Em Madri, vidas hipotecadas
A “febre da construção” alimentada pelo setor bancário espanhol deixa rastros de cidades fantasmas, florestas de gruas inativas, centenas de milhares de desempregados. Entretanto, ela é responsável também pela geração de altíssimos lucros
(Homem caminha diante de acampamento dos "Indignados" na praça Puerta del Sol, em Madri)
Até a aparição do movimento dos indignados,1 a crise não passeava pelas ruas de Madri, mesmo com a Espanha figurando entre os países mais afetados pela recessão da economia mundial. Até a primavera europeia de 2011, a vida parecia seguir seu curso. Contudo, os anúncios de “vende-se” nas varandas dos imóveis sinalizam uma mudança profunda. Basta espiar a vitrine de qualquer imobiliária para confirmar: os preços desabaram.
Assim aconteceu em Aluche, uma periferia popular madrilena: um apartamento de 65 metros quadrados, situado no terceiro andar de um edifício com elevador, foi vendido por 240 mil euros em 2006. Três anos depois, imóveis do mesmo padrão custam entre 160 mil e 170 mil euros. Dois anos após o início da crise, mais de 40% das imobiliárias fecharam. Contudo, quando abrimos a porta de uma, os rostos se mostram amáveis e sorridentes: os negócios continuam. Cerca de 86% dos espanhóis são proprietários: um modelo para Nicolas Sarkozy, que desejava incentivar o acesso à propriedade privada em vez de empreender políticas públicas de habitação: “Minha ambição seria fazer da França um país de proprietários. Um a cada dois franceses possui casa própria, enquanto na Espanha esse percentual é de 80% e, na Inglaterra, 76%. Doze milhões de famílias francesas gostariam de ser proprietárias, mas não o são”, declarou ele em maio de 2007, no canal de seu amigo Martin Bouygues, o TF1.
Contudo, o “acesso à propriedade” na Espanha também trouxe um endividamento a longo prazo. Entre 2004 e 2007, 5 milhões de créditos com garantia hipotecária foram concedidos para a compra de moradia. Uma situação tão frequente que a expressão “ter uma hipoteca” passou a fazer parte da linguagem corrente. Paralelamente, proliferaram os empréstimos para o consumo (em geral com o bem imobiliário como garantia) com cartão de crédito e com créditos rápidos concedidos por empresas financeiras – cujas taxas de juros atingem às vezes 25% – e até empresas privadas de compra e venda de crédito. Esses negócios chegaram a tal ponto que alguns empréstimos não estão mais associados à compra de um bem concreto, e sim derivados de um produto de consumo integral. Também é comum deparar com publicidades ou chamadas telefônicas informando que somas de até milhares de euros estão “à sua disposição” para “serem gastas como você desejar”. Essa proliferação descontrolada do crédito e do endividamento pesa fortemente sobre os lares espanhóis. No último trimestre de 2008, a relação entre a dívida e os salários-base disponíveis (a fração do endividamento) chegava a 125%, contra 88,9% na França.2 Em 2008, os inadimplentes dos créditos hipotecários cresceram 310%, e 2,7 milhões de pessoas terminaram o ano sem poder quitar suas dívidas. Em 2009, as moratórias chegaram a 850 mil, e as penhoras ultrapassaram 90 mil – nível mantido em 2010.
Como se chegou a essa situação? Para compreender o cenário, é preciso voltar ao papel das imobiliárias. Depois de afirmarem que é “o melhor momento para comprar”, essas empresas oferecem um “estudo financeiro” gratuito e sem compromisso, destinado a avaliar o poder de compra do interessado em adquirir o imóvel e a que tipo de bem ele poderia ter acesso. Propõem, também, intermediar os créditos com um banco. No cálculo, são levados em conta o salário, as rendas não declaradas – ou renda “B”, como chamam por eufemismo –, a poupança e as garantias e fiadores familiares. A imobiliária revela igualmente os segredos da “avaliação”, ou seja, a estimativa do preço da moradia realizada por empresas certificadas que determinarão o valor do futuro empréstimo. O montante da avaliação, sobre o qual a empresa pode ter influência, serve em seguida como referência para o banco determinar o crédito, que por sua vez deveria ser suficiente para permitir também o pagamento das taxas adicionais: impostos, documentação em cartório e, claro, as comissões dos intermediários (a imobiliária em questão, a empresa financeira e o banco). Os pagamentos são financiados em 30, 35 e 40 anos, com mensalidades que não ultrapassam 40% da renda. Contudo, existe a possibilidade de aumentar o valor das cotas, sobretudo quando existe a renda “B”.
