigente da ARENA, foi investigado antes de aparecer morto a tiros de maneira misteriosa. Diante disso, um famoso ex-guerrilheiro foi encarregado por Mauricio Funes para repensar por completo o sistema de inteligência do Estado.
Em 15 de setembro, celebrando o dia da Independência de El Salvador, Mauricio Funes reafirmou que seu governo é de “união nacional” e lançou um novo chamado para a construção de um país “menos injusto”. A maioria dos ex-comandantes guerrilheiros da FMLN consultados aceita tanta prudência. A aposta da esquerda em El Salvador é a longo prazo. Este governo, dizem, deverá ampliar e consolidar passo a passo sua base eleitoral para ganhar as eleições legislativas e presidenciais de 2012 e poder, enfim, começar a promover reformas estruturais em um segundo mandato. A direita mais recalcitrante entendeu. O novo líder da ARENA, o ex-presidente Cristiani, nega-se a dar o benefício da dúvida a Mauricio Funes.
Aproveitou a celebração dos cem dias do novo governo para lançar a contraofensiva, apoiado pela maioria dos meios locais. “O país sente que vai à deriva”, sentenciou em uma solene coletiva de imprensa.
No final, apesar do esforço conciliador de Mauricio Funes, as coisas estão claras em El Salvador. Como em Honduras, uma parte considerável da direita e as empresas privadas se posicionam contra a mudança, por menor que ela seja.
*Jean François Boyer é diretor de Le Monde Diplomatique no México, América Central e Estados Unidos.