Elites argentinas e os indígenas
O que significa, na Argentina, o presidente dizer que os argentinos se originam de barcos repletos de europeus?
Uma declaração para espanhol ver
Em 9 de junho, o presidente argentino Alberto Fernández, peronista kirchnerista, em encontro oficial com o premiê espanhol, proferiu declaração com imediata repercussão. Disse que os mexicanos vieram dos indígenas, os brasileiros da selva e os argentinos de barcos que vinham da Europa, creditando a Octávio Paz uma comparação elaborada por um roqueiro argentino. Essas observações sobre mexicanos e brasileiros, carregadas de preconceitos contra os povos indígenas e afrodescendentes, sustentam um imaginário sobre a Argentina e a América Latina naquele país.
Ao declarar, naquele diálogo entusiasmado com o premiê espanhol, que as origens argentinas provinham de navios repletos de europeus, Fernandéz não apenas procurou aproximar os vínculos com o representante da antiga metrópole, como demonstrou a força e vitalidade de narrativa sobre a Argentina. Esta foi construída ainda no século XIX e definia aquele país como uma “Europa na América do Sul”: um país “branco e civilizado”, em oposição à América Latina indígena e negra (como o México e o Brasil).
A história do país vizinho, ainda tão pouco conhecida no Brasil, não se resume apenas a essa imagem de uma Argentina branca e europeia. Aquela foi uma região periférica no Império Espanhol durante o período colonial, com relações tensas e intensas com os povos indígenas. A própria cidade de Buenos Aires, fundada em 1536, foi abandonada e destruída, em 1541, devido à hostilidade dos povos nativos, sendo refundada somente em 1580.
O que hoje em dia é o território ocupado pelo Estado argentino abarca histórias muito distintas, violentas e contrastantes. Há desde áreas em que houve atuação de missionários jesuítas entre os povos guarani (não é para menos que uma de suas províncias se chama Misiones), até áreas andinas com costumes e tradições próximas às da Bolívia e do Peru, além da Patagônia e da Terra do Fogo, com pouco contato com os brancos até o final do século XIX.
No entanto, Fernandéz falava e pensava naquilo que é tido como “a essência da nação”: a Argentina dos pampas, em especial Buenos Aires, onde vive metade da população do país, de onde partem as narrativas nacionais, onde estão a grande imprensa, as elites políticas, econômicas e intelectuais. A declaração do presidente diz muito sobre como os portenhos veem a Argentina, as outras províncias e a si mesmos.
O que significa, na Argentina, o presidente dizer que os argentinos se originam de barcos repletos de europeus?
O genocídio indígena na Argentina
Até as vésperas da Guerra do Paraguai (como a conhecemos por aqui), entre 1865 e 1870, não havia Estado centralizado na Argentina, mas sim uma confederação de províncias em constante guerra. Não apenas os grupos brancos dominavam bem pouco do que hoje é território argentino (uma faixa de terras conectando Buenos Aires à Mendoza, na fronteira com o Chile, no eixo leste-oeste, e Buenos Aires e Santa Fé à Assunção e à Bolívia, no eixo sul-norte), como também, dependiam e mantinham relações econômicas, sociais e políticas com cacicados indígenas independentes e soberanos nos pampas e nos Andes.
Os indígenas controlavam importantes rotas comerciais de conexão com o Chile, que eram centrais para a pecuária e participavam ativamente da política e das guerras. O presidente da Confederação Argentina na década de 1850, Justo José de Urquiza, por exemplo, era padrinho dos filhos do mais importante cacique dos pampas, Juan Calfucurá. As alianças familiares, sociais, econômicas e militares colocavam de um lado Buenos Aires e, do outro lado, as demais províncias e seus aliados indígenas.
A vitória política e militar portenha, na década de 1860, levou o general Bartolomeu Mitre à presidência, centralizando o poder, e logo os liberais portenhos colocaram em prática uma política de enfrentamento total, a la muerte, a seus inimigos: caudilhos do interior, populações mestiças (chamadas de gauchos) e indígenas. Para o maior dos ideólogos dessa Argentina branca, o intelectual e também futuro presidente Domingo Faustino Sarmiento, havia um embate crucial entre a “civilização” e a “barbárie”.
Os caciques, aliados dos inimigos políticos dos portenhos, reguladores das conexões comerciais com o Chile e controladores de imenso território nos pampas, na Patagônia e nos Andes, foram alvo preferencial. Eles sabiam disso e resistiram sem pretender, em momento algum, perder suas autonomias e o controle de seus territórios.
Foi então que se fundiram distintos interesses no Estado e na sociedade civil no discurso agora verbalizado pelo presidente Fernandéz. Pecuaristas confrontados com indígenas que não pretendiam ceder terras e eram concorrentes econômicos, militares que os enxergavam como inimigos e eram constantemente humilhados em derrotas nas batalhas, colonos que pretendiam ganhar terras de graça e não concebiam ser submetidos a indígenas, e políticos com discursos sobre o monopólio da violência e a soberania do Estado se associaram. Ao longo das décadas de 1860 e 1870, eles deram forma a um discurso que transformou indígenas em inimigos mortais, em barreiras a serem derrubadas em nome do progresso e da civilização. Para eles, a Argentina não poderia ser um país mestiço, muito menos ter terras sob controle indígena: seu destino era ser um país “civilizado”, “branco”, repleto de “europeus que chegaram de barcos”.
