Em meio a polêmicas, Brasil retoma política externa pragmática
País vive momento oportuno para se recolocar como ator relevante nas relações internacionais
As últimas semanas foram palco de importantes movimentações do governo brasileiro no cenário internacional. Os discursos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seus encontros com o presidente chinês Xi Jinping e o ministro de negócios estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, sacramentaram um novo momento para a política externa do país – o que, no entanto, foi recebido com hesitação por parte da opinião pública.
Entre a polêmica em torno dos pronunciamentos de Lula – sobre a hegemonia do dólar e a Guerra na Ucrânia – e as querelas políticas internas que se desdobraram a partir daí, ficaram ofuscados aspectos relevantes e coerentes da política externa que começa a ser traçada pela nova administração federal.
Em primeiro lugar, o posicionamento diplomático brasileiro retoma um caráter pragmático e de não alinhamento automático, em contraposição ao vigente durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Esse é um princípio básico das boas práticas diplomáticas, como observado por Henry Kissinger, um dos mais importantes diplomatas da história dos EUA, em seu livro “Diplomacia”, considerado seminal para o campo de estudos das Relações Internacionais.
Kissinger destaca, na obra, a decisão de Richard Nixon, presidente norte-americano entre 1969 e 1974, de reestabelecer as relações com a China, país com o qual os Estados Unidos haviam rompido relações 20 anos antes, após a vitória dos comunistas na Guerra Civil Chinesa.
Então secretário de estado de Nixon, o alemão radicado nos EUA notou que o rompimento entre a União Soviética (URSS) e a China – como reflexo da escalada de conflitos fronteiriços entre os países e à medida que a última tentava conduzir uma política externa independente – minava a pretensão soviética de liderar um movimento comunista único no mundo, abrindo espaço para uma nova flexibilidade diplomática.
O momento era, portanto, propício para abrir um canal de diálogo com os chineses a fim de enquadrar os russos, os quais teriam de encarar desafios em dois fronts: a oeste, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e a leste, a China, uma potência com capacidade para afetar o equilíbrio de poder na Ásia que seria, então, contida pela necessidade de contar com a “boa vontade” dos EUA para limitar as pretensões soviéticas sobre seu território.
Com isso, a administração Nixon gozaria de maior flexibilidade para resolver questões práticas com a URSS por vias políticas, já que, em situação delicada, os soviéticos seriam forçados a relaxar as tensões com os EUA.
Hoje, a China é o maior parceiro comercial dos EUA e grande detentor de títulos da dívida estadunidense.
De forma semelhante e há não muito tempo, o conservador Donald Trump estava na também comunista Coreia do Norte apertando as mãos do ditador Kim Jong-un.
No caso do Brasil, é digna de memória a política externa praticada pelo general Ernesto Geisel, na década de 1970. Seu chamado “pragmatismo ecumênico” contemplou uma intensificação das relações com a União Soviética, o reconhecimento da China comunista, uma ampliação da representação do Brasil na Europa Oriental e o abandono tácito do país à política de Lisboa na África.
O segundo aspecto a ser destacado está relacionado ao aparente estabelecimento de uma nova ordem geopolítica mundial marcada por uma bipolaridade (EUA + China) ou mesmo tripolaridade (EUA + China + Rússia). Se confirmada, essa possível mudança representaria um enorme impacto na balança de poder global se comparada ao período de inquestionável hegemonia norte-americana desde a dissolução da União Soviética (URSS), em 1991.
Conforme apontado em artigo publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, em março de 2022, tal mudança pode gerar oportunidades para o Brasil alavancar sua posição no sistema internacional, uma vez que o poder de barganha de potências emergentes tende a crescer em um cenário em que o hegemon é efetivamente desafiado.
Não é incidental que o período pós-Segunda Guerra Mundial seja considerado a época de ouro do capitalismo: o aumento da prosperidade em diferentes regiões do planeta guarda relação direta com uma política externa “benevolente” praticada pelos EUA a fim de conter o avanço comunista sobre o então chamado Terceiro Mundo.
Por fim, temos o terceiro aspecto: a crítica à hegemonia do dólar não é de agora e tampouco tem origem no Brasil. E, o que é mais importante, ela é absolutamente legítima.
O dólar se tornou oficialmente a moeda internacional no apagar das luzes da Segunda Guerra, quando a Europa Ocidental recebia crescentes influxos da moeda norte-americana para ser reconstruída por meio do Plano Marshall.