Na época do boomimobiliário, as avaliações superestimadas, a proliferação de intermediários e os créditos outorgados de acordo com a capacidade de pagamento eram práticas comuns. E não é surpreendente o fato de muitas pessoas que começaram a pagar “hipotecas” encontrarem-se atualmente incapacitadas de honrar esses compromissos.
Ester e Angel decidiram comprar uma moradia em 2004.3 “Nem sequer considerei a questão do aluguel. Não pensava nessa possibilidade”, reconhece Ester. É certo que a Espanha vive um contexto de penúria em relação aos aluguéis, porque as autoridades sempre encorajaram a compra de propriedades com incentivos fiscais e facilidades de crédito. Os pais de Ester, apesar de trabalharem em Madri, sempre moraram nas cidades-dormitórios ao redor do centro, onde o preço dos apartamentos era mais acessível: Leganés (a 11 km), Fuenlabrada (a 22 km), Valdemoro (a 27 km) e, finalmente, Seseña (a 36 km). Paradoxalmente, se por um lado esse périplo residencial revela que a revalorização imobiliária e a especulação favorecem a aquisição de moradias melhores – uma casa com jardim, em última instância –, por outro impõe a condição de distanciar-se cada vez mais da capital. Desde o fim dos anos 1980, os preços do mercado imobiliário conheceram um aumento regular. Já não era necessário terminar de pagar o imóvel para vendê-lo com algum lucro, reembolsar a antiga “hipoteca”, financiar parte de uma nova moradia e fazer outra “hipoteca” para pagar o restante.
Assinando de olhos vendados
Apesar de Ester e Angel não terem refletido sobre a valorização contínua no momento da compra, a alta dos preços – 18% em 2004 – foi um fator psicológico de incentivo muito importante. A ideia de que “pagar aluguel é jogar dinheiro fora” tinha respaldo na prática. “A ideia fixa era ter algo próprio. Mas ninguém se deu conta, todo mundo embarcou nessa, todos os meus amigos estavam comprando uma casa. Lembro-me de dizer ao meu marido: ‘Ou entramos nessa [na compra de um apartamento] agora, ou deixamos a ideia de lado, porque ficará cada vez mais caro’”, explica Ester.
Os dois trabalham em Madri, mas decidiram comprar um apartamento de quatro cômodos de 64 metros quadrados que a imobiliária mostrou em Valdemoro e custava 165 mil euros. Solicitaram um crédito pessoal destinado ao adiantamento de 9 mil euros, que eles pretendiam reembolsar rápido graças à diferença entre a avaliação e o preço real do imóvel.
A assinatura ante o tabelião aconteceu em seguida, sem acesso prévio aos documentos, o que seria, contudo, um direito. Diversas mudanças de último minuto modificaram as condições do empréstimo, fato que Ester lembra com amargura: “Tudo já estava em andamento. Meus pais eram os fiadores, e os proprietários do apartamento estavam lá. Eles não queriam perder a oportunidade de vender o apartamento nem o dinheiro do adiantamento. Mas agora eu me pergunto: e se eu tivesse dito, diante de todas essas pessoas bem vestidas – as do escritório, o tabelião, o diretor e o vice-diretor do banco, a jovem da imobiliária e dois outros representantes do banco –, levando em conta que me tomariam por louca, que eu não assinaria os papéis? Era o que eu deveria ter feito. Mas com que força ou clareza poderia fazer uma coisa assim? Nesse momento, minha ideia era comprar um apartamento. Eu estava completamente cega pelo fato de que o imóvel já era nosso, bastava assinar o contrato. Ademais, a data-limite para a venda era justamente aquele dia”.
Assim, o casal aceitou uma “hipoteca” de quarenta anos, mas não com o banco que haviam escolhido, com juros levemente superiores ao anunciado previamente e por um total de 189 mil euros em vez dos 165 mil da avaliação. Somam-se a esses “imprevistos” os procedimentos de cartório e as taxas, que em geral representam 10% do valor do imóvel – que, no caso de Ester e Angel, subiram para 14,5%. E o reembolso dos 9 mil euros acabou ficando fora de questão: a imobiliária já havia ficado com 6 mil. Eles descobriram que o direito de desistência não é reconhecido pela legislação espanhola se as duas partes estiverem presentes na assinatura do contrato. Como na maioria dos casos, assinaram praticamente às cegas um contrato financeiro que compromete grande parte da renda pelo resto da vida. Consolam-se, porém, que em última instância sempre será possível revender o financiamento do imóvel e lucrar um pouco com isso…
Ester e Angel se comprometeram a pagar mensalidades de 770 euros, o que representa 38% de suas rendas. Um ano após a compra, Ester foi demitida da empresa em que trabalhava como auxiliar administrativo. Estava grávida e suspeita que esse tenha sido o motivo da demissão. Na Espanha, a demissão sem justa causa não representa grandes dificuldades para os empregadores: basta depositar, nas 48 horas seguintes, a indenização prevista por lei – cujo valor corresponde a 45 dias de trabalho por ano de serviço. Entre a demissão e 2008, Ester conseguiu apenas trabalhos temporários, como 30% dos trabalhadores espanhóis, e depois não conseguiu mais nada.