Entre 1878 e 1879, o Exército argentino foi levado aos pampas para, nas palavras do ministro da guerra e futuro presidente, Julio Roca, “expulsar os índios do deserto que se trata de conquistar, para não deixar um só inimigo na retaguarda, submetendo-os pela perseguição ou pela força, sem nos apressar a extirpar o mal pela raiz e destruir esses ninhos de bandoleiros”.
A chamada “Conquista do Deserto”, como dizem os argentinos brancos, foi essa sequência de operações militares em que os indígenas foram deliberadamente eliminados. Mais de um terço deles morreu nos campos pampeanos; outro terço não aguentou as marchas forçadas no inverno chuvoso até os campos de prisioneiros.
A partir da análise dos discursos políticos e militares sobre como procederam traindo e eliminando os indígenas, dos números de mortos, da memória social nativa e da história oral, considera-se, hoje em dia, a ocorrência de um genocídio indígena naquele país, naquele tempo. Foi esse genocídio que fez a Argentina, e em especial Buenos Aires (e não Misiones ou as províncias andinas do noroeste), “branca”, “civilizada”, em um processo paralelo ao também desaparecimento das populações de origem africana.
Direita, esquerda, volver
Alberto Fernandéz, o presidente da Argentina, é advogado e professor na Universidade de Buenos Aires, pertence ao Partido Justicialista e foi eleito com plataforma baseada em propostas sobre direitos de gênero e reprodutivos, direitos humanos, trabalhistas, e com uma inédita política para a comunidade afroargentina, com secretaria especial para aquela comunidade. O que explica sua declaração?
Uma ideia-fixa e um imaginário a respeito da Argentina e de Buenos Aires como “brancos” e “europeus”, enraizados nas elites econômicas, políticas e intelectuais daquele país e daquela capital e disseminados pelo espectro político. O celebrado Jorge Luis Borges declarou, por exemplo, que os argentinos eram europeus no exílio. Apenas três anos atrás, o presidente anterior e adversário dos peronistas, Mauricio Macri, pronunciou declaração muito semelhante, no Fórum Econômico de Davos. Para ambos os presidentes, ao apresentarem entusiasmadamente seu país aos europeus, era preciso falar sobre como seriam distintos da América Latina “atrasada”, “indígena”, “mestiça”, “bárbara”.
Diante da imensa repercussão da declaração racista, Fernandéz correu às redes sociais e pediu desculpas. Em um país com eternos ânimos políticos quentes, a oposição de direita (interna e externa) tentou embarcar nas críticas, mesmo compartilhando da mesma ideia-fixa. Para tentar sair do binarismo peronistas e antiperonistas da Argentina branca, é importante verificar como os indígenas veem essa história.
Após quase um século e meio da “Conquista do Deserto” e de sucessivos governos brancos, peronistas, liberais, ditatoriais militares, o que se vê na Argentina é pouco debate, pouca mudança e praticamente quase nenhuma participação indígena. Em Misiones, os indígenas são peões. No noroeste andino, “com cara de bolivianos”, não são tidos como argentinos. No Chaco, aqueles que organizaram movimentos de resistência estão presos. Na Patagônia, não conseguem retomar terras ancestrais, mesmo com muitos discursos e leis aprovadas, pois nelas há petróleo, minérios e até ovelhas. Para indígenas, de norte a sul do país, a constatação é de que há muita falação, proclamações interculturais, uma ou outra ação simbólica de governos… O tempo passa, os governos mudam, e a realidade pouco se modifica. Quando ocorre breve alteração, é sempre após muita pressão e luta indígena contra o huinca, como dizem. Pouco importa se de esquerda ou de direita.
Até recentemente, a nota de 100 pesos, que já foi a de mais alto valor, celebrava a “Conquista do Deserto” e seu principal personagem, Julio Roca, mas foi substituída no mandato da Cristina Kirchner pela imagem de Evita Perón. Na capital e nas principais cidades, estátuas equestres do general Roca permanecem, mesmo que constantemente atacadas e pichadas. Sarmiento é nome de cidades, avenidas, ruas, parques e toda sorte de edifícios públicos. Como Borges, Macri e Fernandéz nos mostram, o velho discurso de uma Argentina “branca, europeia e civilizada” está enraizado e ainda é muito forte, eficaz e central na eterna construção da identidade, nacional e racista, daquele país.
Gabriel Passetti é professor de História das Relações Internacionais no Instituto de Estudos Estratégicos da UFF e autor do livro Indígenas e criollos: política, guerra e traição nas lutas no sul da Argentina (1852-1885), pela editora Alameda.