Assinados em 1944, os acordos de Bretton Woods estabeleceram uma paridade fixa do dólar em relação ao ouro que logo viria a ser questionada.
Já na década de 1960, o então presidente francês, Charles de Gaulle, denunciava que os EUA detinham um “privilégio exorbitante”, tendo em vista seu poder de financiar déficits internos em sua própria moeda e sua capacidade ilimitada de endividamento e de investimento.
Em 1971, os Estados Unidos decidiram acabar com o lastro obrigatório ao metal, implementando o que ficou conhecido como padrão dólar-flexível.
Nesse sistema, o valor da moeda internacional passou a ser fundamentalmente avalizado pelo poder político e militar dos EUA[1], cujo banco central têm a liberdade de variar unilateralmente a paridade em relação a outras moedas por mudanças em suas taxas de juros, inclusive para desvalorizar o dólar, sem medo de haver fuga para o ouro, já que o sistema é totalmente fiduciário. Afinal, “One dollar is as good as one dollar”[2].
“O dólar vai se tornando referência obrigatória nas operações financeiras à medida que a dívida pública americana de expande, convertendo-se em ativo internacional utilizado nas carteiras de quase todas as instituições financeiras”, assinalou Maria da Conceição Tavares[3].
Foi justamente pensando em reduzir sua dependência do dólar que os BRICS anunciaram, em 2013, a intenção de criar um banco de desenvolvimento próprio – o que, claro, incomodou profundamente os EUA.
Importa notar que os norte-americanos também usam sua posição de detentor da moeda internacional para enquadrar países considerados rivais. Um exemplo é o das sanções econômicas aplicadas pelos EUA à Venezuela. Há anos elas impedem o refinanciamento da dívida da petroleira estatal PDVSA em dólares, o que afeta diretamente a economia do país sul-americano, a qual é extremamente dependente das exportações de petróleo.
Por sua vez, a Rússia vem ampliando suas operações internacionais em rublos desde que os EUA baniram bancos do país do SWIFT, sistema internacional de compensações financeiras.
Enquanto isso, a China mantém acordos com a própria Rússia, além de países como o Paquistão, Laos e Cazaquistão, realizando transações em Renminbi (RMB), e discute tal possibilidade com a Arábia Saudita, tradicional parceiro dos EUA.
No plano ocidental, a petroleira francesa TotalEnergies vendeu, recentemente, 65 mil toneladas de gás natural liquefeito dos Emirados Árabes Unidos para a estatal chinesa CNOOC, com mediação da Bolsa de Petróleo e Gás Natural de Xangai.
Essas movimentações nos remetem, novamente, à questão do pragmatismo. As relações internacionais não devem ser norteadas por quesitos ideológicos ou mesmo éticos e axiológicos, mas pelo interesse nacional, seguindo os preceitos de Nicolau Maquiavel (1469-1527), que fundou uma moral própria da política.
Portanto, nesta conjuntura, talvez a pergunta que se deve fazer para analisar os posicionamentos brasileiros é quais os benefícios que eles podem trazer ao país. Neste caso, o Brasil tem uma rara chance de se recolocar como um país relevante nas relações internacionais e se tornar peça fundamental no processo de transição hegemônica que parece estar em curso.
Dessa forma, cabe ao governo brasileiro buscar o melhor para sua população, enquanto, para nós, fica a responsabilidade de entender esse processo pragmático que tem raízes históricas na política externa nacional.
João Montenegro, jornalista especializado em energia e mestre em Economia Política Internacional pelo PEPI-UFRJ.
Nathana Garcez, mestre em Economia Política Internacional pelo PEPI-UFRJ e doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Santas (UNICAMP/UNESP/PUC-SP).
[1] FIORI, J. L. (1999). “Estados, moedas e desenvolvimento”. Em J.L. Fiori (org), Estados e Moedas no desenvolvimento das nações, Editora Vozes, 1999.
[2] MEDEIROS & SERRANO (1999). “Padrões monetários internacionais e crescimento”. Em J.L. Fiori (org), Estados e Moedas no desenvolvimento das nações, Editora Vozes, 1999.
[3] TAVARES, Maria da Conceição & MELIN, Luiz Eduardo. “Pós-escrito 1997: A reafirmação da hegemonia norte-americana”. Em M.C. TAVARES & J.L. FIORI, Poder e dinheiro: uma economia política da globalização.