Durante o ano de 2008, o aumento das taxas de juros fez com que a mensalidade chegasse a 1.130 euros. Mais ou menos na mesma época, Angel foi demitido. Pela primeira vez, o casal não pôde pagar o financiamento. Ele decidiu não recorrer à família. “Pensávamos em regularizar a situação no mês seguinte. Mas, para piorar, não podíamos sacar dinheiro com o cartão de crédito para fazer os depósitos. Não pudemos pagar, e a coisa se transformou numa bola de neve.” Finalmente, Angel encontrou um novo emprego. O casal iniciou negociações para acertar os atrasos, mas recebeu uma ameaça de hipoteca do imóvel. A solução proposta pelo banco? Obter um crédito novo para cobrir a dívida em questão. Ester e Angel tiveram, então, de acrescentar um plano de poupança às condições já exigidas no momento da assinatura da “hipoteca” (abertura de uma conta bancária exclusiva, inscrição em seguro de vida e outro de habitação cobrados pela mesma instituição) e aceitar o aumento do “diferencial”, ou seja, uma porcentagem que o banco acrescentou na taxa inicial de juros. Uma das cláusulas do novo contrato estipula um teto para os juros, de 3,6%. Estamos falando de 2008, ou seja, época em que as taxas oficiais começaram a ultrapassar esse teto.
O comportamento pirata
Escandalizados pelo que consideraram um novo abuso, Ester e Angel rejeitaram a oferta e continuaram a pagar como puderam, sem atrasos, enquanto encontravam uma forma de invalidar a ameaça de execução hipotecária. Na Espanha, não existe nenhuma lei que regule o superendividamento para que os compradores possam enfrentar essas situações. Como último recurso, os pais de Ester estão prontos para pedir um empréstimo e ajudá-los. É também uma forma de evitar que se invalide a caução que fizeram.
Por mais que pese, Ester considera atualmente que, “quanto mais você se comporta como um pirata, mais você ganha na vida. Agora, parto do princípio de que todos à minha volta podem me enganar”. E essa regra vale, em primeiro lugar, para os bancos. Ela calcula que, com os juros, pagará pelo imóvel o valor total de 369.600 euros, por um apartamento vendido por 169 mil. “Gostaria de fazer outras coisas: estudar, entrar na universidade. E hoje, o único bem que possuo, e nem sequer isso, é um apartamento.”
Para Vítor, divorciado e com dois filhos, os problemas advêm do aumento das taxas de juros, e não tanto das dificuldades enfrentadas pela empresa em que trabalha. Empregado do departamento de design de uma fábrica de móveis, recebe 1.000 euros fixos mensais, mas em períodos de atividade normal soma-se a esse valor uma parte “B” de 600 a 800 euros. Ele vive e trabalha em Fuensalida, uma cidade na província de Toledo, a 70 quilômetros de Madri. Apesar de morar a cinco minutos do trabalho, a maioria dos moradores dessa localidade trabalha na capital. Em 2005, ele comprou um apartamento de 115 metros quadrados por 159 mil euros sem passar pela imobiliária, pedindo crédito diretamente ao banco. Cobriu as taxas das transações com o dinheiro da poupança e obteve um crédito pelo valor do imóvel graças à sua mãe, que deixou a caução. Nessa época, os aluguéis dessa zona subiram para cerca de 400 a 500 euros, o que equivale praticamente ao montante da mensalidade proposta – 521 euros – por uma “hipoteca” de quarenta anos. “No lugar de pagar por algo que não seria meu, preferi me comprometer com a compra de um apartamento”, conta.
A taxa de juros anual é de 2,5% durante o primeiro ano. A partir do ano seguinte, passa a incidir sobre o resto do financiamento uma taxa de juros variável – ou seja, a taxa de base interbancária europeia, o Euribor, acrônimo de European Interbank Offered Rate,4 acrescido de um “diferencial” de 1,25%. Em 2006, na época da renegociação anual, as mensalidades tinham passado para 648 euros; em 2007 chegaram a 758; e finalmente a 830 em 2008. Como o peso dos juros tem um efeito mais elevado durante os primeiros anos do financiamento, posto que o montante da dívida é maior, os aumentos das taxas provocam grandes variações. Ao mesmo tempo, a maior parte da renda “B” de Vítor desapareceu quando a empresa passou a sofrer os efeitos da crise. Portanto, ele dispõe agora de um salário de 1.000 euros para cobrir suas despesas. Em maio de 2009, Vítor pediu um crédito pessoal de 12 mil euros para dar conta das despesas do casamento da filha. “Quando comecei a ter dificuldades, passei a trabalhar como treinador de uma equipe júnior de futebol depois do expediente e a procurar bicos, qualquer coisa para tentar manter as contas em dia. Também tenho uma licença para transportar cargas em trajetos curtos, mas até agora não ganhei nada com essa atividade. Todos os dias saio de casa às 8 horas e nunca volto antes das 21 horas. Não trabalho menos de 60 ou 65 horas por semana, sem contar o tempo em filas para retirar dinheiro e realizar pagamentos. Quando fico no vermelho, uso o cartão de crédito para realizar saques e deposito na minha conta.” Isso tudo até o mês seguinte, quando se somam juros mais altos às mensalidades dos créditos pessoal e imobiliário.
Vítor tentou modificar as condições de sua “hipoteca”. Em vão: as respostas são sempre negativas porque seu apartamento perdeu valor. “Nem me atrevo a não realizar os pagamentos. Aqui não é como nos Estados Unidos, que a entrega do imóvel salda a dívida automaticamente. Na Espanha, o banco apreende o imóvel e, depois de vendido em leilão, a diferença entre o valor do empréstimo e o valor da venda continua sendo uma dívida sua. Em seguida, recorrem aos fiadores e, se não é suficiente, eles tiram tudo o que puderem de sua conta bancária e poupança”. De fato, apenas o salário é em alguma medida protegido contra a penhora por dívida. Como em todos os países de tradição jurídica romana, um devedor responde à sua dívida com todos os seus bens presentes e futuros, o que inclui outros tipos de garantia, como as cauções.
Assim, para o banco, o risco do empréstimo é praticamente nulo, se desconsiderados os custos dos processos judiciais eventualmente empreendidos. Para completar, um decreto-lei (n. 716/2009) publicado em 2 de maio de 2009 permite que as instituições financeiras exijam fiadores e garantias suplementares no caso de o imóvel perder mais de 20% do valor estimado inicialmente. O crédito pessoal é a única forma de empréstimo regulamentada por lei, ao contrário do superendividamento e das intervenções públicas de ajuda a indivíduos. E, em última instância, intervêm as empresas de crédito rápido, que alguns não hesitariam em qualificar de usurárias pelas taxas de juros que praticam.
Qual a prioridade do Estado
Como o banco não aceita qualquer modificação nos contratos, a única possibilidade de Vítor é pedir auxílio à família e aguentar até a próxima negociação da “hipoteca”, esperando que as taxas de juros se mantenham nos níveis historicamente baixos de hoje… Devido à ação conjunta do Banco Central Europeu (BCE), das operações de salvamentos e das injeções de liquidez, o Euribor fixou-se em 1,77% em abril de 2009. Levando em conta os altos montantes da dívida e os efeitos diretos dos ciclos do mercado financeiro, os lares espanhóis desenvolveram uma grande familiaridade com as taxas de juros do mercado interbancário, a ponto de Vítor, por exemplo, ver claramente o que poderia fazer: “Em vez de ajudar os bancos, seria suficiente acelerar as negociações das hipotecas com as taxas atuais, ou que seja criado um banco hipotecário público, como havia antes, que possa recomprar as dívidas das pessoas em dificuldades e reaplicá-las imediatamente com as taxas de juros atuais”. Essa é uma das poucas perspectivas para muitos proprietários endividados na Espanha.
Os imigrantes sofrem ainda mais com essa situação. Cerca de 500 mil famílias imigrantes possuem “hipoteca”, e os abusos, em geral, são mais acentuados – principalmente nos créditos com taxas crescentes e diferenciais mais elevados. As associações de consumidores ou de bairro que assistem pessoas com problemas de endividamento recebem majoritariamente imigrantes. E não à toa: essas pessoas são menos desprovidas de redes autóctones de apoio, as taxas de desemprego entre eles são maiores,5 e eles são submetidos a práticas de crédito em cadeia que afetam muitas famílias no momento em que uma delas deixa de pagar.
“O perfil de enfrentamento e superação de crise [na Espanha] é mais lento do que a média dos países na zona do euro, e isso se explica pela situação do setor de moradia”, declarava o ex-comissário europeu encarregado dos negócios econômicos e monetários Joaquín Alminua, em 2009. Ele previa um “ajuste mais prolongado”6que em outros lugares. O “ajuste” poderia, de fato, levar tempo. A lógica que os mercados impõem poderia até colocar a Espanha em uma situação delicada sem o socorro da União Europeia. Pois como Ester, Angel ou Vítor, o Estado espanhol pena para restituir os bancos.